Num encontro sobre saúde em 1996, na comissão parlamentar, concluiu-se que "era urgente avançar com profundas reformas, que tornassem o Serviço Nacional de Saúde [SNS] mais eficiente, equitativo e mais eficaz nos gastos". Mais de 20 anos depois esta parece uma conclusão que poderia ter sido retirada de uma conferência dos dias de hoje. Que reformas faltam de facto ao SNS que não foram feitas e que são urgentes?
Deixe-me dizer-lhe que tudo tem o seu tempo. A década de 1990 foi a década das reformas dos sistemas de saúde. Em todo o mundo. A Organização Mundial de Saúde, o Banco Mundial, a OCDE, todas essas grandes organizações internacionais se dedicaram muito à temática da reforma dos sistemas de saúde. Mas tem toda a razão quando diz que os problemas de 1996 são os mesmos de hoje. São os mesmos problemas de hoje porque não se progrediu de forma consistente no caminho de conferir maior racionalidade ao SNS. Racionalidade para quê? Para que o Serviço Nacional de Saúde pudesse ser mais eficiente. Porque há um pressuposto cultural, no nosso país e noutros, segundo o qual o que é privado é bom, é bem gerido, e o que é público é mau, é mal gerido. Isto são privilégios e estigmas que não existem na realidade. Há serviços públicos muito bem geridos. Há hospitais que já foram muito bem geridos, muito bem administrados. Vou dar-lhe exemplos daqueles que vivi diretamente: Santa Maria sob a presidência do professor Adalberto Campos Fernandes teve uma gestão absolutamente notável. Coimbra, os Hospitais da Universidade de Coimbra, sob a presidência do professor Agostinho Almeida Santos que conseguiu uma recuperação muitíssimo interessante. São João, sob a presidência do professor António Ferreira foi uma fantástica gestão. Santo António, para mudarmos de esquema ideológico, gerido por um homem próximo do CDS, que era o Dr. Sollari Allegro, já falecido, teve uma ótima gestão. Esses foram quatros administradores...
Tiveram... já não têm?
Nenhum deles está em funções.
Tiveram uma boa gestão, mas neste momento não têm? Por exemplo Santa Maria tem estado muito na berlinda...
Santa Maria tem 300 milhões de euros de défice. De dívidas. Teve pelo meio episódios em serviços importantíssimos, como cirurgias... com uma acareação de gestão... blocos fechados.
Mas também tem algumas condicionantes. Houve agora uma saída de enfermeiros para centros de saúde, houve a abertura do Hospital de Loures, há uma grande pressão na área do medicamento e depois há a questão, de que todos os administradores se queixam, do bloqueio por parte das Finanças. Acha que essas são condicionantes?
Vou responder-lhe com uma avaliação quantitativa. Estamos aqui com a missão de fazer um relatório sobre a Conta Geral do Estado. Na Conta Geral do Estado de 2016 o setor da saúde teve reforços orçamentais de 1488 milhões de euros e transitou com dívidas (a mais de 60 dias) com 300 milhões. Não houve falta de dinheiro, porque esse dinheiro acabou por aparecer no final. Mas vou dar-lhe outro número. Em 2017, salvo erro, os números são: 836 milhões de dívidas a mais de 60 dias e 1151 milhões de reforços orçamentais ao longo do ano. O dinheiro cedo ou tarde vem. E por isso é que os fornecedores acabam por aceitar.
É um problema crónico...
É um problema que impede uma gestão capaz. Porque se é gestor, precisa de 100, dão-lhe 75. Se lhe dessem 95 você esforçava-se e era capaz de chegar ao fim gastando 95, ou vá lá, 97,5. Agora se quando em novembro ou dezembro lhe dizem "sei que precisas de 100 mas só vais ter 75" você não gasta estes 75. Vai gastar 110. Não quer saber. Ainda por cima sabe do histórico, que os que mais gastarem são os que mais vão receber. E, portanto, não é premiado. Se estiver a apertar a despesa não é premiado. Mas e as Finanças não sabem isso? Sabem. Sabem que os incentivos são errados. Só que as Finanças têm uma velha síndrome do medo. Todas as Finanças do mundo, até as nossas. Que se derem muito dinheiro à cabeça depois vão pedir reforços de muito dinheiro. É preciso ter uma relação de total confiança entre os dois ministérios para que isso não aconteça. Eu consegui ter por pura sorte. Consegui ter um acordo com o ministro das Finanças da altura. Durante os três anos em que estive no ministério não há reforços adicionais. No máximo transitámos com 200 a 250 milhões de dívidas por pagar. Que era perfeitamente gerível.
