Política
16 fevereiro 2021 às 00h30

TC. Novo presidente revoltado com "lobby gay" e "promoção da homossexualidade"

Declarando-se "membro da maioria heterossexual", João Caupers descreveu em 2010 - no dia da promulgação da lei que permite o casamento a pessoas do mesmo sexo - "os homossexuais" como uma "inexpressiva minoria cuja voz é despropositadamente ampliada pelos media" dizendo-se "não disposto, nem disponível, para ser "tolerado" por eles."

"Uma coisa é a tolerância para com as minorias e outra, bem diferente, a promoção das respetivas ideias: os homossexuais não são nenhuma vanguarda iluminada, nenhuma elite. Não estão destinados a crescer e a expandir-se até os heterossexuais serem, eles próprios, uma minoria. E nas sociedades democráticas são as minorias que são toleradas pela maioria - não o contrário. (...) A verdade - que o chamado lobby gay gosta de ignorar - é que os homossexuais não passam de uma inexpressiva minoria, cuja voz é enorme e despropositadamente ampliada pelos media."

As palavras são de João Pedro Barrosa Caupers, o novo juiz presidente do Tribunal Constitucional, num texto publicado a 17 de maio de 2010, dia no qual o então presidente Cavaco Silva promulgou a lei que alterou o Código Civil, retirando deste a proibição do casamentos de pessoas do mesmo sexo e coincidentemente também a data em que se celebra anualmente o dia internacional contra a homofobia.

Nesta publicação, que se encontra ainda numa espécie de jornal "de parede" digital da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa no qual os respetivos professores "afixavam" textos de opinião de acesso público, o novo presidente do Tribunal Constitucional (TC) exprimia também revolta com "os cartazes que a Câmara de Lisboa espalhou pela cidade, a pretexto da luta contra a discriminação, promovendo a homossexualidade."

Aludia a uma campanha da Associação Ilga-Portugal que constava de um cartaz com a fotografia de uma mulher e uma criança e a pergunta: "Se a tua mãe fosse lésbica, mudava alguma coisa?" e que ocupara no início do ano, após a aprovação da alteração legislativa referida, alguns mupis da autarquia.

Este especialista em Direito Administrativo, hoje com 69 anos, e que desde 2014 integra o TC, tendo em 2016 ascendido à vice-presidência, frisava no seu texto de 2010 a "falta de indignação mediática" com a dita campanha face à abundância de escândalo público que lhe parecia ter rodeado a revelação, em abril, de que o professor catedrático de Direito constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Paulo Otero apresentara aos seus alunos um teste no qual lhes pedia para justificarem simultaneamente, em resposta a perguntas distintas, a constitucionalidade e a inconstitucionalidade de um diploma que teria hipoteticamente sido aprovado "em complemento à lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo" e que permitiria também o casamento entre pessoas e animais domésticos.

Apesar de certificar que não achava a escolha desse exemplo "caricatural" apropriada a um exame porque "a escolha de temas fraturantes - eutanásia, interrupção voluntária da gravidez, etc. - num exame pode criar uma pressão suplementar sobre o estudante" e até por o considerar "de mau gosto", rematava: "Mas é uma mera questão de sensibilidade pessoal. Também me pareceram de muito mau gosto os cartazes que a Câmara de Lisboa espalhou pela cidade, a pretexto da luta contra a discriminação, promovendo a homossexualidade. E não me lembro de terem sido assunto relevante de telejornal, nem de terem suscitado indignação mediática."

Na verdade, ao contrário do que afirmava o docente da Nova, a campanha da ILGA gerou polémica, com o então vereador Pedro Santana Lopes, do PSD, a interpelar o à época presidente da Câmara, António Costa, sobre o apoio da autarquia. Este respondeu: "É uma campanha pela não discriminação, não me parece que suscite particulares questões."

