Para Salvador Mendes de Almeida, de 37 anos, os dias são desenhados com dificuldade, à imagem daquilo que a cidade lhe permite: pouco, para um país que recebeu na semana passada a distinção de Destino Turístico Acessível 2019, da Organização Mundial do Turismo. Aos 16 anos, um acidente de moto deixou-o tetraplégico e desde então que decidir onde viver e por onde passar é um processo de régua e esquadro. "Este prémio é uma brincadeira", não hesita em dizer. Há décadas que a legislação portuguesa sobre as acessibilidades parou no tempo num país dito campeão.
Estamos na capital, na Avenida da Liberdade, onde todos os dias passeiam centenas de turistas, para cima e para baixo, desaguando em dois pontos arteriais da cidade: ou no Marquês ou na Praça dos Restauradores. É um local de passagem quase indispensável para quem conhece Lisboa pela primeira vez. As numerosas lojas que enchem a Avenida gabam os seus produtos nas montras, convidando todos a entrar. Mas nem todos podem realmente fazê-lo. Como é o caso de Salvador, para quem esta é apenas uma avenida de obstáculos: buracos nos passeios, calçada desnivelada, falta de acesso às passadeiras e lojas.
Antes de Salvador ficar preso a uma cadeira de rodas, "nunca tinha pensado" nas dificuldades com que todas as pessoas com limitações motoras se deparam nas ruas. Era apenas um adolescente, com 16 anos, desportista de rugby, futebol e equitação, quando um acidente de moto lhe provocou uma lesão medular que o deixou tetraplégico. Não passou muito até que esbarrasse com os obstáculos da cidade. "O primeiro impacto nos meus pais fê-los dizer: 'vamos viver para fora'." "Mas era uma grande transformação na vida", que o faria abdicar da presença da família e dos amigos na fase em que precisaria de mais apoio, lembra. "A vida muda completamente", embora a cidade não mude com ela.
Entre os vários estabelecimentos com presença na Avenida, são raros aqueles que dispõem de uma simples rampa à entrada. E mesmo alguns dos que têm uma, guardam lá dentro armadilhas apenas ultrapassáveis para quem caminha sobre o próprio pé, como acessos a segundos pisos por escadas. "Posso levar umas rampas portáteis comigo", anota como uma possível solução. Mas o problema começa imediatamente antes de chegar ao passeio. Alcançar a maioria das passadeiras presentes nas laterais da Avenida é uma missão (quase) impossível para Salvador.
Ainda não tínhamos começado a nossa caminhada pela rua abaixo, já apontava para um exemplo diante dos nossos olhos. "Vou tentar." Desceu, com dificuldade, um passeio com cerca de três centímetros. E subir é ainda mais complexo. "Numa cadeira normal (não elétrica) é impossível fazer isto", por facilitar o desequilíbrio. "Nisso sou um privilegiado com esta cadeira, que já tem estas rodas grandes à frente para uma maior estabilidade. Mas também tem um senão: enquanto com uma cadeira de rodas manual qualquer pessoa consegue ajudar, empurrando-a, com esta isso não é possível. Pesa 200 quilos", lamenta. Quando a manobra é impossível, Salvador só tem uma hipótese: "Vou pela estrada."
As queixas são recorrentes. Desde o início do ano e até finais de agosto, o gabinete de acessibilidade da Associação Portuguesa de Deficientes (APD) registou 198 reclamações e pedidos de esclarecimento a nível nacional sobre falhas na acessibilidade. Em 2018, foram 270 no total. As exposições devem-se sobretudo à "falta de condições de acessibilidade" em transportes, edifícios e via pública para organismos públicos e privados, prevista no Decreto-Lei n.º 163/2006. Mas também ao estacionamento reservado, à sinalização e ao reconhecimento de cartões de estacionamento.
Já lá iam alguns anos de experiência à boleia de uma cadeira de rodas quando Salvador decidiu reutilizar a sua história para fazer a diferença. Em 2003, criou a Associação Salvador, um organismo onde trabalham atualmente cerca de duas dezenas de pessoas para promoção da inclusão de indivíduos com deficiência motora. Desde ações de sensibilização a gabinetes de apoio ao emprego.
Nada indiferente às barreiras urbanas, a associação lançou a 3 de maio do ano passado uma aplicação que visa ser um apoio à mobilidade dentro das cidades. Através da + Acesso, como foi nomeada, é possível visualizar e criar classificações sobre as acessibilidades dos espaços por onde se passa, denunciando os maus exemplos e partilhando os bons.
Quando há uma denúncia oficial, esta é imediatamente reencaminhada para entidades competentes pela fiscalização. A associação indica que, só este ano, já foram registadas cerca de mil denúncias, a maioria delas em Lisboa - embora seja um dado pouco significativo, dado que a maioria dos utilizadores da aplicação também está localizada nesta cidade -, seguida de Porto, Albufeira, Olhão e Coimbra.
Quase todos os bons exemplos urbanos que Salvador vai mencionando têm uma segunda face. Depois das obras concretizadas na Avenida Duque D'Ávila, na zona do Saldanha, por exemplo, "a rua ficou espetacular, com um passadiço para as cadeiras". "Mas depois conto pelos dedos das mãos os restaurantes nos quais consigo entrar", aponta. A mudança deve ser integrada, partir de todos e não de exemplos de exceção. Por isso é que "a lei tem de ser revista", sublinha.
