Opinião
02 março 2021 às 01h29

O Campo de Ourique

Guilherme d'Oliveira Martins

Luís Alves Dias foi a alma da Livraria Ler de Campo de Ourique, uma das lojas lisboetas com história. Costumava dizer que o bairro é o nosso Quartier Latin. Tinha razão. A memória de muitas personagens ilustres dá cor à ideia. Mas a história tem algo mais que se lhe diga. Nos mapas anteriores ao terramoto, grande parte dos terrenos do atual bairro eram chãos rústicos de quintas com searas e olivais, além das olarias e da fábrica de telha e tijolo... Chamava-se Campo de Pousos. O centro da urbanização foi o quartel, iniciado em 1758 - com camaratas, casa da pólvora e logradouros. A instalação de um campo de manobras deveu-se a D. Lourenço de Lencastre e Noronha, descendente do conde dos Arcos, 5.º marquês das Minas. Era um centro de mercenários, pois não havia serviço militar obrigatório. É o mais antigo edifício militar de Lisboa construído de raiz. A designação deve-se à invocação pelo marquês das Minas do milagre de Ourique - presente nas quinas de Portugal.

A praça de armas é imponente e dela parte a organização do bairro. Neste quartel, o conde de Lippe iniciou a modernização do Exército. O conde fora enviado pelo rei Jorge II de Inglaterra, graças ao futuro marquês de Pombal, como marechal-general do Exército. Mercê desta reorganização, o Exército passou de 18 mil para 40 mil homens. Era o tempo da Guerra dos Sete Anos (1756-1763), entre a França e o império Habsburgo - com forte presença de mercenários estrangeiros. No quartel instala-se o regimento Infantaria 4, de Gomes Freire de Andrade (nos anos 1790 a 1807). E um alemão - J.H. Friedrich Link - descreveu em 1798 o caminho da Estrela até à Parada: "Deixando o casario para trás, chegamos a uma agradável planície chamada do Campo de Ourique, separada das colinas vizinhas por fundos vales, e utilizada como local de exercício por um regimento de imigrantes, alojado em graciosos abarracamentos." A parada era, assim, lugar de treino militar e servia de promenade.

Depois de 1755, muita gente veio para aqui, pois o local tinha sido poupado às destruições (daí dizer-se "resvés Campo de Ourique"). A unidade militar revela-se muito ativa na defesa dos ideais da liberdade. Lembrem-se os motins de 1803. Nas festividades do Corpo de Deus, o ajudante do comandante da Guarda Real da Polícia foi preso por Gomes Freire. A ação ocorrida no passeio público deu brado e gerou um conflito entre o Exército e a Guarda. Aquando das festas de Nossa Senhora da Piedade, patrulhas da Guarda lançaram provocações a militares do regimento, tendo havido tiroteio e feridos. Muito mais tarde, teria lugar o golpe de 21 de agosto de 1831, em que interveio Alexandre Herculano e que o levaria para o exílio. O regimento saiu em defesa da Carta Constitucional contra o governo de D. Miguel. Os resultados do funesto golpe são conhecidos - em frente à porta de armas foi fuzilada uma primeira leva de dez praças e um alferes. E dias depois mais 21, incluindo tambores e músicos. O resultado foi a dissolução do regimento.

Em memória do inconformismo liberal, o Jardim da Parada tem a estátua da Maria da Fonte, figura da resistência popular a Costa Cabral (1846). A intervenção do regimento de Infantaria 16 na implantação da República foi decisiva. Na Rua Ferreira Borges deu-se o primeiro disparo da revolução. O bairro foi delineado em 1878 e concretizado num plano ortogonal em 1906 por Ressano Garcia. Em 1910 chegava à Rua Tomás da Anunciação. Em meados do século XIX, a futura Rua Maria Pia foi o início da primeira circular da cidade, construindo-se o Cemitério Ocidental ou dos Prazeres. Em suma, um campo militar e uma parada para exercícios mercenários sob a invocação do milagre de Ourique é hoje o "Quartier Latin" alfacinha.

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian