Internacional
07 agosto 2021 às 22h34

Da "Gürtel" ao "rei das comissões": os loucos anos da corrupção política em Espanha 

Em Não sei, não me lembro, não me consta, publicado recentemente em Espanha, o jornalista Alfonso Pérez Medina faz um retrato único de vinte anos de megaprocessos de corrupção política no país: do PP ao PSOE até à Casa Real.

Alfonso Pérez Medina é um jornalista especializado em atualidade judicial que, ao publicar um livro sobre os seus últimos 15 anos de trabalho, acabou por realizar também uma antologia única e indispensável de duas décadas de democracia em Espanha. A obra acompanha os megaprocessos por corrupção política que, nos últimos anos, revelaram o lado mais obscuro de uma época em que o sistema democrático cedeu aos interesses de um punhado de políticos e empresários que, por sua vez, conseguiram contagiar grande parte do aparelho do Estado.

Na viragem do milénio, com 3% de crescimento anual, a economia espanhola ia tão bem que, para um político, enriquecer às custas dos cofres públicos não parecia chocar quase ninguém. A economia estava tão bem, com Rodrigo Rato aos comandos das Finanças, que em Madrid e na Catalunha, os aparelhos corruptos das Autonomias cobravam comissões de 1 a 3% sobre todos os contratos públicos, consideradas "normais" pelos contratados. Na capital, onde o mercado imobiliário e o Partido Popular conseguiam abalar o resultado de uma eleição autonómica durante o episódio conhecido como o "Tamayazo", Rato, o homem do milagre económico espanhol, apropriava-se de parte de 11 milhões de euros da Caixa de Poupanças regional "Caja Madrid" distribuídas por meio de "cartões black" aos membros do Conselho de Administração: políticos de todos os partidos e até sindicalistas. As redes de corrupção política, desviavam fundos da visita do Papa a Valência ou de uma homenagem às vítimas do terrorismo em Madrid, sem empatia, como quando um secretário-geral do PP usou dinheiro da corrupção para comprar mais de 300 euros em lotaria no dia dos atentados de 11 de Março na capital.

No livro de Alfonso Pérez Medina, que também consultou as atas dos processos de corrupção e realizou entrevistas a vários protagonistas, folheiam-se anos de loucura e deriva. Anos em que as comissões ocultas e as empresas e projetos "fantasma" pagavam desde a festa do casamento da filha do primeiro-ministro José María Aznar, às indemnizações de despedimento de trabalhadores e sindicalistas afins ao PSOE da Andaluzia no famoso caso dos "ERES".

O livro detalha também onde foi parar o dinheiro da corrupção: de contas bancárias na Suíça e em paraísos fiscais, como os milhões de comissões alegadamente pagas ao então rei Juan Carlos I pela atribuição a uma empresa espanhola da construção da linha de alta velocidade a Meca, aos mais de 32 mil euros pagos por um organismo público de formação da Junta da Andaluzia em vários clubes de alterne, com o cartão da entidade pública. Nesta antologia da corrupção, a Justiça é sempre demasiado lenta, a vontade política demasiado flexível, e os mecanismos de alerta, como a imprensa, são como que abduzidos pelas agências de comunicação, em alguns casos parte integrante da trama para desviar dinheiro público. Como sublinha o jornalista, foi preciso esperar mais de uma década após os crimes para que se julgasse o caso do saco azul do Partido Popular - vulgo "Caixa B" - face a uma justiça "demasiado lenta a julgar a corrupção, quando chegam as sentenças os culpados já estão amortizados".

Entre o caso "Nóos", que levou o genro de Juan Carlos à cadeia, o "Gürtel" que levou à detenção do ex-tesoureiro do PP e à condenação de dezenas de ex-responsáveis do partido, ou "Caja Madrid" que levou o ex-patrão do FMI a cumprir dois anos e quatro meses de prisão, Pérez Medina está longe de um desfecho otimista. O autor reconhece um problema quase generalizado ao nível político, pelo menos na época em que se debruçaram os tribunais. E ninguém, da cúpula do Estado, aos sindicalistas andaluzes passando pelos comunistas no Conselho de Administração da Caja Madrid, parecia resistir à tentação desse provérbio, repetido tanta vez ao autor nos bastidores dos tribunais, "quem parte e reparte fica sempre com a melhor parte".

Numa entrevista publicada no livro, o juiz anticorrupção Baltasar Garzón admite ter bloqueado em 2009, sem o saber, uma conta conjunta na Suíça onde figuraria o rei de Espanha, junto a três suspeitos do caso "Gürtel" e dezenas de outras personalidades cujos nomes não figuram até hoje em qualquer investigação. Garzón seria inabilitado como juiz e condenado pelo Supremo Tribunal, acusado pelos investigados de violar os seus direitos ao ordenar escutas às suas conversas com os advogados. Em, Não sei, não me lembro, não me consta (Arpa & Alfil Editores), surpreende a forma como se tecem e alastram as teias da corrupção política dos finais dos anos 90 à segunda década dos anos 2000 - entre caçadas, prendas milionárias e propriedades de luxo registadas no nome de um familiar - para financiar partidos, alimentar redes clientelares e retirar benefício próprio de um cargo público.

Há também espaço para os que ousaram denunciar, como o vereador de uma aldeia na região de Madrid, José Luis Peñas, que gravou as conversas com o principal responsável da trama "Gürtel", o empresário Francisco Correa, e que num acesso de consciência, decidiu entregá-las à polícia em 2007.

Espanha ainda procura muitas respostas nos processos em curso, sobre as contas do Rei Emérito na Suíça, aos tentáculos da rede de corrupção no PP alimentada durante 19 anos por comissões ocultas e alegadamente protegida por uma "parapolícia" liderada pelo obscuro Comissário Villarejo.

A ex-presidente da Comunidade de Madrid e ex-secretária-geral do PP, Esperanza Aguirre, aguarda julgamento por acusações de associação criminosa tal como dois outros altos responsáveis do partido alegadamente envolvidos na trama de captação de comissões e criação de empresas fictícias. Alguns querem ver ex-representantes da cúpula do Estado nos tribunais, depois da vaga de indignação gerada pelos casos e algumas condenações terem derrubado o PP de Mariano Rajoy e conduzido o Rei Emérito a refugiar-se há um ano, sem exilar-se, nos Emirados Árabes Unidos.

Como sublinha Pérez Medina, Espanha não é nem mais nem menos corrupta que outros países, mas é aquele onde certamente, as atas dos tribunais melhor descrevem o perfil, os métodos e a deriva de uma geração de políticos que colocou o serviço público ao seu serviço, por vezes sem reconhecer que estava a cometer um abuso. O título da obra é uma citação do depoimento da irmã do atual monarca, a infanta Cristina, repetida mais de 500 vezes no processo do caso "Nóos", em 2014, que terminou com a condenação do marido a cinco anos de prisão por desvio de fundos e fraude fiscal. Iñaki Urdangarín, que aderiu a um programa de reinserção de delinquentes económicos, está em prisão domiciliária desde final de junho após cumprir três anos de cadeia.

dnot@dn.pt