Sociedade
16 outubro 2023 às 22h13

Uma voz independente para os imigrantes em Portugal

A brasileira Juliet Cristino, empregada de limpezas e mãe de dois filhos, tornou-se uma representante de causas em prol dos imigrantes em Portugal. E já acumula algumas vitórias.

Amanda Lima

Era dia 11 de junho de 2021 e a Praça do Comércio em Lisboa estava repleta de visitantes tirando fotos, sentados nas esplanadas e a apreciar a tarde ensolarada de domingo. Um grupo diverso chamava atenção e atraía olhares curiosos dos muitos turistas. Com faixas e cartazes, pessoas das mais diversas nacionalidades protestavam contra o sistema utilizado pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para a regularização da documentação de imigrantes. Uma voz com sotaque do estado do Espírito Santo e amplificada com megafone se destacava entre a centena de protestantes: a de Juliet Cristino, líder da manifestação.

"Eu estava esperando meus documentos há quase dois anos, estava com medo de ser deportada por causa do protesto, mas não demonstrei o medo, tive coragem e fui, cumpri com o que prometi", relata a brasileira, hoje com 33 anos e mãe de dois filhos.

Ali, seria o começo de uma trajetória que a levaria a ser conhecida como uma voz independente que defende os interesses de todos os imigrantes em Portugal. Uma vida que é equilibrada com o trabalho de empregada de limpezas, o cuidado com a própria casa impecavelmente arrumada e mãe da bebé Antonella, de oito meses e Pyetro, com oito.

Era o início de uma longa trilha, que a conduziu há poucos dias ao Parlamento português para uma audiência. Juliet reivindica que o tempo de espera a partir da aceitação da Manifestação de Interesse (MI) seja contabilizado para obter a cidadania portuguesa. Essa é a nova luta da imigrante, mas não foi a primeira. Ao aterrar no Aeroporto de Lisboa na manhã do dia 23 de maio de 2019 - a primeira vez na vida que embarcou em um avião - jamais imaginou estar naquela cadeira entre parlamentares, em um protesto e em tantas outras reuniões com autoridades para relatar situações que os imigrantes passam em Portugal.

Apesar de nunca ter imaginado esta posição, as palavras que utiliza para se autodefinir não causam estranheza: "atitude", "correr atrás", "coragem", "odeia injustiças" e "determinada". Os termos realmente podem descrever a trajetória de Juliet, não só antes de recomeçar a vida distante 7 mil quilómetros de casa com o filho no colo, algumas malas e o desejo de ter mais qualidade de vida e segurança.

Juliet ficou órfã ainda criança e foi criada pela avó em uma área rural, onde aprendeu os mais diversos afazeres, como ordenhar vacas e cozinhar. Mas não era essa a vida que queria ter. Aos 18 anos, foi para Vitória, capital do estado do Espírito Santo, onde teve vários empregos, como operadora de caixa em farmácia. Ficar sem trabalhar nunca foi uma opção, e, mesmo que fosse, não seria a escolha da jovem que sempre prezou pela independência em todos os sentidos, principalmente a financeira. "Eu sei que não posso contar com ninguém, tudo eu preciso ir atrás eu mesma tenho de ir", pontua.

Começou a estudar Engenharia Civil, curso que faltou um ano por completar. Depois, obteve o grau de Técnica em Segurança no Trabalho, área em que atuava em um cargo de liderança antes de deixar o emprego em comum acordo de demissão. Na altura, Juliet já tinha o filho Pyetro, de três anos. "Ele chegou para preencher a minha vida, é a minha alegria, a minha companhia de sempre", afirma.

Foi pensando especialmente na criança que se preocupava cada vez mais com a segurança. No Brasil, já teve uma arma apontada na cabeça em um assalto e temia pelo pior. Mesmo com um bom emprego, um apartamento próprio financiado pelo programa de habitação "Minha Casa, Minha Vida", lançado em 2009 pela então presidente Dilma Rousseff (PT), a qualidade de vida era primordial.

