As tragédias dos incêndios estão gravadas no curriculum de António Costa, como o ferro em brasa deixa marcas na pele. Na biografia política do primeiro-ministro, os fogos estão sempre lá. A bater recordes, pelas piores razões: em 2005 era António Costa ministro da Administração Interna e arderam mais de 339 mil hectares e morreram 15 pessoas, entre elas 10 bombeiros. No ano passado, Portugal viveu a maior tragédia de sempre com a morte de 116 pessoas nos incêndios de Pedrógão e nos de outubro. Este ano, o fogo tem poupado vidas, mas não hectares de terras e bens e o incêndio que devastou a serra de Monchique já é considerado o maior da Europa com cerca de 27 mil hectares de área ardida.
O governo saiu chamuscado da tragédia do ano passado, mas não se queimou por completo. Costa recusou demitir-se (disse mesmo que se os acontecimentos se repetissem também não batia com a porta), segurou a ministra da Administração Interna até que uma intervenção pública do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, tornou insustentável a sua presença no governo - Constança Urbano de Sousa saiu do executivo realmente queimada, foi a sacrificada política pela perda de mais de 100 vidas humanas.
Com a devastação de Monchique pelas chamas, a oposição mostra que está atenta, vigilante. Ainda esta segunda-feira, o vice-presidente do PSD, David Justino, acusou o governo de falta de recato, humildade e de grande precipitação.
"Uma das coisas mais duras desta função é a da habitualidade do convívio com a morte. No dia em que deixar de me emocionar com os fogos e com as tragédias humanas que estão associadas a esta função, devo deixá-la. Se estiver vacinado para a dor não vale a pena", dizia o então responsável pela Administração Interna à Sábado, em 2006. A declaração sentimental de um governante que viria, enquanto primeiro-ministro, a ser acusado precisamente de falta de sensibilidade, por ter tardado em pedir desculpa ao país pelas mortes de 2017 e também quando no passado 8 de agosto disse que "Monchique é a exceção que confirma a regra do sucesso".
A oposição e comentadores políticos caíram-lhe em cima e o gabinete de Costa viu-se obrigado a emitir um comunicado onde apontava que as palavras do chefe do Governo tinham sido "descontextualizadas e deturpadas". "O primeiro-ministro não só não procurou desdramatizar ou desvalorizar a gravidade da situação em Monchique como disse, pelo contrário, que a situação era alarmante e ia agravar-se", dizia a nota.
Realismo ou frieza? Costa afirmou na visita ao Algarve que o incêndio não ficaria de imediato dominado, que se iria agravar e ainda se virou para o outro lado do Atlântico: "Na Califórnia dizem que o incêndio só será dominado em setembro."
Recusando quaisquer comparações com os acontecimentos do ano passado, António Costa afirmou que havia "a registar de positivo que felizmente não houve nenhuma situação de perda de vida". A esse nível, não há de facto comparações possíveis - o ano passado morreram 66 pessoas em Pedrógão e 50 nos fogos de outubro.
O "irritante otimista", como o Presidente da República lhe chamou em tempos, não arrisca, contudo, afirmar que o pior já passou: "Dizer que as pessoas podem estar descansadas é uma irresponsabilidade. Dizer que devem estar inquietas é uma desnecessidade. As pessoas têm de estar conscientes. Primeiro, porque com as alterações climáticas o risco de incêndio é hoje maior do que há décadas", disse na entrevista deste sábado ao Expresso.
"Sou alérgico a políticos que correm para as câmaras de televisão a chorar e a rasgar as vestes perante uma tragédia." Palavras de António Costa em 2005 quando o país ardia de lés-a-lés. Constança Urbano de Sousa, a sua ministra da Administração Interna aquando dos fogos de Pedrógão e de outubro, ficou na mente dos portugueses precisamente por aparecer nas televisões e nos jornais com uma postura derrotada e constantemente em lágrimas. Recusando, no entanto, demitir-se quando políticos e opinião pública pediam a sua cabeça porque queriam que alguém fosse responsabilizado (e sacrificado) pela tragédia.
