Opinião
26 março 2023 às 00h25

Madame Lispector

João Lopes

Nestes tempos de super-heróis de muito ruído, zero imaginação e avalanches de marketing, será que ainda somos capazes de reconhecer, acompanhar e partilhar a vida de uma personagem? Será que conseguimos libertar-nos dos estereótipos promovidos por telenovelas e afins, ocupando o espaço social todos os dias, em todos os horários nobres? Ou já alienámos a capacidade de formular a pergunta-chave, mesmo que, ou sobretudo quando, as nossas respostas atraiam um rio de incertezas: de que falamos quando falamos de uma personagem?

Reencontrei a pergunta num fascinante acontecimento teatral, regressado a um palco de Lisboa. Chama-se Eu Sou Clarice, estreou-se no São Luiz em outubro de 2021 e está agora, até 2 de abril, na sempre encantadora Sala Vermelha do Teatro Aberto. Clarice, entenda-se, é Clarice Lispector (1920-1977), a escritora brasileira nascida na Ucrânia - devido às perseguições feitas aos judeus, a sua família judaica russa emigrou para o Brasil em 1922. Como escreve a encenadora Rita Calçada Bastos, também responsável pelo cenário do espetáculo, ela é um "belo espelho da condição humana", através de uma obra centrada na mulher "e na liberdade de se ser tudo, no mesmo dia".

Por uma vez, aqui fala-se, encena-se, pensa-se a mulher sem acolher a violência simbólica, muito na moda, de a reduzir a um "tema" que engrenaria automaticamente, de forma unívoca e universal, em qualquer personagem feminina. O título, aliás, alerta-nos para o caráter irredutível deste processo criativo: Eu Sou Clarice, quer dizer, alguém diz "eu", desse modo arriscando comprometer tudo e todos na afirmação da sua singularidade feita de coisas transparentes e coisas indecifráveis. Incauto ou não, o espectador, mulher, homem ou extraterrestre, repete o título e reconhece que aquele "eu" o apanha na esquina da linguagem.

É bem verdade que são muitas, e muito poderosas, as forças que nos levam a menosprezar a noção de personagem. Afinal de contas, há poucas semanas, nos prémios de Hollywood, o planeta inteiro assistiu à consagração de Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, filme que, na melhor das hipóteses, podemos reconhecer como uma variação sobre as matrizes dos videojogos: não interessa para onde vai a ficção, as figuras humanas são meros títeres a serem "surpreendidos" pela cena seguinte, enfim, confunde-se criação com arbitrariedade... Isto no mesmo ano em que alguns filmes nascidos da paixão pelas suas personagens - Tár, de Todd Field, ou Os Fabelmans, de Steven Spielberg - foram serenamente ignorados.

Clarice Lispector é essa personagem que existe através do assombramento das suas próprias palavras. Eis um universo alheio aos automatismos e velocidades de likes e links, perversas (e muito demagógicas) ilusões de comunicação - alguém se atreveu mesmo a dar-lhes o nome de "redes sociais". Ou ainda, em termos teatrais: a complexidade, sempre em aberto, da personagem apresenta-se revisitada e reinventada pelo trabalho de representação.

A composição de Carla Maciel tem qualquer coisa de milagroso. Longe de qualquer noção académica de "ilustração" da escrita, a sua interpretação existe como uma viagem íntima, quase secreta, mas partilhável, através dos poderes esquecidos da palavra, da redescoberta do seu lugar central na dinâmica da "condição humana" a que Rita Calçada Bastos se refere. A atriz pode evoluir assim, em esplendoroso ziguezague, da condição de clown a figura eminentemente trágica, de corpo de marioneta a presença insondável, capaz de transcender qualquer imagem unívoca e definitiva - ou "a liberdade de se ser tudo, no mesmo dia", na duração efémera que o palco acolhe.

Será preciso repetir que essa liberdade não é panfletária nem resulta de qualquer arrogância mediática? Há em Eu Sou Clarice uma paixão pela verdade totalmente alheia à pedagogia "justiceira" (observe-se o VAR do futebol) que passou a dominar o nosso quotidiano. A verdade que encenadora e atriz perseguem é tanto mais radical quanto reconhece o seu relativismo filosófico, abrindo-se aos enigmas que sustentam o mundo. Ou, como escreveu Clarice Lispector em Água Viva (1973): "Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada."

Pouco tempo antes do seu falecimento - a 9 de dezembro de 1977, na véspera de completar 57 anos, vítima de cancro do ovário -, a escritora deu uma entrevista em que fala da origem ucraniana do apelido "Lispector" (disponível no YouTube, em "TV Cultura"). Aí recorda a curiosa reação do crítico, também escritor, Sérgio Milliet ao seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem (1943). Dizia ele que era um "nome desagradável, certamente um pseudónimo..."

Clarice Lispector poderia refazer a célebre frase de Gustave Flaubert sobre a sua Emma Bovary: "Madame Bovary sou eu." Na certeza de que o uso do pronome "eu" está longe de ser um trejeito banalmente descritivo, antes abrindo o território sem fim da aventura da identidade. E da consequente odisseia do nome.

Jornalista