Opinião
29 julho 2023 às 22h30

Um mar de enganos

João Lopes

Na introdução à sua tradução do Fausto, de Johann W. Goethe (Relógio D"Água Editores, 1999), João Barrento escreve que "a obra resulta, na versão definitiva, no milagre de um todo que não é um todo". Creio que a observação justifica algum paralelismo com o filme Oppenheimer, de Christopher Nolan.

Claro que a exuberância do trabalho científico de J. Robert Oppenheimer (1904-1967) e, por fim, a sua condição de "pai da bomba atómica" atraem a classificação de um moderno Fausto. O seu pacto com os Mefistófeles da política - que no filme alguém resume dizendo que "tu és o homem que lhes deu o poder de se autodestruírem" - coloca-o no centro de uma encruzilhada sem solução: onde acaba a paixão científica do saber e começa a instrumentalização política desse saber?

Escusado será sublinhar que no filme de Nolan ecoam múltiplos e inquietantes cenários da geopolítica do nosso século XXI. Ao mesmo tempo, e ao contrário de muitas ficções audiovisuais contemporâneas, a abordagem de uma conjuntura tão delicada - do Projeto Manhattan ao lançamento das bombas sobre Hiroxima e Nagasáqui - não se esgota numa qualquer lição unívoca, porventura redentora, que confunda a experiência cinematográfica com as certezas normativas de muitos talk-shows. Em diversas entrevistas, Nolan tem dito que não faz filmes "didáticos", antes procura abarcar a complexidade dos temas e situações que aborda - na certeza de que tudo isso pressupõe um espectador não-seguidista, capaz de enfrentar um filme que não quer confirmar aquilo que ele já sabe, antes aposta na discussão dos limites, históricos, ideológicos ou simbólicos, que cristalizaram o seu saber.

Daí a sensação de "um todo que não é um todo". Ao contrário de muitas produções correntes, apostadas em "reconstituições" históricas que se definem apenas pelas suas "semelhanças" com os factos retratados - diversas séries sobre a família real britânica podem servir de modelo desse "naturalismo" sem imaginação -, Oppenheimer é um filme sobre a totalidade de uma experiência cujas derivações não estão esgotadas.

Para lá das muitas diferenças que possamos citar, se há filme recente cuja ambição narrativa envolve a mesma metódica humildade (neste caso, não "a" narrativa sobre Oppenheimer, mas "uma" narrativa sobre Oppenheimer), esse filme será Spencer, de Pablo Larraín, sobre a Princesa Diana. E talvez faça sentido considerar que os desafios enfrentados por Kristen Stewart e Cillian Murphy, respetivamente como Diana e Oppenheimer, são de natureza semelhante. A saber: como representar uma figura cuja identidade histórica parece, ao mesmo tempo, tão evidente e de tão problemática fixação narrativa?

Diz Fausto, a certa altura, respondendo a Wagner que o tenta libertar dos seus tormentos: "Bem feliz é aquele que inda espera / Poder sair deste mar de enganos! / Mas o mais útil é o que se ignora, / E o que se sabe o que nos serve menos. / Mas não deixemos que tal melancolia / Nos venha perturbar tão bela hora! / Repara como o sol ao fim do dia, / No verde e nas cabanas reverbera. / Nasce e apaga-se, mais um dia passou, / Noutros lugares vai nascer nova vida."

Há uma dimensão contraditória na tragédia de Oppenheimer (enfim, a contradição é mesmo o motor de qualquer tragédia...) que se enraíza nessa tensão entre a utilidade do que ignoramos e a menor pertinência do que já sabemos. O que, em termos cinematográficos, arrasta uma dúvida metódica: até que ponto aquilo que vemos numa personagem - a começar, claro, pelo incrível Cillian Murphy como Oppenheimer - existe como expressão do seu ser ou não passa de uma alternativa mascarada?

Tal interrogação justifica que reavaliemos, por exemplo, a santificação de algumas personagens apropriadas pelas banalidades do politicamente correto - lembremos o determinismo dramático de A Hora Mais Negra (2017), sobre Winston Churchill, interpretado por Gary Oldman (o mesmo Oldman que, curiosamente, surge em Oppenheimer como Harry Truman). Seja como for, vale a pena acrescentar que, no filme de Nolan, tal jogo entre o que é dito e o que não chega a ser ciciado, passa por uma surpreendente coleção de grandes planos dos atores (com destaque, claro, para Murphy).

O que, enfim, nos instala num belíssimo paradoxo narrativo. Se é verdade que a grandeza física dos ecrãs IMAX tem sido celebrada através da agitação visual de super-heróis & afins, não é menos verdade que o retângulo do IMAX pode ser um novo modelo de exaltação do rosto humano, da sua transparência e enigmas. Como? Filmando cada rosto como uma paisagem. Ou como Nolan já disse, Oppenheimer é "3D sem óculos".

Jornalista