Sem explicar por que motivo lhe pareciam de mau gosto os referidos cartazes ou porque os entendia como "promoção da homossexualidade", o então já professor catedrático João Caupers assegurava no entanto não ser "adepto" de "nenhuma forma de discriminação, contra quem quer que seja", e ser-lhe "indiferente" que os amigos "sejam homossexuais, heterossexuais, católicos, agnósticos, republicanos ou monárquicos", considerando que "as minorias devem ser tratadas com dignidade e sem preconceito, tanto pelo Estado, como pelos outros cidadãos". Para concluir: "Os homossexuais merecem-me o mesmo respeito que os vegetarianos ou os adeptos do Dalai Lama. São minorias que, como tais, devem ser tratadas com dignidade e sem preconceito, tanto pelo Estado, como pelos outros cidadãos."

Mas logo de seguida ajuntava: "Estou convencido de que existem mais vegetarianos do que homossexuais em Portugal - e, porventura, até mais adeptos do Dalai Lama. Não beneficiam, porém, do mesmo nível de acesso aos jornais, aos microfones das rádios e às objetivas das televisões."

E chegava mesmo a afirmar: "A minha tolerância para com os homossexuais não me faria aceitar, por exemplo, que a um filho meu adolescente fosse "ensinado" na escola que desejar raparigas ou rapazes era uma mera questão de gosto, assim como preferir jeans Wrangler aos Lewis [sic] ou a Sagres à Superbock."

O DN entrou em contacto com o TC para questionar João Caupers sobre este seu escrito, nomeadamente para saber se continua a subscrever o que nele disse há quase 11 anos.

Também foi perguntado ao juiz conselheiro o que entende ou entendia por "promoção da homossexualidade" nos aludidos cartazes da ILGA Portugal, assim como o que seria "a promoção de ideias de minorias" a que faz referência várias vezes no texto, e em concreto que "ideia" da "minoria homossexual" tinha em mente, assim como o que quer significar com a expressão "lobby gay".

Foi igualmente pedido ao novo presidente do mais alto tribunal do país que explique como compagina as afirmações "nas sociedades democráticas são as minorias que são toleradas pela maioria - não o contrário" e "enquanto membro da maioria heterossexual, respeitando os homossexuais, não estou disposto, nem disponível, para ser "tolerado" por eles" com princípios constitucionais básicos como o da dignidade da pessoa humana (consagrado logo no 1º artigo, e que pressupõe que as pessoas não estão submetidas ao desígnio de "tolerância" ou não de outras) e o da igualdade, expresso no artigo 13º. Este, recorde-se, estatui que "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei", o que pressupõe que não existem privilégios das "maiorias" e ascendentes destas sobre as "minorias".

Como justificar pois, à luz deste princípio, a ideia de que as maiorias se podem arrogar dirigir "tolerância" às minorias mas os membros daquelas "não estão disponíveis" para ser tolerados por membros de minorias? Não pressuporá tal afirmação que o conceito de tolerância é nela encarada como uma afirmação de superioridade, poder e domínio da maioria (e decorrentemente uma posição inferior e subalterna da minoria) que colide frontalmente com o princípio da igualdade?

Aliás, no mesmo artigo da Constituição lê-se: "Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual."

O elencar destas características específicas tem um motivo: trata-se daquilo a que se dá o nome de "categorias suspeitas", ou seja, aquelas que historicamente foram (e são, ou não seria preciso elencá-las ainda) motivo de discriminação e perseguição e necessitam pois de especial proteção. Porque é disso mesmo, de proteção especial, que consiste o elencar destas categorias.

Comparar um grupo terrivelmente perseguido e discriminado, como os homossexuais (que, recorde-se, são ainda criminalizados pela sua orientação sexual em muitos países, nalguns inclusive submetidos à pena de morte; a criminalização da homossexualidade em Portugal só foi definitivamente afastada em 2007, quando foi retirado do Código Penal o tipo criminal "atos homossexuais com adolescentes" depois de o Tribunal Constitucional o ter declarado inconstitucional por duas vezes, no âmbito de recursos de processos criminais), com vegetarianos surge pois como no mínimo surpreendente.

Afinal o que a comparação pressupõe é equivaler a luta dos primeiros pela igualdade, implicando a visibilidade necessária para tal e portanto um discurso público, com qualquer afirmação pública dos segundos. Como não há notícia de que ser vegetariano tenha sido só por si motivo de perseguição e discriminação quer em Portugal quer noutras zonas do globo, a comparação efetuada não deixa de funcionar, mesmo se não foi essa a intenção, como uma minimização, ou até uma negação, da perseguição e discriminação em função da orientação sexual.