Mas essa relação acha que não existe entre estes dois ministros...
Não sei se existe.
A saúde é uma área suborçamentada?
É uma área suborçamentada inicialmente. Há suborçamentação inicial. Os privados estão todos a dizer que há pouco dinheiro para a saúde. Não concordo nada com isso. Há muito dinheiro para a saúde. Só que esse dinheiro é entregue parte no princípio, e depois vai-se entregando... Também compreendo o problema das Finanças. Para já têm de apresentar um orçamento inicialmente contido. Todos os ministérios das Finanças pensam que se apresentam um orçamento generoso se vai gastar mais do que no orçamento. Portanto eles querem fazer uma contenção inicial. E é legítimo em toda a parte do mundo. E sobretudo também compreendo que queiram navegar à vista. Porque há um interesse nacional. Há um valor de interesse nacional que é o de acertar as contas públicas, de baixar, progressivamente, o défice orçamental e reduzir a dívida. Esse é o interesse nacional. E porquê? Porque é aquilo que nos permite entrar de cabeça levantada na Europa. De estar de cabeça levantada na Europa. E é apenas uma questão de prestígio? Não. É também muito importante a forma de termos juros mais baixos nos empréstimos de que precisamos.
A qualidade técnica dos gestores hospitalares diminuiu nos últimos anos?
Eu não tenho a lista dos gestores hospitalares, mas, como sabe, eu direi, falando em termos genéricos, que um terço dos gestores hospitalares são escolhidos politicamente. E eu não ponho as mãos no fogo por escolhas políticas. O que me reportam é que os gestores têm pouca margem de manobra. Como o ministério não tem recursos financeiros, o próprio ministro... isto também se reflete na direção central do ministério. O ministério acaba por tentar um controlo e uma gestão à vista. Uma gestão quase de tesouraria. Portanto, aquilo que noutros tempos, nomeadamente no meu tempo, praticámos, que era grande margem de manobra aos administradores regionais, isso hoje não acontece. Hoje, suponho, não só no Ministério da Saúde, mas em todos os ministérios, há um controlo quase a roçar os padrões do Dr. Salazar. Isto tem vantagens e tem inconvenientes. Tem a vantagem que já contei há pouco e tem inconvenientes porque isto tira o nervo à gestão.
Falou-me do seu partido e acabou de falar de algumas das competências do seu ministério. Como é que avalia o trabalho do ministro da Saúde nestes últimos três anos?
Aí estou completamente à vontade. Deixe-me fazer um disclaimer. Aquilo que possa dizer, enquanto opinião pessoal, só me vincula a mim, como cidadão. No passado várias vezes fizeram-me esta pergunta, para comentar antecessores e sucessores. A essa pergunta digo sempre que não. São todos excelentes. Já basta o sacrifício de estarem num dos ministérios mais difíceis, com maior tensão psicológica, com maior agressão dos media, dos parceiros sociais...
Então falemos do governo. Como avalia a ação do governo nesta área? Acha que têm sido feitas as reformas necessárias no sistema?
A continuação das linhas, que também se mantiveram antes e na troika, de cuidados primários, da criação de cuidados continuados e até com o aparecimento dos cuidados paliativos, é positiva. Só posso acolher bem. Acolher essa linha de intervenção.
Na área de intervenção da saúde familiar também o Observatório do Sistema de Saúde, o Relatório da Primavera, aponta que o ano passado foi o que teve o menor número de USF criadas.
Eu explico-lhe porquê. Aliás colaborei, no início desta legislatura, na elaboração do programa de governo. E houve um debate interessante sobre quantas unidades de saúde familiar [USF] é que o governo se propunha criar em quatro anos e houve quem dissesse "500". Aliás, o PSD tinha dito que ia criar 500.
Fala-se na necessidade de 300.
Fiz questão de que ficassem lá cem. E tinha razão. Vamos ver se chegamos ao fim do próximo ano e temos cem novas unidades de saúde familiares. Qual é o problema das USF? É o mesmo problema de quando arranquei a ferros, do Conselho de Ministros, a sua aprovação. É que dizem que uma USF custa um milhão de euros a mais por ano. E, portanto, qualquer ministro das Finanças, sobretudo que está a gerir praticamente por interposta pessoa os ministérios setoriais, dirá "o quê? São 20 unidades, mais 20 milhões para a saúde? Deus nos livre". É evidente que há n estudos, publicados sobre o impacto não só na saúde pública, o impacto financeiro nas poupanças a médio prazo. Essa evidência existe. Mas como sempre acontece quando há um decisor altamente pressionado, em termos de tesouraria, pensa a curto prazo, não pensa nos ganhos ao fim de dois anos. Portanto, vai restringir ou vai tornar-se relutante a assumir despesas que ele só conhece da parte da despesa sem conhecer contrapartida em termos de impacto, mesmo até que seja só financeira. É essa a razão, pura e simples.
