Ao contrário do que sucedeu em anteriores surtos endémicos, transformados ou não em pandemias - como as crises do VIH e do ébola -, quando todas as grandes potências eram governadas por adultos, a ameaça da covid19 está a ser aproveitada, lamentavelmente, para exercícios irresponsáveis e pueris de mera geopolitiquice (não, não se trata de geopolítica, a qual é coisa muito mais séria).
Não tenho dúvidas: a principal responsável por tal clima é a administração norte-americana, que, diferentemente do que sucedeu durante o surto daqueles dois vírus, quando assumiu a liderança do combate global contra a ameaça que ambos representavam, resolveu desta vez, numa espécie de interpretação criativa (?) do slogan America First, atrapalhar os esforços mundiais para conter o novo coronavírus. O verbo inglês parece, pelo menos sonoramente, mais efetivo: jeopardize.
A maneira como o presidente Trump tem lidado com a covid-19 está a ser fortemente contestada por largos setores da sociedade americana. Depois de passar os primeiros meses a desvalorizar a ameaça da doença, desprezando as opiniões dos cientistas, virou as baterias para dois "inimigos externos": a China e a Organização Mundial da Saúde (OMS). Em África, conhecemos bem essa tática, que os "nossos" autocratas tanto usam e da qual, muitas vezes, abusam.
Talvez surpreendidos, os porta-vozes do liberalismo ocidental (a imprensa dita de referência, os analistas "isentos", scholars, alguns líderes políticos europeus e seus descendentes do Pacífico, que continuam a fazer reverência a Sua Majestade a Rainha da Inglaterra) não tiveram outro recurso senão recorrer à "estratégia da simetria": passaram a acusar a outra grande potência atual, a China, de ser igualmente (sublinhe-se o advérbio) responsável pelo clima de "guerra fria" a que o mundo está agora a assistir, a pretexto da covid-19, se não mesmo a grande responsável pelo surgimento desta última, sugerindo uma investigação independente ao modo como Pequim geriu o surto do novo coronavírus.
Não chegam a dizer, é verdade, que o mesmo foi criado num laboratório de Wuhan, mas a diferença entre as suas suspeições e essa acusação não provada cientificamente por ninguém é muito ténue.
Já aqui escrevi, em outro artigo, que a eventual aliança entre o liberalismo ocidental e o populismo, por causa do seu comum anticomunismo primário, não dá certo, como a humanidade já o vivenciou numa época não tão distante assim. Vamos, então, por partes.
O sistema político chinês é ditatorial? É. A China ocultou inicialmente as informações sobre o surto do novo coronavírus? Tudo indica que sim. Pequim está a aproveitar-se da situação criada pela covid-19 e, sobretudo, da inicial negligência e indiferença europeia para, através da política conhecida como soft power, aumentar a sua influência internacional? Está claro aos olhos de todos.
Isso é uma coisa. Outra coisa, totalmente diferente, é alimentar infundadas teorias da conspiração acerca do surgimento do atual vírus, responsabilizar a China pela sua propagação global ou acusá-la de ter desencadeado o presente clima de guerra fria que parece alastrar-se todos os dias.
A verdade é que a China reportou oficialmente o surgimento do novo coronavírus em Dezembro de 2019, mas o mundo inteiro, exceto a Ásia, estava mal preparado para enfrentar esta crise. Pior do que isso, negligenciou a ameaça. O jornal espanhol El País acaba de confirmá-lo, numa contundente reportagem publicada na última terça-feira, 19 de maio e reproduzida pelo DN.
Segundo o jornal, no dia 18 de fevereiro deste ano, poucos dias antes da primeira morte por covid em Itália, os membros do Centro Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças (ECDC, acrónimo em inglês) estiveram reunidos em Estocolmo, Suécia, tendo considerado "baixo" o risco do vírus para a população europeia. Apesar da preocupação do representante alemão (entende-se agora por que razão a Alemanha foi dos países europeus que melhor respondeu à pandemia), o centro recusou recomendar o início dos testes, "para não provocar alarme", não levando em conta, por conseguinte, a velocidade de contágio do novo coronavírus e a letalidade da doença.
Como responsabilizar, pois, a China pela demora ocidental em enfrentar a covid-19? Por outro lado, não se pode esquecer também a falta de solidariedade inicial da União Europeia em relação à Itália, por exemplo, quando o país se deu conta da tragédia que vivia. Como criticar (?), moral ou politicamente, a China (e outros países, como a Rússia e Cuba), por ter acudido a Itália?
Uma nota final para comentar a atitude daqueles que, tentando atrair a África para legitimar a sua postura antichinesa, invocam os incidentes de xenofobia de que cidadãos africanos têm sido vítimas em algumas cidades da China. É caso para dizer: agradecemos a preocupação, mas nós, africanos, sabemos bem o que é ser vítima de xenofobia e de racismo em todas as partes do mundo. Cabe-nos a nós, em primeiro lugar, reagir a isso, como o temos feito ao longo da história.
Isso inclui, recorde-se, as diásporas africanas espalhadas pelo mundo inteiro. Não é fácil manter a souplesse diante da súbita preocupação com a situação dos africanos na China por parte de alguns que marginalizam, reprimem e permitem o assassinato dos seus próprios cidadãos de origem africana, apenas por fazerem jogging na rua, o que os torna, à partida, "suspeitos".
Por outro lado, e como diz um velho ditado africano, nós sabemos perfeitamente que "quando dois elefantes lutam, o capim é que sofre".
Deixem-nos de fora dessa nova "guerra fria".
Jornalista e escritor angolano. Diretor da revista África 21.