Opinião
10 julho 2023 às 23h42

"Somos todos Alfragide" e outras caricaturas de uma polícia nada racista

Instâncias internacionais denunciam há muito a violência racista e xenófoba das polícias portuguesas. Mas à PSP e ao MAI, que mantêm ao serviço condenados por crimes repugnantes, cultivando a impunidade, o que chateia é um cartoon.

Fernanda Câncio

Em novembro de 2020, recebi, de um agente da PSP, o link de um post público de Facebook. Neste, o autor, também agente da PSP, de nome João Nunes, lamentava que o Tribunal da Relação tivesse confirmado a sua condenação a quatro anos de prisão (suspensos) no processo que ficou conhecido como "da Cova da Moura". E referia as vítimas - todas negras - como "vagabundos", "bandidos", "bandidos com cadastro", "que nada fazem além de vender droga e brincar com armas em filmes autorizados pela polícia" e o sistema judicial como "seus lixos", "madeira podre e nojenta", assinando: "agente da PSP, condenado por ter feito o seu trabalho, conforme toda a legislação em vigor. Facto."

O "trabalho" em causa foi disparar a shotgun no bairro da Cova da Moura, atingindo duas mulheres negras, e dentro da esquadra, à queima-roupa, contra o igualmente negro Celso Lopes, além de mentir no auto de notícia no qual descreveu a sua ação naquele dia, 5 de fevereiro de 2015 - quando, de acordo com a versão que a PSP exarou para os media e a justiça comprovou ser mentirosa, cinco homens negros teriam tentado "invadir" a esquadra de Alfragide (na verdade foram sequestrados, agredidos e alvo de insultos como "preto do caralho" e "pretuguês").

"Que tristeza... Assim se vê o estado em que está a polícia!", comentou o polícia que me enviou o link, chocado por o post estar a ser partilhado e aplaudido por muitos colegas seus: "Isto está cada vez pior... E depois quem tem processo disciplinar é o Morais!"

O Morais referido é Manuel Morais, agente da PSP que em entrevistas ao DN e à SIC denunciou o racismo nas forças de segurança e acabaria, em 2019, por ser alvo de um processo disciplinar devido a um comentário no FB sobre a presença de André Ventura numa manifestação de polícias, sendo castigado com 10 dias de suspensão.

Já em relação a João Nunes, que apagou o post pouco depois de o DN dar dele conhecimento à direção da PSP - a qual alegou não saber quem tinha escrito aquilo, recusando qualquer comentário - não houve consequência disciplinar do escrito. Aliás, Nunes permaneceu pelo menos até dezembro de 2022 ao serviço da PSP, mesmo se uma condenação criminal de mais de três anos equivale, no Estatuto Disciplinar desta força policial, a "infração disciplinar muito grave", com pena disciplinar de demissão ou de aposentação compulsiva.

Nem por acaso, aquando da confirmação da condenação, um agente da mesma força comentava, no grupo de FB "Pela PSP": "Está aqui uma boa oportunidade para a Polícia provar que apoia os seus homens e que não concorda com a decisão do tribunal. Não punir disciplinarmente os polícias condenados em tribunal pelo politicamente correto, em que a palavra das minorias étnicas vale mais que a dos polícias."

Imbuído do mesmo espírito, o Sindicato Independente dos Agentes da PSP proclamava, na mesma ocasião: "Somos todos Alfragide".

"E a direção nacional da PSP a olhar para o lado...", afligia-se o polícia meu conhecido. Como já vimos, porém, depende: aqui e ali a Direção Nacional da PSP repara em coisas. Agora por exemplo reparou num cartoon animado que a RTP "passou" aquando da transmissão de concertos ocorridos este fim de semana e achou-o tão insuportável que apresentou queixa-crime, queixa ao regulador dos media e até à Comissão da Carteira de Jornalista (?). Porque, segundo comunicado, considera que o vídeo "representa juízos ofensivos da honra e consideração de todos os profissionais da PSP".

O cartoon, intitulado "carreira de tiro", mostra um agente fardado a disparar várias vezes, precisamente na carreira de tiro. No final, veem-se os alvos: se no mais claro os tiros foram ao lado, vão-se tornando mais certeiros à medida que o alvo escurece. É evidentemente uma representação da violência policial racista, relacionada com a morte, em França, de um jovem de 17 anos de origem magrebina, Nahel, alvo de um disparo certeiro por não ter parado numa operação stop.