Esta foi a principal motivação para iniciar o planeamento da mudança. Pensou logo em Portugal pela facilidade com o idioma para o filho, o facto de já existir uma comunidade brasileira no país e a perspetiva de uma vida tranquila. "Não vim pra cá pra ficar rica, se fosse assim eu ia para os Estados Unidos e também não adianta trabalhar tanto e não ter tempo para os meus filhos, que são tudo", explica.

Ao chegar à capital portuguesa, onde ficou inicialmente em um hotel, a imigrante não perdeu tempo: foi atrás de documentos, casa para morar, babá para a criança e um trabalho. A dificuldade começou pela casa: das quase 100 senhorias e senhorios que contatou, apenas uma a aceitou. O "problema" era ter uma criança. Uma segunda senhoria até aceitou, mas propôs o dobro do valor para o quarto, que já custava 260 euros na altura.

Arranhar trabalho não foi difícil. Primeiro, vendia planos de energia de porta em porta, mas o serviço era complicado. "Tínhamos que entrar nos prédios, os moradores não queriam abrir, às vezes até chamavam a polícia e eu não gosto de confusões", conta. Depois, foi para a área de limpezas de casas, onde está hoje.

Juliet admite que não é uma função fácil, mas tem uma vantagem que considera essencial: noites, sábados, domingos e feriados com a família, especialmente após o nascimento da segunda filha. "Eu não abro mão desse tempo com eles", relata. Esse é o principal motivo para nunca ter trabalhado na área da restauração, uma das que mais emprega estrangeiros - e onde os horários quase nunca combinam com uma rotina familiar.

Aos poucos e com a pandemia de Covid-19 pelo caminho, a vida da brasileira estruturou-se: arrendou uma casa, que foi partilhada para ficar mais barata, arranjou escola para o filho e conquistou um bom número de casas para limpar, contribuindo com a Segurança Social e os impostos obrigatórios, itens essenciais para obter o que mais desejava: a Autorização de Residência (AR).

Assim como outros milhares de imigrantes, Juliet veio para Portugal e fez uma Manifestação de Interesse (MI), uma espécie de brecha na lei portuguesa que permite a entrada de estrangeiros para trabalhar. Já passava mais de dois anos desde o pedido e não abriam vagas para a realização da entrevista no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), a última etapa antes de apanhar o documento. Mas, para Juliet e outros milhares de trabalhadores estrangeiros, o problema era o sistema utilizado: as vagas apareciam sem aviso prévio e acabavam em minutos, literalmente.

"Eu lembro bem. Estava descendo o morro perto da estação, cheguei aqui em casa e vi que tinha vaga ainda, a próxima era pra 28 de outubro. Mas a tela do meu celular estava partida bem ali onde eu precisava clicar. Em segundos eu saí da página e voltei, mas a vaga tinha sumido. Ali foi a gota d"água. Eu estava esperando há tanto tempo, sempre trabalhando muito, eu tinha que fazer alguma coisa", relembra.

O sentimento no momento foi de "desespero" e deu início àquela que seria a primeira causa em prol dos imigrantes em Portugal: mudar o sistema de marcações no SEF. "Era muito injusto. Não tinha aviso nenhum de abertura, poucas vagas e sem chance para quem estava trabalhando naquele momento", desabafa.

Ao mesmo tempo, considerava o processo falho. "Conheci muitas pessoas que chegaram bem depois que eu e já estavam com o documento, simplesmente porque estavam no site na hora que as vagas abriam" ressalta. Havia pelo menos dois mil imigrantes que tiveram o processo aceito entre 2017 e 2019 e que ainda não tinham conseguido a marcação, principalmente por estarem a trabalhar naqueles minutos.

"O que me moveu foi o sentimento de desespero mesmo. Eu sabia que não era só eu, que milhares de trabalhadores sofriam, que não tinha previsão de abrir de novo. Eu senti que precisava fazer algo e fiz", rememora. O primeiro passo foi estudar o sistema e as leis do país, a pensar em uma solução. Juliet não estava habituada com a legislação portuguesa, mas a linguagem jurídica não foi um problema, já que no Brasil costumava consultar leis por causa do trabalho na área de Segurança do Trabalho, como normas técnicas. Uma ideia estava clara: era preciso ter alguma regra por ordem de chegada no sistema de marcações.