Há uma outra frase sua, esta publicada na Análise Social, em 2001, que diz que "a experiência do Estado na contratualização de serviço ao setor privado pode ser forçada". Numa altura em que muito se fala da proposta do PSD para a área da saúde, em que muitos a acusam de ser uma privatização do SNS, como é que olha para essa proposta? Continua a achar que há espaço para contratualizar ainda mais com o setor privado?
Eu não posso pronunciar-me sobre política partidária concreta. Devo dizer que a proposta do PSD apesar de tudo tem um elemento positivo que é a gestão dos hospitais ser concessionada ao setor privado. Mas aí a grande objeção que coloco é a seguinte: nós temos, no setor privado gestionário, gestores hospitalares, uns três ou quatro grandes grupos que têm uma experiência muito boa. Se se abrisse um concurso para a concessão de hospitais, os concorrentes e os adjudicatários, muito provavelmente, seriam esses três ou quatro grupos. E a questão que coloco é: será que interessa ao Estado português transformar o setor público, que ele hoje controla, num oligopólio controlado por três ou quatro grupos privados?
Corre-se esse risco?
É evidente. Portugal não é como os Estados Unidos ou como a Espanha, onde há vários desses concursos. Portugal é um pequeníssimo mercado, e nesse mercado os candidatos são grupos conhecidos. São dois ou três.
E em relação às PPP. Acha que estão mais bem geridas?
Isso está documentado. Há vários estudos, quer do Tribunal de Contas, quer do Conselho de Finanças Públicas, quer da Entidade Reguladora da Saúde. O estudo da Entidade Reguladora da Saúde não encontrou vantagens gestionárias nem de um lado nem do outro. Mas é uma análise de há dois anos. Há outros estudos que encontram pequenas vantagens para as parcerias. Mas, atenção, há uma informação que o público não conhece. Durante a crise, as parcerias estavam contratualizadas, e os governos durante a crise nunca quiseram reduzir os investimentos para as parcerias - havia um contrato - e esse contrato foi sempre cumprido, sempre respeitado. Ora isso não aconteceu no setor público. E, portanto, não me custa nada admitir que as parcerias tenham gerido bem um contrato que foi cumprido da parte do financiador. Enquanto o setor público teve cortes brutais. Aí pode haver diferenças de gestão.
Porque todos eles têm contratos. Mesmo os hospitais do SNS têm uma contratualização, têm objetivos, porquê essa diferença em termos de resultados finais?
A contratualização do setor público é acertada no final, em função do dinheiro existente no orçamento. E a realidade não é essa. O setor público não pode deixar de acolher pessoas na urgência, nem pode fechar uma consulta, nem pode dizer que vai baixar 30 camas de uma unidade.
Essa é uma discussão que também está a ser tida ao nível da Lei de Bases da Saúde, que há de ser apresentada em breve. Tínhamos várias posições, uma dos partidos de esquerda - para acabar com as taxas moderadoras, sem entrega da gestão de serviço ao privado - e uma outra, que parece que vai ficar na lei, que mantém essa ligação ao privado, também na gestão. Não lhe merece qualquer reparo?
