Cultura
12 fevereiro 2022 às 07h00

RARET - Quando Glória do Ribatejo era central no eixo EUA-Portugal

Foi através da série da Netflix Glória, que os portugueses tomaram conhecimento da RARET, a rádio norte-americana que emitia propaganda anti-comunista a partir da charneca ribatejana. Mas o estudo de Vítor Madaíl Herdeiro, RARET - a Guerra Fria combatida a partir da charneca ribatejana, agora lançado pelas Edições 70, veio demonstrar a real importância estratégica desta cooperação para os países envolvidos.

Imagine-se um Ribatejo quase sem estradas e ainda sem a ponte de Vila de Franca de Xira, em que todo o transporte de pessoas e mercadorias era feito em barcaças Tejo abaixo, Tejo acima, ou em carros de bois. Um Ribatejo tão pobre e tão desprovido de tudo (eletricidade, saneamento, cuidados médicos...) que se tornaria o berço do neo-realismo português, inspirando autores como Soeiro Pereira Gomes e Alves Redol. Este último, homem de Vila Franca, mudar-se-ia durante uns meses para a aldeia da Glória do Ribatejo, dedicando-lhe um estudo etnográfico cheio de admiração pelo modo como os glorianos superavam todos os dias o esquecimento a que eram votados pelo poder central. Um esquecimento de tal maneira persistente que, mais de 15 anos e uma guerra mundial depois da publicação do livro de Redol (Glória, uma Aldeia do Ribatejo - Um ensaio etnográfico), os emissários do governo norte-americano, em busca de um lugar para tão singular empreendimento, mal podiam acreditar estar na Europa, a escassos 80 kms de Lisboa.

E, no entanto, seria precisamente nesse lugar próximo e, no entanto, remoto que se instalaria a RARET, que a partir do Centro Emissor da Glória do Ribatejo retransmitiria para os países da então denominada "Cortina de Ferro" as emissões da Radio Free Europe, organização patrocinada pelo National Commitee Free Europe, fundada nos Estados Unidos em 1949, com financiamento da CIA e dos fundos angariados pela designada Cruzada da Liberdade. Objetivo: difundir propaganda anti-comunista e proceder àquilo que, em ambiente de guerra, fria ou não, se chama "ação psicológica". Contra todos os prognósticos, os norte-americanos ficaram na Glória até à década de 1990, mas a maioria dos portugueses (incluindo, como mais adiante se verá, os especialistas em História Contemporânea) só seria alertada para a real dimensão da RARET quando, no final do ano passado, estreou na Netflix a série portuguesa Glória.

Por um acaso feliz, ao mesmo tempo que o argumentista Pedro Lopes escrevia a sua história no ISCTE, um mestrando, Vitor Madaíl Herdeiro, surpreendia os professores com a proposta de uma dissertação centrada na RARET. "Sabíamos que tinha existido", conta Luís Nuno Rodrigues, catedrático de História e diretor do Centro de Estudos Internacionais, "mas a verdade é que, na maior parte dos estudos publicados (e há muitos) sobre o papel de Portugal na Guerra Fria ou sobre as relações diplomáticas com os Estados Unidos neste período, não há mais do que um ou dois parágrafos sobre a RARET. Em contrapartida, há muita bibliografia sobre o estabelecimento dos norte-americanos na Base das Lajes ou sobre a integração de Portugal no Plano Marshall de apoio à reconstrução dos países europeus no pós-Segunda Guerra Mundial." Foi, por isso, com surpresa e confesso ceticismo que quer Luís Nuno Rodrigues, quer a orientadora de mestrado do autor, Ana Mónica Fonseca, receberam esta proposta. "O tema pode ser interessante mas tem documentação para sustentar a tese?" Vítor Herdeiro porfiou e encontrou.

Tomara conhecimento da RARET quando esta ainda funcionava, no final da década de 80, como nos conta: "Fui para a Força Aérea em 1989 e tive a sorte de ser integrado no comando da NATO que estava colocado em Oeiras e foram alguns camaradas norte-americanos quem, pela primeira vez, me falou da RARET, o que para mim era uma novidade total. Um dia levaram-me lá a almoçar e fiquei impressionadíssimo com a dimensão de tudo aquilo. Explicaram-me o que era mas nunca mais pensei no assunto." Seria anos depois, quando foi para o ISCTE fazer a licenciatura em História e depois o Mestrado, que o tema lhe voltaria ao espírito. "Estava muito interessado nas questões da Guerra Fria, nas relações luso-americanas, mas, de facto, ao ler sobre o tema [autores como António Telo, Luís Nunes, Fátima Rollo, Moreira de Sá, etc] encontrei muitos aspetos exaustivamente estudados, à exceção da RARET. Depois, quando fui para a internet ver o que havia, é que acabei por encontrar blogues de pessoas que lá tinham trabalhado, o que seria precioso porque me deu muitas dicas sobre a existência de fontes portuguesas e norte-americanas." A saber: o Fundo Carlos Ribeiro, da Fundação Portuguesa das Comunicações, o Arquivo Histórico do Ministério dos Negócios Estrangeiros para o período 1974-75, a Torre do Tombo (incluindo alguns elementos dos diários de Salazar) ou o Hoover Institution Library and Archives. Igualmente determinantes foram os registos áudio das entrevistas realizadas em Lisboa por Sig Mickelson a várias figuras da RARET, a começar pelo seu vice-presidente, figura-chave de toda esta "trama" à la John Le Carré, Gregory Thomas. "Colocado em Lisboa como adido na Embaixada (o que, na verdade, era um disfarce), conseguiu uma entrevista com Salazar graças à intermediação do banqueiro Ricardo Espírito Santo, homem da máxima confiança do presidente do Conselho", conta Vítor Herdeiro.

