Correu nos Whatsapp de muitos de nós uma fotografia com um soldado e um burro às suas costas. Na legenda, diziam-nos que a manobra era necessária para atravessar um campo de minas, e incitavam-nos a carregar às costas os "burros" que podiam pôr em risco a travessia do campo de minas víricas em que nos encontramos, não por empatia, mas porque mais vale carregar o burro do que deixá-lo à solta no campo minado.
Como muitas das coisas que chegam pelo Whatsapp, a descrição é falsa. A fotografia, não. Em 1958, soldados da 13ª demi-brigade da Legião Estrangeira Francesa encontraram um burro pequeno quando estavam em serviço na Argélia. O burro, abandonado, tinha um aspeto frágil e os soldados decidiram levá-lo consigo para a base.
A fotografia terá sido tirada nessa "viagem" de regresso à base e fez capa do Daily Mirror de 19 de setembro de 1958. A história é engraçada - o burro acabou adotado pelos como uma espécie de mascote e a Legião Estrangeira ganhou o Certificado de Mérito por Serviços Distintos da Associação Americana para a Prevenção da Crueldade Animal - mas não corresponde ao que nos conta a mensagem.
Neste caso, descontando o moralismo implícito, a mensagem é até inofensiva, mas ilustra bem grande parte dos conteúdos que correm através das redes sociais neste período. De tudo aquilo que estas mensagens têm em comum, uma sensação de "isto faz sentido" é das coisas mais perigosas. Uma outra mensagem famosa adultera um gráfico do Financial Times (apagando a fonte, mais uma constante nestes episódios) e traça dois círculos em torno de grupos de países. Com trajetórias ascendentes representando centenas ou milhares de casos, estariam os países onde não se usam máscaras; com curvas "achatadas", estariam os que as usam. Mais uma vez, a intuição leva-nos a um "isto faz sentido", mas as diferenças entre os grupos de países são muito maiores do que o uso de máscara (e há países no grupo das máscaras que nunca recomendaram o seu uso universal).
Outra ainda, mais recente, traça uma correlação entre vacinação universal com a BCG e uma resistência aos efeitos mais danosos da COVID-19, uma correlação que até chegou aos meios de comunicação mais sérios, mas que neste momento não tem qualquer evidência robusta que a defenda. Também uma tabela, em espanhol, que compara medidas tomadas em Espanha e Coreia do Sul não refere fontes e parece desenhada para favorecer um conjunto muito específico de medidas, induzindo conclusões que não estão devidamente fundamentadas.
A desinformação mata. No Irão, contam-se centenas de mortes por envenenamento com metanol, bebido por pessoas que tentam desinfetar-se. Na Nigéria, as notícias sobre o uso de cloroquina para tratar doentes COVID-19 (ainda não há evidência robusta que o recomende) levaram à overdose de, pelo menos, duas pessoas, e nos Estados Unidos um homem morreu após beber um produto de aquário à base de cloroquina.
Um olho atento poderia ajudar a deslindar. Na fotografia do soldado e do burro estão vários soldados espalhados por um campo. Dizem as boas práticas que se atravessa um campo de minas em linha, coisa que claramente não está a ser cumprida. O ceticismo também é útil: seria provável que soldados tivessem de levar um burro de um lado para outro de um campo de minas? Seria provável que o burro já lá estivesse mas ainda não tivesse detonado qualquer mina? Seria provável alguém parar para fotografar o momento?
Muitas destas mensagens caem por terra quando se tenta questionar ou investigar a sua fonte, mas isso exige tempo e atenção que nem sempre temos ou podemos ter. Nestes momentos, Whatsapp e outros serviços de mensagens são autênticos campos de minas que temos dificuldade em atravessar, e nem sempre nos lembramos que pertencer ao grupo dos "burros levados às costas" acontece a todos, basta uma desatenção.