Eleita a Melhor Educadora da América Latina e do Caribe pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em 2015 e duas vezes finalista do Global Teacher Prize, conhecido como o “Nobel da Educação”, a mexicana Elisa Guerra tem uma trajetória marcada pela inovação pedagógica, tendo fundado a rede de escolas Valle de Filadelfia, onde implementa o método Filadélfia, inspirado na filosofia de Glenn Doman, educador norte-americano que fundou o Instituto para Desenvolvimento do Potencial Humano nos anos 50 do século passado. Coautora do relatório da UNESCO “Reimaginando Nossos Futuros Juntos: Um Novo Contrato Social para a Educação”, está determinada em questionar o sistema escolar atual, vítima da “maior crise” da sua história, e projetar a escola do futuro. Há alguns meses a viver em Portugal, em Lisboa, foi uma das oradoras presentes no Education Summit, realizado recentemente em Guimarães, à margem do qual falou com o DN. Diz que todas as crianças transportam dentro de si a semente da genialidade. Mas estamos a falhar no cultivo dessa semente, enquanto sociedade, nos nossos sistemas educativos?Depende de para onde olhamos. De acordo com organizações internacionais como o Banco Mundial, a UNICEF e a UNESCO, apesar dos enormes progressos que fizemos na cobertura escolar nas últimas décadas, as crianças na escola não estão a aprender o que deveriam aprender, ou pelo menos o que pretendemos ensinar-lhes. Os dados são assustadores. Vivemos uma crise global de aprendizagem. Nos países de baixo e médio rendimento, antes da pandemia, metade das crianças de 10 anos e até mesmo de 15 anos não conseguia compreender um texto simples. E este número deverá agora rondar os 70% após a pandemia. Não quero ser pessimista. Acho que as coisas não estão bem, mas acho que seriam piores se não tivéssemos escolas. A questão é como fazer com que as nossas escolas sejam locais onde as crianças desenvolvam realmente o seu potencial. E não só a escola. Os pais, em casa, são os primeiros e mais influentes educadores dos próprios filhos. Estamos perante uma emergência global? Quais são os maiores desafios?Mais uma vez, depende de onde estivermos. Mas penso que se tivéssemos de generalizar e escolher uma única questão, falaria sobre a qualidade da aprendizagem, a qualidade da educação, o que as crianças realmente recebem nas escolas. Hoje em dia, toda a gente fala sobre inteligência artificial e competências digitais, e isso é bom. Tudo isso faz parte do mundo em que vivemos agora. Mas isso não significa que tenhamos de pôr de lado, ou esquecer, competências básicas e outras, como a cidadania global, que é também um novo paradigma na educação internacional. Integrou a equipa de especialistas internacionais que contribuiu para o relatório da UNESCO: Reimaginar os Nossos Futuros Juntos. Como podemos reimaginar o futuro da educação?O relatório tem como principal objetivo ser um convite para um trabalho conjunto. Não é um manual de instruções para alcançar esse novo futuro. É um documento aberto, o primeiro passo de uma conversa muito mais ampla. E uma forma de começarmos a reimaginar estes futuros, como propomos no relatório, é colocarmos a nós próprios três questões. A primeira é: das coisas que já estamos a fazer na educação agora, nos nossos diferentes contextos, o que estamos a fazer bem e devemos continuar? Porque há essa tendência para mudar por mudar. Nem tudo na educação é mau. Há coisas que funcionam, devemos identificá-las e apoiá-las. Uma segunda questão é: de tudo o que estamos a fazer na educação, o que não está a funcionar? Que coisas devemos deixar de lado sem arrependimento? E a terceira questão seria: há coisas que não estamos a fazer e que precisamos de inventar? Ou que estamos a fazer que devíamos atualizar e reformular? E aqui entra a criatividade.Esse relatório da UNESCO reflete sobre quais as práticas educativas que devem ser mantidas e quais devem ser abandonadas. Pode dar exemplos? O relatório deixa lá as perguntas e dá algumas dicas. Por exemplo — e isto está incluído no relatório —, sobre como as escolas não estão concebidas para permitir que as crianças se movimentem e esperam que elas passem horas e horas a receber passivamente enormes quantidades de informação. É um modelo pedagógico que claramente não foi concebido para a forma como