Opinião
14 fevereiro 2022 às 07h00

Campeões da desigualdade

Henrique Burnay

Um dos principais efeitos do regresso assumido da competição à política internacional é que a União Europeia está a tentar encontrar o seu lugar, e o seu papel, neste novo mundo. E, para isso, está a transformar profundamente algumas das suas características fundamentais. Mas mal se nota, e menos se discute. Até porque tudo isto acontece em políticas que parecem obscuras ou distantes para a maioria dos europeus, como o fascinante mundo dos microprocessadores.

Na semana passada, a Comissão Europeia anunciou o Chips Act. Resumidamente, uma iniciativa de política industrial que espera atrair investimento privado através de algum investimento europeu e da pré-autorização para muito investimento público nacional - mesmo que isso implique violar regras da concorrência - para procurar trazer para a Europa a produção de microprocessadores, reduzindo a dependência externa de um dos, se não o, componentes mais importantes de quase tudo o que se produz hoje em dia, de carros do presente a robôs do futuro.

Durante anos, décadas, a União Europeia procurou criar alguma igualdade através de vários instrumentos, entre eles a política regional, que distribui subsídios pelos Estados e regiões mais distantes das médias europeias, com o objetivo de as aproximar, e impedindo a distorção da concorrência através de fundos públicos, para evitar que alguns Estados, os mais ricos, pudessem apoiar as suas empresas contra outras que competem no mesmo mercado interno mas vêm de países com menor disponibilidade orçamental. Isso está a mudar, em nome da competição global e da autonomia europeia.

Os microprocessadores são, literalmente, peças fundamentais de quase tudo na economia digital, a sua produção concentra-se fora da Europa, e noutras geografias, como na China e nos Estados Unidos da América, também há dinheiro público para proteger (ou, no caso, criar) esta capacidade industrial.

Qual o problema, então? No essencial, há dois problemas de fundo com este tipo de iniciativas. Por um lado, escolhem-se vencedores sem intervenção do mercado. Cabe ao poder político, com melhor ou pior apoio técnico, selecionar tecnologias, técnicas, inovações e produtos com maior probabilidade de sucesso. É um exercício arriscado. Mas há um problema mais grave: nem todos o conseguem fazer.

Como se nota pelas contas da própria Comissão, o dinheiro europeu que vai haver é para juntar a dinheiro nacional que os governos escolham (e possam) dar às empresas que venham a candidatar-se. É aqui que um dos maiores problemas se coloca. A capacidade orçamental de uns Estados membros e de outros (da Alemanha ou da Croácia, de Itália ou da República Checa) não é a mesma. Ao permitir que, em nome de projetos industriais considerados fundamentais, se distorçam as regras da concorrência, permite-se que as desigualdades regionais e nacionais provavelmente se acentuem.

É difícil, senão mesmo impossível, promover uma política industrial pelo lado da proteção da oferta sem criar distorções. Sobretudo quando isso é feito num espaço económico aberto, mas desigual, como o mercado interno da União Europeia.

Não vale a pena ser ingénuo e fazer de conta que estas distorções e subsídios só acontecem na Europa. Aberto o caminho da competição desigual, o que se autoriza a uns tem de se autorizar a outros. Não se pode decidir que as regras que beneficiam uns sejam para quebrar, mas as que beneficiam outros não o possam ser. Se uns podem competir com o dinheiro que têm, os outros têm de poder competir com o dinheiro que estão dispostos a deixar de ter, por exemplo. Autorizar auxílios de Estado para projetos específicos, mas impedir competição fiscal em geral, vai desequilibrar o jogo. Mas é o que está para acontecer.

Consultor em assuntos europeus