Santa Casa com 11 queixas de assédio sexual e moral em três anos
Margarida Carriço

Santa Casa com 11 queixas de assédio sexual e moral em três anos

Instituição tutelada pelo Governo reconhece casos entre funcionários e alega que “a maior parte” das situações foi arquivada. Mas não apresenta conclusões de casos não arquivados. Provedora Ana Jorge sugere falta de meios. Alegada vítima teve de mudar de emprego há seis meses. Acusado ainda em funções.
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A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa foi criada há mais de 500 anos para apoiar pobres e desfavorecidos e segundo os estatutos publicados em Diário da República deve dedicar-se à “promoção do bem-estar da população” e à “realização dos direitos de cidadania”. No entanto, dentro de portas, o bem-estar e os direitos de cidadania estão comprometidos. A instituição acumula queixas de violência física e psicológica, que têm tido uma tendência de crescimento nos últimos anos, dizem dados que o DN pediu à Santa Casa.

Entre 2021 e 2023 foram apresentadas 11 queixas internas de assédio moral e sexual. Os números distribuem-se da seguinte forma: em 2021 houve uma queixa de assédio sexual; em 2022 foram quatro queixas de assédio moral e uma de assédio sexual; e em 2023 registaram-se três queixas de assédio moral e duas de assédio sexual. O total de funcionários da instituição ronda 6.500 pessoas. A Santa Casa não explica se as 11 queixas correspondem a 11 queixosos e 11 acusados ou se há nomes que se repetem.

O DN sabe que uma das quatro queixas de assédio sexual em 2023 visa um responsável por projetos da Santa Casa na área da deficiência. Supostamente importunou de forma abusiva uma funcionária jovem que lhe estava hierarquicamente sujeita. O assédio terá começado em 2022 e estendeu-se até ao início do ano passado, quando a funcionária decidiu apresentar queixa através do “canal de denúncias internas” da instituição — um protocolo obrigatório por lei desde 2022 para permitir participações de suspeitas de corrupção e de infrações nos locais de trabalho.

A alegada vítima não quis falar com o DN e pediu anonimato. Mostrou-se atormentada por ter de recordar o caso, dizendo ainda sentir “o medo incutido” durante os meses em que terá sido assediada. Fontes que indiretamente testemunharam os acontecimentos dizem que a funcionária apresentou baixa médica em abril do ano passado e que a sua queixa não teve o acompanhamento esperado. Em agosto acabou por se demitir.

A funcionária chegou a prestar declarações no âmbito do inquérito interno aberto pela Santa Casa, mas até hoje não foi notificada de qualquer conclusão. Não apresentou queixa-crime junto das autoridades. O acusado, cujo nome o DN não revela por falta de elementos inequívocos, mantém-se em funções na Santa Casa. Trata-se de um “funcionário de favor” com ligações político-partidárias privilegiadas e conhecido por verbalizar as suas aventuras sexuais, garantem fontes internas.

Perante perguntas do DN, um porta-voz da Santa Casa diz que “não comenta qualquer caso em concreto”, mas não desmente os factos ou nome do acusado. A provedora, Ana Jorge, faz saber que “a existência de um só caso que seja de queixa de assédio moral ou sexual merece a maior preocupação”, pelo que “repudia de forma veemente comportamentos que coloquem em causa os fins estatutários da instituição, a sua missão e imagem junto da comunidade”. A mesma responsável — que tomou posse em maio do ano passado e que entre 2008 e 2011 foi ministra da Saúde — sugere falta de meios para lidar com estas situações de forma eficaz.

“Qualquer queixa de assédio é motivo de muita preocupação e atuação imediata, sendo fundamental que instituições com a ordem de grandeza da Santa Casa estejam dotadas dos mecanismos necessários para fazer face a estes processos de forma imediata e equidistante”, considera Ana Jorge, de acordo com um porta-voz que respondeu ao DN em nome da administração, ou seja, da provedora.

O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que tutela a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, não respondeu a perguntas do DN sobre se a ministra Ana Mendes Godinho está a par destas queixas de assédio. O gabinete da ministra fez saber apenas que “todas as denúncias recebidas” pelo gabinete “foram enviadas para as entidades competentes”, o que não se aplica ao caso da funcionária alegadamente assediada, uma vez que o Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa não regista qualquer inquérito sobre esta matéria, disse fonte oficial da Procuradoria-Geral da República. 

