Sociedade
15 abril 2023 às 17h00

Assédio sexual. Deputada estadual brasileira acusa Boaventura de Sousa Santos

Bella Gonçalves decidiu "dar a cara" e garante que o seu "não era um caso isolado".

Fernanda Câncio com LUSA

A deputada estadual brasileira Bella Gonçalves afirmou esta sexta-feira ter sido assediada sexualmente por Boaventura de Sousa Santos, então do Centro de Estudos Sociais (CES), e que tentou denunciar o caso mas que lhe disseram que aquele professor catedrático "era intocável".

A deputada estadual de Minas Gerais, que já tinha dado o seu relato, ainda que não identificada, na quinta-feira, ao Público e Observador, decidiu assumir a sua identidade numa entrevista ao portal 'online' brasileiro Agência Pública, especializado em jornalismo de investigação.

Em declarações à Lusa, a deputada do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) lembrou que, na altura do assédio, em 2013, procurou professores e professoras do CES da Universidade de Coimbra.

"O tom geral era que de facto ele era intocável, qualquer denúncia poderia colocar em risco o meu processo de doutorado. Eu não tinha como colocar em risco o meu processo de doutorado estando a receber uma bolsa", acrescentou, sublinhando que, caso o doutoramento não fosse concluído, teria de devolver o dinheiro ao Governo brasileiro.

A deputada disse ainda que chegou a denunciar o assédio por parte de Boaventura de Sousa Santos ao "coordenador do curso, que à época se estava tornando diretor do CES, que era António Sousa Ribeiro". Sousa Ribeiro é diretor do CES desde abril de 2019, tendo Boaventura Sousa Santos passado desde essa altura a "diretor emérito" da instituição.

Questionada sobre se teve conhecimento de mais casos de assédio, respondeu que o seu "não era um caso isolado".

Em agosto de 2013, com 25 anos, a agora deputada do segundo maior colégio eleitoral do Brasil iniciou o doutoramento no programa de Pós-Colonialismos e Cidadania Global no CES e aprofundou a relação de trabalho com o professor Boaventura de Sousa Santos, o seu orientador.

Ao agendar uma das reuniões de orientação de tese, perguntou se se encontrariam no gabinete do investigador, ao que, relata, o professor respondeu que a reunião seria na casa do próprio.

"Não era reunião de orientação coisa nenhuma. Ele estava ali tentando uma aproximação. Oferece bebida, eu rejeito. Depois fala que estar próximo dele me daria muitas vantagens no meio académico, até se sentar do meu lado, agarrar a minha coxa e sugerir que poderia aprofundar a relação. Nesse momento eu pego as minhas coisas, saio meio atordoada de lá."

No dia seguinte, teve uma reunião na sala de Boaventura para discutir um outro trabalho feito juntamente com o seu então companheiro e, segundo Bella Gonçalves, o investigador fez críticas bastante duras ao trabalho, em especial ao seu companheiro.

"Eu compreendi que se tratava de uma retaliação, que se tratava de um assédio moral após uma negativa de aproximação íntima", diz.

A deputada afirma ainda que na altura, além de recear fazer a denúncia por o doutoramento estar em curso, não via contexto para avançar.

"Agora tenho condições que muitas mulheres não têm para denunciar", afirma, referindo-se à visibilidade dada pelo cargo.

O DN questionou por email, logo na quarta-feira, e no contexto da investigação que o jornal tem em curso sobre o caso, Boaventura de Sousa Santos sobre esta situação, mas não obteve resposta.

Questionado pelo jornal, no mesmo dia, sobre se confirmava que existira a denúncia de assédio e na sequência dela fora necessário mudar o orientador da tese, o atual diretor do CES - e então coordenador do doutoramento em causa - António Sousa Ribeiro não quis esclarecer: "Há muitos motivos para se mudar o orientador de um doutoramento. Estando anunciada uma comissão de averiguações, prestarei todos os esclarecimentos e, se necessário, apresentarei prova documental na sede própria."

As denúncias de assédio e violência sexual envolvendo os investigadores Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins, também do CES, foram conhecidas esta semana, numa investigação do Diário de Notícias a partir de um capítulo de um livro sobre assédio sexual na academia da editora internacional Routledge (Má conduta sexual na Academia - Para uma Ética de Cuidado na Universidade).

Ambos os denunciados, cujos nomes , tal como o do CES, não são identificados no capítulo em causa, assumiram ao jornal serem os ali retratados como "Professor Estrela" e "Aprendiz", refutando todas as acusações. Anunciaram de seguida que iriam apresentar queixa por difamação contra as três autoras do capítulo - a belga Lieselotte Viaene, a portuguesa Catarina Laranjeiro e a norte-americana Miye Tom, três académicas que estiveram no CES entre 2007 e 2019. .

Já esta sexta-feira, após serem tornadas públicas as declarações de Bella Gonçalves e da ativista indígena Moira Millan (que igualmente relata um episódio de assédio perpetrado sobre ela em 2010 por Boaventura Sousa Santos) o CES, em comunicado, demarcando-se das citadas ameaças de processo na justiça, anunciou que estavam ambos suspensos enquanto durasse o inquérito interno.

Num segundo anúncio no mesmo dia, e já depois de Boaventura Sousa Santos enviar um comunicado às redações declarando o seu "auto-afastamento" das funções que desempehava no CES, a instituição veio certificar que a suspensão se deve a iniciativa dos próprios.

Leia também: "Todas sabemos". Boaventura Sousa Santos entre acusados de assédio no CES/Universidade de Coimbra

Bella Gonçalves explica que foram as declarações de Boaventura Sousa Santos e Bruno Sena Martins ao DN que a levaram a falar publicamente: "Quando eles se colocam numa posição defensiva, desqualificando as mulheres que escreveram o artigo, desqualificando inclusive o desempenho académico dessas mulheres, numa posição de negação absurda, ali eu já não tinha mais condições de me calar".

A deputada pondera ainda apresentar uma queixa formal às autoridades, mas admite que tem de avaliar a situação de desgaste que todo esse processo traria (nos termos da lei portuguesa, quaisquer crimes contra a liberdade sexual relacionados com a situação ocorrida estarão prescritos, já que o prazo de queixa é de seis meses após o conhecimento do crime e do seu autor).

Vendo com bons olhos o afastamento dos dois investigadores do CES, considera que o caso tem um grande alcance: "Eu não sou uma pessoa que acredita na justiça punitivista, não o quero ver pagar por o que ele fez. Não é sobre ele, é sobre a alteração desse sistema."

A deputada sublinhou que o CES e a Universidade de Coimbra são instituições muito importantes para o pensamento crítico, inclusive no Brasil e em toda a América Latina.

"O meu objetivo aqui não é de nenhuma forma atacar o legado do conhecimento científico que foi produzido ali, nem sequer atacar o conhecimento científico que foi produzido por Boaventura", concluiu.

Leia também: CES suspende Boaventura Sousa Santos e Bruno Sena Martins

Boaventura de Sousa Santos é desde abril de 2019, quando deixou a direção do CES, diretor emérito da instituição e coordenador científico do respetivo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, fazendo também parte da comissão permanente do seu conselho científico.

Já Bruno Sena Martins, formado em Antropologia, é, de acordo com o site do CES, co-coordenador do programa de doutoramento Direitos Humanos nas Sociedades Contemporâneas e docente no programa de doutoramento Pós-Colonialismos e Cidadania Global, tendo sido vice-presidente do conselho científico entre 2017 e 2019.