os seres humanos, crianças e adultos, aprendem..A questão é como fazer com que as nossas escolas sejam locais onde as crianças desenvolvam realmente o seu potencial. E não só a escola. Os pais, em casa, são os primeiros e mais influentes educadores dos próprios filhos.". É necessária também uma outra arquitetura escolar? Essa é outra proposta. Não estamos propriamente a dizer que tudo tem de ser mudado, mas estamos a questionar porque é que todas as escolas do mundo, quase todas as escolas, parecem ser feitas com o mesmo molde e o mesmo tecido. Todas têm uma estrutura muito semelhante, e essa estrutura não permite o movimento. Existe muito isolamento, tanto da escola para a comunidade, como dentro das paredes da escola, entre salas de aula e grupos. São pequenas bolhas que coexistem e que não aproveitam o trabalho colaborativo que poderia ocorrer. O relatório da UNESCO diz que estamos a pensar na aprendizagem das crianças como se fosse algo colaborativo, porque aprendem em grupo, mas, na realidade, mesmo trabalhando em grupo, continua a dar-se prioridade aos percursos individuais ou individualistas. “É uma tragédia que aprender seja considerado uma obrigação e não uma aventura”, diz. Foi isso que a levou a implementar o Método Filadélfia, quando procurava a melhor educação para os seus filhos? Em parte, sim, terá sido isso. Tornei-me professora por acidente; não era professora, não fazia ideia do que significava ser professora. Comecei a ensinar os meus filhos na minha própria casa e tornei-me professora com eles, sentada no chão, a explorar, a aprender e a adorar aprender. Sempre adorei livros, cultura e música, e queria passar essa paixão aos meus filhos porque sabia que seria um tesouro na vida deles, tal como sempre foi na minha. E bem, quando chega a altura do primeiro deles começar a escola, aí sou atingida com o duro golpe da realidade. Experimentei uma escola, experimentei uma segunda, uma terceira. Quando cheguei à terceira escola, percebi que não podia estar a mudar a escola do meu filho todos os anos e que, se realmente queria algo diferente, precisava de ser eu a encontrar a escola que queria para os meus filhos. E depois peguei na filosofia de Glenn Doman (educador norte-americano que fundou o Instituto para Desenvolvimento do Potencial Humano nos anos 50 do século passado), na qual baseei a minha educação doméstica, e noutras como a do projeto Artful Thinking, de Harvard, e comecei a aplicar o que é hoje o nosso método Filadélfia, numa pré-escola muito pequena que consegui abrir com apenas 17 crianças nesse primeiro ano, em 2004, em Águas Calientes, uma pequena cidade no umbigo geográfico do México. Qual a filosofia por trás desse método? O que o torna diferente?Embora a crise global da aprendizagem tenha muitos fatores e não possamos culpar todas as escolas e famílias, devemos ser suficientemente humildes para pensar que pelo menos parte desta crise da aprendizagem tem a ver com a pedagogia do ensino inicial da leitura. Porque os alunos, as crianças e os jovens estão a ler, estão a descodificar. Não parece ser esse o problema. O problema vem com a compreensão. Eles conseguem ler e repetir oralmente o que está escrito, mas não atingem a metacognição. E há pesquisas que nos dizem que, para que exista compreensão na leitura, precisamos de fluência e vocabulário, entre outras coisas. E a forma como ensinamos os nossos filhos a ler é muito mecânica, fortemente baseada, em sistemas como o nosso, na fonética. E a fonética, com as suas regras — mais transparentes em algumas línguas do que noutras —, exige um esforço cognitivo significativo. Ora, os estudos dizem-nos que que toda a energia que dedicamos à descodificação é energia que roubamos à compreensão. Temos de ser capazes de aceder às palavras, à compreensão das palavras, de uma forma muito mais fluída e automática. E esse é o Método Filadélfia. Trata-se de os nossos filhos aprenderem a reconhecer as palavras visualmente, de relance, que é a forma como os leitores avançados realmente leem..Os alunos, as crianças e os jovens estão a ler, estão a descodificar. Não parece ser esse o problema. O problema vem com a compreensão. Eles conseguem ler e repetir oralmente o que está escrito, mas não atingem a metacognição".. E uma das ideias é que a leitura seja ensinada às crianças