O ano de 1982 foi não só o ano que Salvador nasceu mas também o ano em que ficou publicado o primeiro decreto-lei em que ficou descrita a importância da acessibilidade nos locais públicos e privados. Embora só quase duas décadas depois, em 1997, é que foi lançado um prazo de sete anos para que todos os edifícios e via pública fossem adaptados. Mas terminado este prazo, em 2004, o país continuava sem conceder todas as condições prometidas. O relógio voltou a contar do zero em 2006, com novo prazo que terminou no ano passado.
Um ano depois, Portugal torna-se o primeiro país no mundo a receber o prémio de melhor Destino Turístico Acessível e "foram feitas algumas melhorias, mas quase insignificantes" e "muitas delas mal pensadas", diz Salvador.
Atualmente, "só os espaços com mais de 150 metros quadrados têm a obrigação de ser acessíveis. E mesmo muitos destes, se formos analisar, não têm sequer uma rampa para entrar", explica. E há um grave problema de "falta de fiscalização", que gera facilitismo e retrai o compromisso perante a Lei das Acessibilidades.
Segundo a coordenadora do Observatório de Deficiência e Direitos Humanos (ODDH), "a lei atual é insuficiente, uma vez que não contempla as questões da acessibilidade à informação e comunicação, fundamentais para pessoas cegas, com baixa visão e surdas". Em entrevista ao DN, Paula Campos Pinto sublinha que "falta sobretudo uma adequada fiscalização da sua implementação, para punir situações de incumprimento e garantir que as soluções implementadas respeitam integralmente as normas estabelecidas". Porque "são infelizmente muitos os exemplos de situações em que as 'soluções' de acessibilidade criadas violam o estipulado na lei e constituem elas próprias situações de risco". Como é o exemplo das "rampas com inclinação excessiva" das "cadeiras de banho improvisadas para poder anunciar que se trata de um alojamento acessível".
Por isso mesmo, alerta que deve ser concedida prioridade à "implementação e fiscalização do que já está legislado", bem como à "integração desta preocupação de uma forma sistemática nos planos de desenvolvimento urbano e turístico e na formação dos agentes e operadores turísticos".
Salvador conta como já correu vários países e viu tantos outros perante os quais Portugal "está a anos-luz". "Não é preciso ir muito longe", diz, dando o exemplo de Espanha, "muito mais preparado ao nível das acessibilidades". Por isso, surpreende-o que tenha sido o seu país a receber esta distinção, entregue no decorrer da 23.ª assembleia geral da Organização Mundial do Turismo (OMT), em São Petersburgo, na Rússia.
Uma opinião partilhada pela Associação Portuguesa de Deficientes (APD), que "ficou manifestamente surpreendida com a atribuição do prémio". A entidade reconhece que "tenha havido algum esforço por parte das autarquias e das empresas", até em festivais de verão, "para melhorar o acesso às pessoas com mobilidade condicionada", mas "o incumprimento da legislação em vigor em termos de acessibilidade é a norma e o que agora foi premiado é a exceção".
Num comunicado ao qual o DN teve acesso, a APD diz desconhecer os critérios definidos pela Organização Mundial do Turismo para a avaliação que precedeu a distinção. "Mas não serão certamente considerados a acessibilidade da via pública, dos transportes, do edificado, da comunicação ou da informação porque neste caso concreto Portugal está longe de merecer qualquer troféu", pode ler-se.
Também Paula Campos Pinto, coordenadora do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos (ODDH), diz que "devemos olhar esta distinção mais como um estímulo do que como um reflexo de uma realidade que, por agora, ainda apresenta muitas insuficiências e lacunas". Em entrevista ao DN, a especialista diz esperar que "a atribuição deste prémio ajude a criar essa consciência ao nível dos responsáveis políticos e dos operadores turísticos, elevando o seu compromisso com a melhoria contínua das condições de acessibilidade do país".
Em resposta ao prémio, a secretária de Estado do Turismo disse considerar este reconhecimento "um grande impulso para que Portugal se torne o destino mais inclusivo do mundo". Contudo, Ana Mendes Godinho admitiu à agência Lusa que "ainda há muito a fazer", acrescentando que "quem perde esta carruagem perde o comboio".
Já a secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, defende que é o resultado "de um trabalho sólido e estruturado" em Portugal. "Este governo tem dado passos seguros no sentido de transformar Portugal num verdadeiro país inclusivo. É um caminho sem retorno, pois a isso nos obrigam todos aqueles para quem trabalhamos", disse a governante.
Segundo dados divulgados pelo governo, há 90 milhões de turistas com necessidades específicas de mobilidade na Europa. Foi com base nestes números que, em 2016, foi lançado um programa com o objetivo de criar roteiros acessíveis em todo o país, nomeado All for All. Daqui saíram 116 projetos, que representam um investimento de 20 milhões de euros, como a melhoria das acessibilidades no Castelo de São Jorge, em Lisboa, e nas Caves Calém, em Vila Nova de Gaia.