Não. Nós não quisemos envolver-nos na Lei de Bases da Saúde. Por duas razões. Primeiro porque a prioridade não é a lei de bases é o que está acima/antes da lei de bases. A saúde é uma política publica, e nós preocupamo-nos com as questões da política pública. As questões que estão a montante das leis de bases. As leis são depois textos que cristalizam uma determinada posição. E como todos sabemos da história, há textos que são cumpridos e textos que não são cumpridos. Portanto o próprio cristal também pode partir. Uma opinião um pouco mais aberta poderia dizer que não precisamos nada de uma Lei de Bases da Saúde neste momento. Podemos funcionar perfeitamente com a lei de bases que existe. Esta questão está ultrapassada, nem sequer vale a pena discuti-la, está ultrapassada porque a discussão iniciou-se e está a ser útil. O Conselho Económico e Social [CES] tem a responsabilidade de analisar todas as questões de natureza económica e social que os seus conselheiros entendam e portanto nós não podíamos, numa discussão que estava a aproximar-se, assobiar para as árvores e dizer "o CES não tem nada que ver com a política de saúde". Nós aqui temos os parceiros sociais e estamos numa situação única. E foi essa convocação que fizemos. Convocámos essas instituições para o encontro desta sexta-feira. Encomendámos a um grupo de especialistas textos, que nem sempre são consonantes, alguns deles são dissonantes e são assinados por pessoas diferentes, que discutem, debatem, apresentam o problema do financiamento, dos recursos humanos, das relações entre os três setores (o público, o social e o privado), portanto são textos que alimentam o debate. E depois convocámos os conselheiros e parceiros do CES que comentam aqueles textos. Os textos vão ser publicados, assim como os comentários, e no final vamos reunir um volume com opiniões que noutras instâncias não surgiriam.
Pelo que percebo considera que não era necessário haver, para já, esta discussão da lei de bases, ou ter uma nova lei de bases...
Agora tornou-se necessário. A lei começou e tornou-se necessária. Mas em termos absolutamente objetivos o país talvez não precisasse já desta discussão. Mas ainda bem que ela veio.
Não é ela que vai introduzir as reformas que são necessárias no SNS?
Não sei. Vamos ver. A discussão é para se fazer. É possível que haja um debate. Não sou negativista em relação à discussão. Acho que a discussão está a fazer-se e pode ser útil. Até pode desfazer o meu preconceito. Quando eu digo que o debate sobre a lei de bases é um debate estratosférico, e já tenho usado esta palavra, é porque acho que há coisas para as quais as nossas energias deviam ser utilizadas.
E ao utente, verdadeiramente, parece dizer muito pouco.
Ao utente diz muito pouco. Essa é a questão.
É uma questão de elites?
É mesmo essa a questão central. Não direi que é uma discussão de elites mas é uma discussão entre pessoas superinformadas, uma minoria na sociedade portuguesa. E, portanto, são essas pessoas que podem ver... mas o facto de ser uma discussão restrita não significa que não seja útil.
Falou há pouco dos parceiros sociais. Apesar da recuperação económica, ou por causa disso, tem havido muita contestação setorial na área da saúde. O diálogo, a concertação social, nesta área tem falhado?
Não. Suponho que as pessoas têm tido sempre a porta aberta do ministério e acesso total à comunicação social e, portanto, exprimem os seus pontos de vista, fazem as greves que entendem.
Têm sido anos com uma carga de greves e contestação que era pouco esperada, depois da intervenção da troika.
A questão central foi a das 35 horas. Essa é uma questão central e terrível. Talvez aí o governo não tenha explorado todas as oportunidades que poderia ter. O governo pura e simplesmente considerou que as 35 horas eram uma meta ideal. E não explorou outras possibilidades. Porque é que as 35 horas podem não ser uma meta ideal? Porque as 35 horas vão, naturalmente, precisar de mais pessoal - há quem entenda que é fantástico, dar mais emprego, mais salários no setor público, há quem entenda que isso é bom para o serviço público. Quase toda a gente pensa assim. Eu não tenho a certeza de que mais pessoas a 35 horas é a melhor solução para o SNS. Gostaria de ter mas não tenho. Teria preferido a manutenção das 40 horas, nem que fosse voluntária mas com aumento de retribuição, que não apenas o correspondente das cinco horas mas até, eventualmente, com outras formas de retribuição por desempenho. O que se vai passar com as 35 horas? Vai recrutar-se mais pessoas - já estão a entrar mais pessoas nos hospitais, provavelmente parte delas era absolutamente necessária, a outra talvez não - e a essas pessoas vão sobrar, nas circunstâncias normais, cinco horas. Como recebem pouco, e o Estado não tem condições de aumentar os vencimentos, essas pessoas vão arredondar os seus vencimentos e vão trabalhar para o setor privado. Um segundo emprego. Digamos um turno de 12 horas por semana.
Estamos a falar de enfermeiros?
Estamos a falar de enfermeiros, de médicos, de técnicos superiores. O pessoal essencial, o pessoal mais importante de um hospital. Isso significa que vamos aumentar o pluriemprego, vamos diminuir a profissionalização no setor público. Não me espantaria que, daqui a cinco anos, os problemas com o pessoal fossem maiores. Não me espantaria que, daqui a cinco anos, houvesse queixas dos enfermeiros por excesso de trabalho.