Foi isso mesmo que respondeu um dos responsáveis pela rubrica Spam Cartoon, o ilustrador André Carrilho: que o cartoon comenta a atualidade internacional.

Percebe-se que a resposta, de Carrilho e da RTP, seja esta, e que o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, tenha também, relevando a importância da liberdade de expressão (ao contrário do seu colega no ministério da Administração Interna, José Luís Carneiro, que, incrivelmente, ligou à RTP a pedir explicações), insistido nessa interpretação. Mas não: o problema da violência policial racista está longe de ser exclusivo de França; o racismo nas polícias, como, suponho, os exemplos que dei tenham ajudado a comprovar e inúmeros relatórios internacionais e casos reportados nos media indicam, é um problema gravíssimo em vários países, e também em Portugal.

Não se trata de uma questão de opinião. Não se trata de, como pretende a direção da PSP, "um juízo ofensivo da honra": é a verdade. Aliás, se não fosse verdade a PSP já devia ter apresentado queixa-crime contra por exemplo o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura, que sublinha há anos que as polícias portuguesas têm um problema sério e "profundo" de violência injustificada e que essa violência tende a ter como vítimas afrodescendentes e estrangeiros.

Di-lo o último relatório do organismo, de 2020, e explica-o Hugh Chetwynd, membro do Comité, em entrevista ao Expresso em fevereiro de 2021, frisando que a maioria das queixas de violência policial em Portugal nem sequer é investigada como deve ser, e que tal favorece "uma cultura de impunidade". Cultura de impunidade que, aventa, pode ter estado na origem do espancamento mortal de Ihor Homeniuk por inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Ora essa cultura de violência (racista e não só) e impunidade que Chetwynd aponta nas forças de segurança portuguesas - e que nesta coluna tantas vezes referi - só pode ser combatida admitindo o problema; não é decerto apresentando queixas-crime contra cartoons que aludem a ela que desaparecerá.

Pelo contrário, agrava-se cada vez mais por, precisamente, ser negada. Negada pelas direções das polícias, negada pelos responsáveis governamentais e negada pelos tribunais - basta ver como os condenados de Alfragide não o foram por discriminação racial, apesar dos repulsivos insultos racistas que o tribunal considerou provados.

Basta ver como numa decisão escabrosa o Tribunal da Relação de Évora acabou de baixar as penas dos guardas da GNR que se filmaram a torturar e insultar imigrantes e partilhavam os vídeos com outros guardas para divertimento. Basta ver como, não contente com isso, o tribunal anulou as respetivas penas de expulsão, demonstrando considerar que pessoas com tal nível de racismo e de brutalidade têm condições para continuar a andar por aí com armas de fogo, fazendo de conta que conhecem e respeitam as leis de cujo cumprimento é suposto zelarem. Como de resto fez o tribunal que julgou os agentes de Alfragide, escolhendo não os condenar a expulsão, apesar de tal ser proposto na acusação do Ministério Público.

A mensagem que a justiça assim faz passar é de que um polícia pode ser isso - alguém que ofende, sequestra, tortura, e pode até chegar a matar, por ódio racial ou xenófobo ou outra raiva qualquer; que mente nos autos de notícia para tentar safar-se; e que, malgrado ter como função assegurar-se de que os cidadãos em geral não violam a lei ou são responsabilizados se a violarem, nunca é realmente responsabilizado pelas suas ações: foi sempre azar, brincadeira parva, acidente, negligência.

Nunca foi o que realmente foi a não ser que, como no caso do francês Nahel ou do americano George Floyd, alguém tenha filmado e não se possa continuar a inventar desculpas.

Não se possa continuar, como faz o atual MAI (e praticamente todos antes dele), a dizer de cara séria, cuspindo em todos os relatórios internacionais, em todas as evidências, num infelizmente vasto rol de vítimas e em todos os polícias dignos desse nome, que "as forças de segurança portuguesas cumprem e fazem cumprir a legalidade democrática e os valores constitucionais" e "desde logo o princípio da igualdade, valor que é marca do nosso país e da atuação das forças de segurança".

Desde logo o princípio da igualdade? Só se for o de sermos todos Alfragide.