Costa teimou em mantê-la, ela teimou em ficar. Até outubro, quando o pinhal interior se transformou num inferno e morreram mais 50 pessoas a somar às 66 de Pedrógão. O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa tomou as rédeas da situação - ele que esteve sempre no terreno a abraçar quem perdeu a família, os amigos, as casas, os animais - e proferiu a declaração mais dura do seu mandato, pedindo indiretamente "humildade cívica" ao primeiro-ministro. "É a melhor, se não a única forma de verdadeiramente pedir desculpa às vítimas de junho e de outubro - e de facto é justificável que se peça desculpa."
Um dia depois, a 18 de outubro, o governo que nesse dia anunciou a demissão da ministra, voltou a estar de baixo de fogo no Parlamento. "Não vou fazer jogos de palavras, se quer ouvir-me pedir desculpas, eu peço desculpas", respondeu Costa ao deputado do PSD, Hugo Soares. "No meu vocabulário reservo a palavra desculpa para a minha vida privada, enquanto primeiro-ministro uso a palavra responsabilidade e sempre disse que assumiria todas as que viessem a ser demonstradas", disse.
Costa cedeu, o homem e o primeiro-ministro: "Sei que viverei com este peso na consciência até ao último dia da minha vida."
Com as mortes resultantes dos incêndios a serem notícia mundial e a atravessar uma das maiores crises de sempre, o governo fez saber que ficou chocado e surpreendido com o discurso do Presidente. E Marcelo, dias depois, deu-lhe a resposta - "chocado ficou o país". E mais: "Em relação ao que se passou há uma semana, há duas maneiras de encarar a realidade: uma maneira é o "diz que diz" especulativo de quem ficou mais chocado, se foi A com o discurso de B, se B com o discurso de A; depois, há uma segunda maneira de compreender que chocado ficou o país com a tragédia vivida, com os milhares de pessoas atingidas - país esse que, naturalmente, esperou uma palavra para as vítimas e que espera com urgência reparação, reconstrução e olhar para o país atingido".
Nas visitas que tem feito pelo território para se inteirar de como estava a ser levada a cabo a limpeza das terras, a tónica do primeiro-ministro acentuou sempre a necessidade de diminuir os riscos, embora depois da tragédia tenha proferido declarações em que se mostrava convencido que o país estava mais preparado para o combate aos fogos. Palavra de ordem: prevenção, prevenção, prevenção.
Foi também assim quando tinha a pasta da Administração Interna. "Os incêndios de verão previnem-se no inverno." E quis sempre passar a mensagem de que isso só seria possível com o empenho de todos, não apenas dos responsáveis dos poderes central e local. "Ou este é um esforço que envolve toda a sociedade, cada um dos proprietários, ou então é um esforço que não pode ser assegurado só pelos presidentes de junta de freguesia, pelos presidentes de câmara, pelos ministros ou pelo primeiro-ministro. Tem de ser um esforço do conjunto da sociedade", disse em fevereiro numa deslocação a Tondela.
Mas a tragédia de 2017 trouxe, para o primeiro-ministro, "uma condição única", o relatório da Comissão Técnica Independente que definiu uma estratégia "que tem vindo a ser executada ao longo deste ano" e que passa nomeadamente pela reforma da floresta e um novo sistema de prevenção e combate dos incêndios.
Quando era ministro da Administração Interna e foi o bombeiro de serviço para apagar os fogos no terreno e na política, Costa diz uma frase premonitória à Sábado: "Cada dia é um novo dia de angústia. A angústia mantém-se sempre. E será assim certamente até 15 de outubro." Doze anos depois, num preciso 15 de outubro, morreriam dezenas de portugueses pela ação do fogo. Como é que um "irritante otimista" poderia adivinhar?