Os enfermeiros já se queixam de casos de burnout. Acha que com tantos turnos no setor público ainda têm capacidade para um segundo emprego no setor privado?
Muitos irão fazer. Já hoje o fazem. Porque há muita procura. Por exemplo, cuidados continuados. Há muita procura de cuidados continuados ao domicílio.
Acha que deveria haver exclusividade?
Acho que deveria haver melhores condições financeiras. Não é exclusividade. A exclusividade não se impõe por decreto. A exclusividade obtém-se oferecendo boas condições de trabalho às pessoas. Isso é o que leva à exclusividade. Não é a lei. A lei é secundária. O que é importante é que as pessoas se sintam bem no seu trabalho. E, naturalmente, não se sentem bem quando são mal pagas.
Não há um problema de recursos humanos no SNS? Que é de facto necessário contratar?
Há, há um problema de recursos humanos de enfermagem, há um problema de recursos humanos médicos e é um problema que foi agravado pela emigração. Porque os nossos enfermeiros são todos sugados. Qualquer enfermeiro que se coloque no mercado de trabalho internacional tem emprego no dia seguinte. Porque são de muita boa qualidade. Foram bem treinados. Têm alguma experiência (alguns até muita experiência) e são muito bons. Portanto são imediatamente chamados. Enfermeiros, médicos e técnicos superiores. Radiologia, cardiologia, de reabilitação, etc., esses nossos profissionais mereciam que as condições que os hospitais lhes possam oferecer para os atrair fossem melhores. Mereciam, por exemplo, ser pagos por desempenho ou, pelo menos, uma parte do seu pagamento ser por desempenho. Como acontece com as unidades de saúde familiar. O que era necessário era criar um modelo de gestão dos serviços hospitalares que fosse baseado no que aconteceu nas unidades de saúde familiar.
Objetivos, mérito...
Sim. E que retivesse as pessoas. A questão mais importante é a motivação. E a motivação consegue-se por muitas formas. Pela qualidade do trabalho, pela qualidade da equipa, pelo ambiente de trabalho criado pela equipa, consegue-se também, e muito importante, pela retribuição. Se as pessoas sentem que a retribuição é injusta naturalmente não estão satisfeitas.
Há uma área que tem sido muito falada nos últimos tempos, pela falta de recursos humanos, pela falta de especialistas, que é precisamente a obstetrícia. Falo nisso a propósito do fecho de salas de partos, uma das medidas mais polémicas do seu mandato. Sente que estes problemas nas urgências de obstetrícia vieram dar-lhe razão? Tomaria a mesma decisão hoje?
Isso é uma decisão discutível. A decisão não foi tomada por razões de poupança de dinheiro. A decisão foi tomada porque uma comissão de especialistas recomendou a concentração dos partos em unidades onde pudesse haver todas as condições. Unidades com poucos partos (uma centena de partos por ano) significa menos de um parto por dia. E não podem ter recursos. Não se pode ter um neonatalogista a ter um parto de dois em dois dias.
Tomaria a mesma decisão?
Sem dúvida. A verdade é que ela não foi revertida.
Na altura gerou imensa polémica porque as populações não a perceberam. Acha que houve alguma falta de comunicação com as populações?
Sim, é provável que sim. Não era conhecido por ser bom comunicador.
Acho que a gestão definitivamente tem de deixar de ser tão partidarizada.
O CES já recebeu as grandes opções do plano. Falta um ano para o final da legislatura. Qual será o grande desafio que se coloca ao governo para esta reta final de legislatura em que o SNS fará os seus 40 anos? Como é que o governo o pode defender, o pode reformar, qual o grande desafio para este último ano?
O mais importante, neste momento, vai continuar a ser mantermos as contas públicas em ordem. Dê por onde der. Esse é o problema número um da sociedade portuguesa. Conseguirmos ter as contas públicas em ordem e conseguirmos recuperar e conseguir que os portugueses recuperem, ainda que pouco a pouco, na forma que o sistema financeiro o permita, o poder de compra e as suas condições de vida. Agora o que é possível melhorar dentro dos hospitais, dentro do setor da saúde: pagar os hospitais por desempenho. Até já há uma portaria criada no ano passado e publicada neste ano.
Está a falar dos centros de responsabilidade integrada.
