Anatomia dos extremos

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Com o aproximar das eleições, aí estão os partidos a moverem-se como peças num tabuleiro de xadrez, tentando capturar o voto dos eleitores. No centro do tabuleiro, estão os do costume, os do “arco da governação”: PS e PSD. Depois, um pouco mais afastados dos centros de poder, surgem os extremos. E é sobre eles que hoje escrevo, não com indignação moralista, mas com espírito crítico e sentido prático.

À esquerda, o Bloco. De matriz intelectual, orgulha-se de ter nas suas fileiras investigadores, académicos, gente culta, formada, articulada. A “esquerda gourmet”, que sabe citar Marx e Foucault mas que, ao contrário do PCP, nunca teve uma ligação orgânica às bases populares, ao chão duro do operariado. O Bloco fala bonito, pensa bem, mas parece incapaz de sair da redoma dos salões de debate, dos cafés universitários, das teorias impecáveis que falham o teste da rua.

À direita, o Chega. Um partido de discurso inflamado, fundado e liderado por André Ventura, mestre do populismo, da teatralidade, da manipulação emocional. Ventura construiu a sua imagem pública a partir de um manual básico, mas eficaz: repetir, sem pudor, mentiras, distorções e teorias da conspiração, sabendo que parte do seu eleitorado não exige a verdade como condição para o apoio político. Mais: sabe que, ao repetir incessantemente falsidades, cria uma névoa de “verdades alternativas”, onde o eleitorado mais vulnerável – ou simplesmente mais zangado – pode ser convertido.

O episódio recente do debate televisivo entre Ventura e Mortágua é um retrato perfeito da anatomia dos extremos. O primeiro, com o seu estilo habitual, atirou-se ao Bloco com uma acusação grotesca: “A minha casa tem 30 metros quadrados, não é um palacete como os do Bloco.” A afirmação era, à partida, absurda. Qualquer pessoa minimamente atenta percebe a improbabilidade de um líder partidário, com uma carreira política consolidada, viver num espaço tão exíguo. Mas Mariana Mortágua, agarrada ao guião da noite, não soube reagir. Não questionou, não ironizou, não desmontou a mentira. Deixou-a no ar, sem resposta.

Para piorar, dias depois, Ventura admitiu que afinal o apartamento não tinha 30 metros quadrados. Tinha 70. Na verdade, tem ainda segurança privada, acesso a piscina e jardim. Ou seja: a mentira não era apenas uma imprecisão; era um embuste deliberado, desenhado para criar um retrato falso de humildade, de sacrifício, de proximidade ao “cidadão comum”.

Este episódio revela, em toda a sua crueza, o problema de confiar o voto aos extremos. De um lado, uma máquina de propaganda onde a mentira é aceite como tática legítima de combate político. De outro, uma estrutura demasiado preocupada com a pureza intelectual para sujar as mãos no terreno da argumentação espontânea, da denúncia rápida, da desmontagem eficaz do disparate.

A democracia precisa de debate. Precisa de alternativas. Precisa até de desconforto e de provocação. Mas precisa, acima de tudo, de verdade e de coragem. E estas duas virtudes parecem faltar onde mais se grita contra o sistema.

Professor catedrático

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