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15 agosto 2021 às 22h11

A águia que protege os Jerónimos das gaivotas

Chama-se Belém e apesar de não responder pelo nome tem cumprido com sucesso a sua missão de afastar as gaivotas do claustro e dos telhados do Mosteiro dos Jerónimos. A visita é agora mais agradável, sem medo de ataques ou dejetos vindos do ar, e o monumento mantém-se mais bem preservado.

Sofia Fonseca

Há dez anos que o lago central do claustro do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, não tinha água pois constituía uma tentação para as gaivotas, que ali gostavam de se refrescar. Os telhados e terraços do monumento estavam cheios de dejetos e até de lixo e carcaças de outros animais que estas aves para ali levavam. Mas agora tudo mudou, graças à intervenção de uma águia que tem a missão de ali fazer uns voos e, com a sua presença, espantar as gaivotas e impedi-las de nidificar.

"Eu quero é deixar bem claro que não tocamos em ninhos, não tocamos em ovos, não tocamos em crias", realça o falcoeiro Rui Carvalho. "O trabalho tem de ser feito antes de tudo isso. Antes de a gaivota começar a escolher o seu sítio para nidificar é que nós temos de começar a vir e depois manter a nossa presença para que a instabilidade, a insegurança seja constante", explica.

Foi em março que o falcoeiro ali chegou pela primeira vez e, desde então, é presença assídua nos telhados e terraços do Mosteiro dos Jerónimos. Ele e uma ave de rapina. Normalmente, um búteo de Harris fêmea, que foi batizado de Belém. "Mas a ave não atende ao nome, é meramente identificativo. Chamar-lhe Belém, Maria ou Manuel para ela igual. Ela reage é aos estímulos do treino", explica. O treino consiste em técnicas de caça de animais selvagens, que aqui são utilizadas para espantar as gaivotas e fazê-las desistir de ali fazer os seus ninhos. "Ela não as vai capturar... Mas se eu não a tiver treinada para caçar não vou conseguir fazer isto, porque ela não as vai ver como presas", acrescenta.

Recorrer àquilo que se chama controlo de avifauna - também usado em aeroportos e aterros sanitários - foi iniciativa de Dalila Rodrigues, que se deparou com esta presença "altamente danosa do ponto de vista patrimonial" quando assumiu a direção do monumento, em maio de 2019. "As gaivotas provocam dois tipos de danos essenciais. Por um lado, têm uma ação de desgaste quando estão pousadas nas coberturas e nas estruturas arquitetónicas; e por outro lado, os dejetos que são extremamente ácidos e que provocam, sobretudo numa pedra dúctil como é o calcário, problemas gravíssimos de conservação", explica. Além disso, estar no claustro era assumir um risco. "No ano passado, no dia 10 de junho, foi muito difícil levar a bom porto alguns aspetos da comemoração do dia de Portugal, de Camões e das Comunidades", lembra a responsável.

Já antes, quando estava no Museu Nacional de Arte Antiga, lidara com um problema semelhante, mas com pombos, que "atacavam os visitantes e a parte da cafetaria de uma forma impiedosa". Nos Jerónimos a "praga" era de uma espécie protegida, o que levou ao recurso a metodologias já praticadas em outros dois monumentos nacionais. No mosteiro de Alcobaça usam-se os falcões para espantar os pombos; na fortaleza de Peniche, onde está instalado o Museu Nacional Resistência e Liberdade, procura-se, tal como nos Jerónimos, impedir as gaivotas de nidificar.

Após quatro meses de trabalho da águia Belém - e de outras aves de rapina, como falcões, que também sobrevoam os Jerónimos - os resultados saltam à vista. "A diferença é notória. Não apenas porque já é possível ter este claustro num estado de conservação que é possível observar, mas por outro lado, elas diminuíram muito significativamente", nota Dalila Rodrigues. Antes, "seria impossível estarmos aqui sossegados. Já estávamos defecados de certeza, já tínhamos sido atacados por gaivotas...", observa o falcoeiro Rui Carvalho.

Conservação amiga do ambiente

As gaivotas continuam a sobrevoar o mosteiro e a poisar sobre o monumento, mas são em muito menor número. Além de que todo o rasto de lixo que transportam praticamente desapareceu. "São práticas de conservação ambiental. Nós evitamos a degradação do património através do afastamento de uma espécie de animal, mas sem provocar danos nessa espécie. Afastamo-las. Agora, esta prática tem de ser generalizada, por forma a induzirmos comportamentos com alguma eficácia futura", adianta Dalila Rodrigues.

E porque defende que as práticas conservativas deverão não ter impacto ambiental, também recorreu à aplicação de um biocida para atacar a colonização biológica nos Jerónimos. "Normalmente associamos os negros dos edifícios a poluição atmosférica, mas maioritariamente são fungos, algas e plantas", explica. Com esta técnica, utilizada pela primeira vez em Portugal, liberta-se a pedra destes micro-organismos e atrasa-se o seu reaparecimento, de forma pouco invasiva, sem recurso a intervenção mecânica.

O falcoeiro Rui Carvalho também não quer interferir no ambiente e garante que se limita a prevenir danos maiores. "Nós não vamos caçar as gaivotas, nada disso. Nós vamos é utilizar as nossas aves para as afastar", repete.