Foi quando a brasileira pensou na ordem cronológica, em que o próprio SEF convoca os imigrantes via portal. Mas era preciso mobilizar. Juliet nunca havia organizado um protesto, mas investigou como fazê-lo, com aviso às autoridades municipais, a convocação de pessoas pelas redes sociais e a criação do Comité dos Imigrantes em Portugal.

A causa teve alguma repercussão, mas Juliet acredita que bem mais pessoas poderiam ter participado. O motivo é aquilo que também sentiu, mas que não a impediu: o medo. Mesmo com a mobilização, nada mudou. A brasileira continuou com a reivindicação e, diante da falta de resultados, ameaçou um novo protesto, desta vez nacional.

Foi quando recebeu uma carta para conversar com as autoridades portuguesas. Seria a primeira de muitas. O encontro foi com Francisca Van Dunem, ex-ministra da Justiça. "Contei tudo. Sabia que estava falando em nome de muitas pessoas. Eu realmente senti que ela realmente não sabia de tudo que passávamos, até o olho da ministra ficou cheio de água", ressalta.

Depois, novos encontros aconteceram e, pouco mais de dois meses, aconteceu a mudança que faria para sempre a diferença na vida de milhares de imigrantes que escolheram Portugal: passaram a ser convocados pelo SEF para a entrevista. Não era mais preciso ficar madrugadas à espera com o portal aberto, nem pagar para algumas pessoas que cobravam altos valores para fazer um "plantão no site".

A mudança foi anunciada no dia 19 de agosto. O sentimento de Juliet foi de alívio. "Eu me senti muito feliz e aliviada, porque sabia o quanto aquilo era importante para muita gente, foi uma vitória", celebra sorrindo. Desde então, Juliet é reconhecida pela vitória. Recebe abraços e mensagens carinhosas de agradecimento de imigrantes das mais diversas nacionalidades, mas não só. Amigos e amigas do Brasil comemoram de longe as conquistas. É o caso de Elizabeth Moura de Souza, ex-colega de trabalho. "É uma pessoa com bom coração, sempre disposta a ajudar os outros. Ela saiu do anonimato para ajudar a todos em Portugal, sinto muito orgulho", releva a amiga.

"Estou representando todo o povo imigrante deste país". Esta foi uma das frases de Juliet em uma sessão da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias no mês de outubro. A imigrante foi convocada pelo Parlamento após obter milhares de assinaturas em uma petição online com uma nova causa: que o governo reconheça como residência legal o tempo de espera pela documentação por parte do SEF.

Aos deputados e deputadas, a brasileira explicou que, atualmente, o tempo compreendido como "residência legal" só começa a contar quando o imigrante obtém a Autorização de Residência dada pelo SEF. "É injusto. Uma pessoa que deu entrada nos papéis em 2017 e pegou o documento em 2021, vai ter que esperar cinco anos para pedir a nacionalidade e mais dois até ficar pronta. São pelo menos nove anos aqui e contribuindo para o país", ao citar um exemplo prático.

A reivindicação é que a contabilização dos cinco anos comece quando o SEF aprova a Manifestação do Interesse, ou seja, depois que todos os documentos submetidos pelo imigrante, como comprovativo de Segurança Social, contrato de trabalho ou recibos verdes, são avaliados e aprovados pelo órgão. Segundo a brasileira, não há motivo para que não seja desta forma, já que o SEF conferiu que todas as exigências estão atendidas.

"A demora não é uma negligência do imigrante. É demora do órgão", complementa. No caso da própria Juliet, foram dois anos e seis meses à espera -- que seria maior caso não tivesse conseguido que o sistema fosse modificado. A brasileira ainda complementou na sessão que a causa não a favorece, já que pode solicitar a nacionalidade através da filha Antonella, que nasceu em Lisboa.

Juliet está confiante com a causa, que segue em análise no Parlamento. Apesar de já se sentir confiante entre as autoridades e políticos, afirma que suas causas não possuem ambições políticas, muito menos partidárias. São apenas humanas e baseadas em ajudar a quem precisa. Ela garante que não vai desistir -- e sempre vai adicionando novas batalhas à lista.

amanda.lima@globalmediagroup.pt