Sim. Uma portaria muito interessante, muito bem feita, que me parece que tem as condições para isso. Mas depois faltam os decretos-leis que permitam fazer a parte financeira. É necessário organizar as unidades hospitalares. E não é preciso serem todas de repente. É essa a linha. O que me parece mais importante. E depois profissionalizar a gestão. Acho que a gestão definitivamente tem de deixar de ser tão partidarizada. Dir-me-á mas então a CReSAP? É uma forma de legitimar a partidarização, já pensou bem? A CReSAP o que é? São apresentados três nomes. Mesmo que sejam dados pela CReSAP, que tenha técnicos muito independentes que façam a seleção. Nesses três aposto que há quase sempre um do partido diferente da maioria política... Não tenho memória de algum dia ter sido escolhido um candidato de um partido diferente. O que significa que os ministros, com CReSAP ou sem CReSAP, vão ter a tendência para escolher aqueles que lhes são mais fiéis. Mesmo em termos de fidelidade partidária será que os governos ganham alguma coisa com isso? Vê algum dirigente escolhido na CReSAP e próximo do governo atual a defendê-lo nos jornais? Eu não vejo. Nem sei porque é que os governos insistem nesse erro. Francamente... se dissesse que são grandes defensores do governo que esteja em funções... nem isso. Mexem-se para ter os lugares e depois ficam ali, encostadinhos. Profissionalizar a gestão. Mas o mais importante de tudo é recuperar a honra de se trabalhar no Serviço Nacional de Saúde.
Estas notícias sucessivas de problemas nos serviços, faltas de acesso, a entidade reguladora publicou várias deliberações de problemas nos serviços, retiram alguma dessa confiança dos profissionais, dos utentes.
Se os profissionais não estão satisfeitos isso acaba por direta ou indiretamente se refletir nos utentes. Há sempre um mal-estar que transparece. Quando uma pessoa não está satisfeita com o seu trabalho quem lhe aparece pela frente acaba por notar, mesmo que ele não diga nada. E é esse desgosto que é preciso acabar. Essa perda de identidade com o SNS.
Sente essa degradação do SNS?
Não estou em condições de a sentir a não ser pelo que leio nos jornais. E o que leio nos jornais é muitas vezes ampliado. Há forças políticas, sindicais e económicas que estão sempre interessadas em ampliar o desagrado em relação ao SNS. Naturalmente os sindicatos em momentos de crise tendem a agravar o mal-estar para defender e para que as pessoas concordem com as suas reivindicações, naturalmente os setores interessados no SNS financeiramente tendem a aceitar ou a admitir mais facilmente que o SNS funciona mal do que os outros. Acho que há razões, e é muito difícil ler claro. Eu próprio, que posso até dizer que sou um especialista do setor, tenho dificuldade em perceber alguns desses movimentos.
Há pouco referiu que ajudou na elaboração do programa do governo nesta área. Três anos depois, está desiludido ou acha que está a ser cumprido?
As funções que tenho obrigam-me a ter um critério de avaliação global e integral. Não posso ter uma lente focada sobre a saúde ou sobre a educação, sobre a segurança social ou sobre o quer que seja. Mas acho que, em termos globais, estes três anos foram de muito bons resultados. Começo pelo aspeto financeiro. É evidente que a situação económica ajudou. Nacional e internacional. A nossa situação é extremamente dependente da internacional e aproveitámo-la bem, sobretudo os empresários, nomeadamente o pequeno empresário, o exportador, fez um trabalho notável. Não posso esquecer que tudo isto se conseguiu com um ambiente internacional favorável. Isso significa também que tenho de aprender com esta experiência e que temos de pensar o país que não pode ser apanhado de novo numa encruzilhada. O país precisa de estar muito atento aos sinais da economia e precisa de estar preparado para os maus tempos. Crises vêm sempre. A economia funciona por ciclos.
No futuro pode voltar a ajudar o seu partido?
Não nego que estou a ajudar o meu partido. Fui eleito com a ajuda dos votos dos deputados do meu partido.
Mas depois deste cargo...
Na vida política executiva não. Acho que a minha idade [75 anos] já não permite... os cargos executivos são muito exigentes, muito fatigantes. E, portanto, precisam de gente nova. E há gente nova, pessoas cheias de energia, cheias de capacidade e com outro entendimento da vida, dominando todas as tecnologias. Sinto-me satisfeito com a vida e as funções que tive... pude ajudar o país, contribuir para o país e pagar aquilo que o país em mim investiu. Deixou-me ir para o estrangeiro, deu-me uma formação de elite. Não me posso queixar. Tive tudo aquilo a que uma pessoa da minha geração poderia aspirar. Não poderia ter mais do que aquilo que tive.