mais cedo, logo nos primeiros anos de vida. Porquê? Sim. Não se trata apenas de repensar a forma como estamos a aprender, mas também quando. Ler não é uma disciplina escolar; essa é uma das grandes tragédias. Confundimo-la com uma disciplina escolar e, como tal, incluímo-la no ensino primário, como parte do currículo. Mas ler é, na verdade, uma função cerebral, tal como falar ou andar. Se uma criança pequena pode aprender a ouvir e a compreender a linguagem falada, que entra pelo ouvido, porque não poderia aprender a ler e a compreender a linguagem escrita, que é a mesma linguagem, só que chega por uma via sensorial diferente, que é a visão em vez da audição. É o mesmo cérebro que processa estas mensagens. A via é diferente, mas o cérebro é o mesmo. Estamos a perder um tempo precioso nesses primeiros anos de vida? Sim, é isso mesmo. E a grande diferença, a razão pela qual as crianças não aprendem a ler espontaneamente, tal como parecem aprender a falar, é porque não apresentamos estímulos de leitura com duração, intensidade e frequência suficientes, como fazemos acidentalmente com a linguagem falada.Então a leitura deveria ser introduzida no pré-escolar?Sim, claro. Aos 3 anos, no máximo. Mas, de preferência, mesmo no jardim de infância ou em casa. Quando uma criança está a aprender a falar, pode estar a aprender a ler simultaneamente. Eu sei que parece um pouco duro, mas não estamos a falar de colocar crianças pequenas em coletes-de-forças para lhes dar aulas de vocabulário e gramática. Não. É um processo natural e intuitivo, tal como falar.. Olhando para os currículos escolares e os programas educativos atuais, parece haver hoje um privilégio das chamadas disciplinas STEM (Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática) em prejuízo das Humanidades. Estamos a formar para sociedades mais técnicas e competitivas e a menosprezar competências como a leitura ou o pensamento crítico? Penso que não podemos generalizar. Concordo que, com a chegada da Inteligência Artificial e a ênfase dada à tecnologia, há esta aparente corrida para garantir que as crianças são capazes, quando chegarem à fase adulta, de ter os melhores empregos, as melhores posições. À partida, pode parecer que estamos a negligenciar o aspeto humanístico. Eu acredito num modelo equilibrado, numa escola que deve inspirar as nossas crianças e jovens a serem, por um lado, altamente capazes, mas, ao mesmo tempo, profundamente humanos. E há alguns sistemas educativos que estão a fazer isso, estão a tentar alcançar um equilíbrio. A Índia é um exemplo. Há seis ou sete anos, pouco antes da pandemia, lançou o Currículo da Felicidade, focado em ajudar as crianças a aprender competências socio-emocionais para enfrentar os principais desafios da vida. Começou apenas em Deli e tem vindo a espalhar-se para outras regiões. E outros países também estão a começar a implementá-lo. Ter os alunos a saber gerir as suas emoções e bem-estar é tão necessário no percurso académico quanto o domínio de competências técnicas específicas, como Matemática, Engenharia, Tecnologia, porque, em última análise, precisaremos dos nossos sentimentos e emoções para podermos continuar a aprender para o resto das nossas vidas, para podermos autogerir o nosso próprio conhecimento e aprendizagem. Mas acho que parte do problema também advém do facto de sentirmos que temos de escolher entre uma coisa ou outra. E isso decorre da segmentação entre disciplinas. Temos de encontrar uma forma de todas as disciplinas se complementarem..[A leitura deveria ser introduzida no pré-escolar?] Sim, claro. Aos 3 anos, no máximo. Mas, de preferência, mesmo no jardim de infância ou em casa.. A tecnologia e as redes sociais são hoje vistos como vilões na Educação e na formação de crianças e jovens. Qual deve ser o papel das tecnologias digitais na educação de infância? Há ou não lugar para os telemóveis nas escolas? Há estudos que nos dizem que, quando as crianças estão offline na escola, conseguem melhores resultados académicos. Distraem-se menos, não só com os seus próprios telemóveis, mas também com os de outras crianças. Mas também há outros estudos — e elas vêm da mesma fonte, que neste caso é a OCDE com o último relatório da prova PISA — que nos dizem que, se os telemóveis ou outros dispositivos digitais forem utilizados com um tempo delimitado e para atividades focadas na parte académica, então há uma melhoria no desempenho, os alunos aprendem mais. Eu acho que essa é a grande questão, não tanto se devemos ou não usar telemóveis ou outros dispositivos, mas sim como regulá-los e utilizá-los da melhor forma para que sejam um impulso para os jovens e não um peso. Por isso, eu diria sim aos dispositivos digitais nas escolas, mas não completamente livres e sem regulação.Este é um tema que ultrapassa o próprio ambiente escolar. Como vê a influência da tecnologia no desenvolvimento cognitivo e socio-emocional das atuais gerações?Esses dispositivos são desenhados para criar dependência. E é essa parte socio-emocional que mais me preocupa. A parte cognitiva também, sim, mas não tanto quanto a socio-emocional e a questão das dependências. A resposta, no entanto, não é eliminar os aparelhos, porque isso não é possível. Todos nós já vivemos com eles. Repito, trata-se de aprender a regulá-los e aprender a utilizá-los com responsabilidade. Essa é uma responsabilidade dos adultos. Cabe a nós. E isso vai além das escolas, vai para as famílias e os pais dos alunos, sobretudo..A grande questão não é tanto se devemos ou não usar telemóveis ou outros dispositivos, mas sim como regulá-los e utilizá-los da melhor forma para que sejam um impulso para os jovens e não um peso.". Como vê a evolução do papel dos professores na sociedade atual? Estão preparados para educar as crianças para um futuro cada vez mais incerto e complexo, com rápidas mudanças tecnológicas, climáticas e sociais?Exige mais dos professores, seguramente, até porque temos atribuído às escolas, por exemplo, a responsabilidade da criação dos nossos filhos. A própria saúde socio-emocional das crianças recai sobre os professores. Falamos sobre como a escola falhou com as nossas crianças, nessa crise global da aprendizagem, mas temos de falar também sobre como a sociedade falhou com a escola, e principalmente com os professores. Porque não apenas exigimos deles muito além do que inicialmente estavam preparados para oferecer, como também os deixámos sozinhos. Eu acredito que, se realmente houver uma mudança, uma evolução na educação, ela deve ser liderada pelos professores. É nos professores que coloco minhas esperanças. Porque os sistemas educativos são como elefantes pesados, difíceis de mover e, às vezes, quando finalmente se movem, a vida já está muito à frente. Mas um professor pode ser muito mais ágil na tomada de decisões. A questão é dar ao professor autonomia para que possa tomar certas decisões que hoje não lhe são permitidas. Assim como se lhe exige tanto, que também se lhe conceda certa liberdade. E, claro, contrapartidas. Motivação, alegria, entusiasmo, tempo, para que ele possa continuar a desenvolver suas habilidades profissionais. Porque, tristemente, vamos vendo muitos professores esgotados, que deixam a profissão por frustração. Pessoas que poderiam ter sido grandes educadores, mas que se deparam com parede após parede e, infelizmente, muitos desistem.Como podemos superar esta crise global da educação num futuro próximo? Que razões temos para ser otimistas?Eu sou otimista. Coloco a minha confiança nos professores e nos pais. E que, juntos, possam impulsionar os sistemas escolares. Acredito que a mudança será de baixo para cima, da base da pirâmide para o topo. São eles — somos nós —, pais e professores, que podemos impulsionar isso. Não acredito que a mudança venha do sistema político em direção à escola. A educação não muda por decreto.Se lhe pedisse uma medida para implementar imediatamente, qual seria?Se fosse uma só medida, dentre todas as possíveis, eu escolheria o “quando” e o “como” ensinamos as nossas crianças a ler. Porque uma criança, um jovem, que é um bom leitor, vai aprender até sozinho, mesmo que o resto falhe. Alguém que é um bom leitor poderá ser realmente um aprendiz ao longo da vida. Se queremos aprendizes para a vida toda, precisamos de leitores para a vida toda. Então, a primeira coisa que eu mudaria seria isso: o “quando” e o “como” ensinamos nossas crianças a ler..Falamos sobre como a escola falhou com as nossas crianças, nessa crise global da aprendizagem, mas temos de falar também sobre como a sociedade falhou com a escola, e principalmente com os professores."