Para o argumentista de Glória, as memórias pessoais (não do serviço militar mas de família) foram também as sua primeiras fontes para a história da RARET, como, aliás, escreve no prefácio deste livro: "A minha família materna trabalhou na Emissora Nacional, cresci naqueles corredores, assisti a muitas emissões de programas, concertos de orquestras que eram gravados para a Antena 2, sentado num canto do estúdio da antiga Rua do Quelhas, transformado agora em condomínio. Ainda hoje quando entro num estúdio de rádio sou assaltado por essas recordações e pelas histórias que o meu avô contava sobre o Serão para Trabalhadores, o Festival da Canção Portuguesa ou a Volta a Portugal em Bicicleta. Mas outras histórias surgiam nessas conversas sobre rádio, e uma delas era recorrente, as visitas à cidade americana no Ribatejo, a RARET. Foram as suas muitas histórias o gérmen do que viria a ser a série Glória, que é uma obra ficcional, mas ancorada numa realidade que é um fresco da sociedade da época, das suas estruturas sociais, mentais, das dinâmicas familiares e de género."

O que Pedro Lopes destaca também e Vítor Herdeiro confirma "é o impacto positivo da presença norte-americana naquele local preciso da lezíria ribatejana, em que tudo faltava. Com as necessidades logísticas da rádio e de quem nela trabalhava, chegaram as infra-estruturas: a luz eléctrica, o saneamento, a escola, a assistência médica, o bairro para os trabalhadores, para além dos cerca de 400 postos de trabalho." Para Vítor Herdeiro, "essa importância local era tão grande que justifica, só por si, que, em pleno PREC, a RARET não tenha sido incomodada apesar de difundir propaganda anti-comunista. E é preciso lembrar que esta zona do Ribatejo estava numa zona fortemente intervencionada pelo processo da reforma agrária."

O mistério disto tudo, nota Pedro Lopes, é como estando tanta gente envolvida, a RARET foi sendo durante tanto tempo pouco mais do que uma nota de rodapé nos livros de História: "É difícil compreender como um complexo de 200 hectares onde trabalhavam cerca de quinhentas pessoas, para além das muitas crianças e jovens que frequentavam a escola, e que funcionou durante mais de quarenta anos, poderia ser desconhecido da opinião pública ou mesmo dos historiadores que se dedicam à investigação da nossa história recente."

Para Luís Nuno Rodrigues, o estudo de Vítor Herdeiro veio mudar para sempre este panorama: "Não só é um trabalho histórico muito meticuloso como veio provar cabalmente que a instalação e funcionamento da RARET tem a mesma importância estratégica para Portugal e para os Estados Unidos que a instalação da base das Lajes nos Açores." As duas situações são, aliás, parte do mesmo processo histórico, como o autor escreve logo na introdução: "Pretende-se com esta investigação contribuir para o estudo das relações luso-americanas durante a Guerra Fria, revelando o papel desempenhado pelas autoridades portuguesas no contexto da luta ideológica então travada e que ajudou a definir a segunda metade do século XX. Fazemo-lo a partir de um objeto de estudo, a RARET, cuja duração temporal inicialmente prevista era de uma década, mas que na realidade durou quatro décadas e meia, constituindo-se como a espinha dorsal de um sistema de radiodifusão internacional da maior importância para a política externa dos Estados Unidos no âmbito da projeção do seu soft power. A escolha do tema justifica-se como mais um elemento para a compreensão daquilo que foram as relações entre Portugal e os EUA nos primórdios da Guerra Fria e o modo como as autoridades portuguesas capitalizaram a luta anti-comunista e anti-soviética travada pelos Estados Unidos como mais um elemento da sua afirmação e inserção na esfera de influência da nova potência ocidental."

Não admira, pois, que, face à importância do tema, quer ao volume e relevância das fontes históricas, o autor tenha avançado já para o doutoramento, com o estudo da RARET pós-1963, incluindo, nisso, períodos de tensão entre os dois países gerados quer pela Guerra Colonial, quer pelo ambiente revolucionário pós-25 de Abril de 1974.

"Percebi, ao estudar a documentação, que não tinha espaço numa dissertação de mestrado para abarcar toda a cadeia de acontecimentos das várias dinâmicas que se criaram ao longo dos mais de 40 anos em que a RARET esteve em Portugal. No mestrado falei apenas do período de vigência do primeiro contrato, ou seja, até 1961, mas há muito mais para falar até 1996, com contextos muito diferentes, quer em Portugal, quer nos Estados Unidos", explica.

Ao que parece, da RARET, abandonada pelos norte-americanos em 1996 quando a Guerra Fria já não era mais do que pasto para alguma nostalgia, ainda nos podem chegar muitas surpresas. Para a História mas também para a ficção, até porque, de mansinho, Pedro Lopes deixou cair a possibilidade de haver uma segunda temporada de Glória.

dnot@dn.pt