Será a minimização ou negação dessa discriminação e perseguição a explicar que João Caupers tenha em 2010 expressado a sua intolerância em relação àquilo que descreve como um seu filho adolescente a ser "ensinado" na escola "que desejar raparigas ou rapazes era uma mera questão de gosto" como "preferir jeans Wrangler aos Lewis ou a Sagres à Superbock"? Para além de a orientação sexual não ser, como é sabido, uma "mera questão de gosto", o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º e o facto de fazer parte das categorias suspeitas obriga o Estado a pugnar pela não discriminação em todo o seu universo, e desde logo no do ensino. Isso mesmo tem sido, de resto, afirmado por sucessivos governos e pelo parlamento.

O jornal solicitou ao presidente eleito do TC que explicite o que quis dizer com a recusa citada, e o que pensa deva ser o cumprimento pela escola do princípio da igualdade e da não discriminação.

Eleito para substituir o penalista Manuel da Costa Andrade na presidência do TC, João Caupers, que é considerado da área do Partido Socialista, deverá em breve decidir com os outros juízes conselheiros sobre o pedido de apreciação da constitucionalidade de normas constantes da Lei 38/2018, que consagra o "direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa", apresentado por um grupo de deputados do PSD e CDS/PP em julho de 2019.

A lei em causa, acusada pelos seus detratores de visar "impor a ideologia de género", pretende a proteção das pessoas transgénero, ou seja, que nascem com características corporais que não coincidem com a sua identidade de género, ou que nascem com características físicas atribuídas a ambos os sexos (vulgarmente designados por hermafroditas). E fá-lo através da "proibição da discriminação, direta ou indireta, em função do exercício do direito à identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais", obrigando as entidades privadas e fazendo competir às públicas a promoção " no âmbito das suas competências", das "condições necessárias para o exercício efetivo do direito".

Quer PSD quer CDS-PP votaram contra toda a lei, mas as normas cuja aferição de constitucionalidade consta do pedido apresentado ao TC são apenas as elencadas no artigo 12º da lei, com a epígrafe "Educação e ensino".

Apesar de não manifestarem reservas em relação à exigência de que os "estabelecimentos do sistema educativo, independentemente da sua natureza pública ou privada", garantam "as condições necessárias para que as crianças e os jovens se sintam respeitados de acordo com a identidade de género e expressão de género manifestadas e as suas características sexuais", os deputados signatários, vários dos quais saíram do parlamento após as legislativas de 2019, contestam que o Estado deva "garantir a adoção de medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas."

Também consideram inconstitucionais "medidas de prevenção e de combate contra a discriminação em função da identidade de género, expressão de género e das características sexuais"; "mecanismos de deteção e intervenção sobre situações de risco que coloquem em perigo o saudável desenvolvimento de crianças e jovens que manifestem uma identidade de género ou expressão de género que não se identifica com o sexo atribuído à nascença"; "condições para uma proteção adequada da identidade de género, expressão de género e das características sexuais, contra todas as formas de exclusão social e violência dentro do contexto escolar, assegurando o respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação das crianças e jovens que realizem transições sociais de identidade e expressão de género".

E por fim, opõem-se a que haja "formação adequada dirigida a docentes e demais profissionais do sistema educativo no âmbito de questões relacionadas com a problemática da identidade de género, expressão de género e da diversidade das características sexuais de crianças e jovens, tendo em vista a sua inclusão como processo de integração socioeducativa".

A explicação dada por Miguel Morgado, o ex-deputado do PSD (não fez parte das listas em 2019) que deu a cara pela iniciativa foi de que "a Constituição proíbe que o Estado promova no sistema de ensino a propagação de ideologias, religiões ou doutrinas. É só isso que aqui está em causa na nossa iniciativa: a proteção da escola face às ideologias - no caso desta lei, a de género." Assegurou no entanto que o pedido ao TC "não incide sobre o direito consagrado na lei à autodeterminação da identidade de género".

Até à publicação deste texto, o DN não recebera resposta de João Caupers.