De acordo com a Santa Casa, as 11 queixas de assédio sexual e moral entre 2021 e 2023 “foram alvo de toda a atenção” e “resultaram em processos que tiveram a devida tramitação” — processos internos, sublinhe-se. “A maioria” foi arquivada. Esta informação não pode ser escrutinada porque a Santa Casa não quer dizer quantos casos ao certo foram arquivados e recusa-se a resumir as conclusões dos casos que não tiveram arquivamento. “As diligências tomadas em qualquer caso de assédio regem-se por toda a confidencialidade”, justificou o porta-voz da instituição perante um pedido escrito do DN para que resumisse conclusões “sem dados pessoais”. 

Segundo este responsável, a Santa Casa promove “boas práticas em ambiente laboral” e tem um “Código de Boa Conduta para a Prevenção e Combate ao Assédio no Trabalho”. Este documento não está publicado no site da instituição.

Queixas devem assentar em "factos fundamentados"

O assédio sexual no trabalho não é considerado um crime público, o que significa que procedimentos judiciais nestes casos só existem se as vítimas fizerem denúncia junto das autoridades. “Não existe uma norma penal de previsão expressa para o assédio sexual laboral”, apenas “uma norma no Código Penal que pune como crime a importunação sexual”, explica ao DN a advogada Paula Pratinha, do escritório de advogados Quor, do Porto.

À luz do Código do Trabalho, o assédio sexual em contexto laboral é uma “contraordenação muito grave” e “confere à vítima o direito de indemnização”. Mas também pode haver lugar a responsabilidade criminal por parte do agressor, desde que a vítima apresente queixa.

“A queixa efetuada dentro do local de trabalho ao superior hierárquico não priva a possibilidade de apresentação de queixa junto das autoridades policiais. Aliás, poderão e deverão ser efetuadas tanto a queixa junto da entidade empregadora como a queixa junto das entidades policiais”, diz Paula Pratinha. “A participação de assédio sexual laboral, à entidade patronal ou a entidade judicial, deve assentar em indícios e factos fundamentados e preferencialmente acompanhados de prova”, sublinha. Caso as acusações não se comprovem, os acusados “podem agir judicialmente, designadamente com fundamento na prática do crime de denúncia caluniosa”.

No dizer da jurista, uma entidade patronal que tome conhecimento de situações de assédio sexual de funcionários “deverá iniciar um procedimento disciplinar contra o trabalhador que alegadamente praticou os atos”. O despedimento por justa causa do “agente perpetrador” é uma das consequências. Contudo, da parte dos empregadores, “não há obrigação de comunicar ao Ministério Público”, sublinha Paula Pratinha.

Em abstrato, sem se referir a qualquer caso concreto, a advogada nota que o facto de o assédio sexual ocorrer em local de trabalho do Estado não é agravante nem implica responsabilidades acrescidas para o empregador, “que é equiparado a qualquer outro”.

Assédio sexual atinge 12,6%

O assédio no local de trabalho é descrito pela Ordem dos Psicólogos como “uma violação dos direitos humanos e uma forma de discriminação no trabalho”, correspondendo a “quaisquer comportamentos ou palavras indesejadas e com uma conotação sexual, que constrangem ou perturbam a pessoa, afetam a sua integridade física ou psicológica ou criam um ambiente intimidatório, hostil, humilhante e desestabilizador”. Num documento de divulgação, a Ordem dos Psicólogos refere ainda que o assédio sexual “é um fenómeno frequente, embora pouco reportado”. 

Em Portugal 16,5% da população ativa já vivenciou pelo menos uma situação de assédio moral no trabalho e 12,6% foram alvo de assédio sexual no trabalho, segundo um estudo de 2016 coordenado pela socióloga Anália Torres a pedido da CITE (Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego), que depende do Governo. É considerado o estudo mais recente disponível sobre esta matéria. Foi aplicado a 1.801 pessoas de diversas profissões: 558 homens e 1.243 mulheres. 

“Mulheres e homens reagem de formas distintas no momento em que se confrontam com o incidente de assédio sexual no local de trabalho”, lê-se no estudo. “Verifica-se que 52% das mulheres mostram imediatamente desagrado com a situação; por contraponto, apenas 31,3% dos homens têm esta reação”. 

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