Opinião
26 junho 2023 às 22h15

Aharon Halevi e os incêndios de 2017

Gabriel Senderowicz

Em junho de 2017 mais de sessenta pessoas perderam a vida nos incêndios de Pedrógão Grande e ninguém acreditou ser possível que uma tragédia semelhante voltasse a ocorrer escassos quatro meses depois. No entanto, o fogo da morte faria mais cinquenta vítimas, entre elas o único morador da pacata Quinta do Pisão em Oliveira do Hospital: Aharon Ben-Zion Halevi.

Alvo de uma homenagem, em fevereiro de 2019, na Sinagoga Kadoorie, no Porto, por parte de chefes-rabinos de todos os continentes, Halevi tem uma história que merece ser contada. Jurista de nomeada em Londres, desistiu da profissão e mudou-se para um lugar remoto no deserto egípcio para escrever o seu primeiro romance, Blood of Kings, que haveria de tornar-se um best-seller de ficção histórica.

Naquele tão isolado lugar do Egito, perto da Líbia, a segurança física do jovem escritor esteve muitas vezes em risco. Uma noite, viu-se atacado por uma cobra venenosa e foi salvo no último momento por um gato selvagem que costumava alimentar. Halevi ficou muito agradecido ao amigo felino e acabou por adotar o animal e a companheira deste.
Após a revolução egípcia que derrubou o regime do presidente Hosni Mubarak, as recém empossadas autoridades suspeitaram que aquele estranho inglês, com o nome civil Andrew Smiler, era na realidade um judeu e um espião potencial. O seu visto foi revogado. Foram concedidos poucos dias para que ele deixasse o país, o que fez juntamente com os gatos que conhecera no deserto.

Halevi mudou-se para uma residência rural numa área verdejante de Portugal, que oferecia o ambiente e a inspiração propícias para continuar imerso no seu trabalho literário. O silêncio da pequena cave de sua casa permitiu que escrevesse textos de grande profundidade intelectual e sentimental, que ele foi partilhando com amigos do mundo inteiro através da internet e do pequeno posto de correios local.

De poucas falas e muitos cuidados sanitários, o que nunca lhe valeu um grande número de amigos, Aharon Halevi temia pela saúde dos seus animais, que haviam mudado radicalmente de habitat natural e de alimentação e que poderiam contrair doenças para as quais não estavam imunes. Também os caçadores constituíam um perigo para os gatos pelos quais o discreto judeu se sentia responsável.

Na manhã de 15 de outubro de 2017, a mãe de Halevi telefonou ao filho dizendo-se muito preocupada com os incêndios florestais que se alastravam no centro de Portugal. Ele descansou-a: as autoridades portuguesas diziam ter a situação controlada. O desastre de Pedrógão Grande, ocorrido em junho daquele ano, certamente havia posto o Estado em alerta e não era acreditável que algo parecido voltasse a suceder.

Sozinho na região, sem rede de apoio e sem automóvel, Aharon Ben-Zion Halevi foi encontrado, no dia seguinte, carbonizado, perto da sua residência. Não tinha tido tempo de fugir. Confiou nos homens e perdeu. Levava junto do coração as caixas de transporte dos seus gatos selvagens, que tragicamente também pereceram.

Presidente da Comunidade Judaica do Porto

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