As ruas da Medina de Marraquexe, em Marrocos, são proverbialmente difíceis de decifrar. Mesmo com GPS, um turista acaba, facilmente, por desistir e pagar a um dos guias locais que ganham a vida como navegadores no labirinto. Mas no dia 10 de dezembro, enquanto centenas de líderes mundiais, como António Costa, se reuniam em Marraquexe, para assinar um "Pacto mundial para as migrações seguras, ordenadas e regulares", da Organização das Nações Unidas (ONU), era noutra topografia, ainda mais indecifrável, que uma campanha sem precedentes estava montada.
As redes sociais são as novas ruas, em certo sentido. É ali que passamos boa parte do nosso tempo, a conversar, a informarmo-nos, a conviver. O emaranhado dos algoritmos que gerem esses sites (Facebook, Twitter, YouTube, Instagram, entre outros) é um segredo comercial bem guardado. Mas há guias, como na medina. Neste caso do pacto da ONU havia pelo menos 533 destes solícitos "navegadores", poliglotas, no Twitter.
Esta foi a primeira vez que se detetou, numa campanha concreta, a presença de centenas de perfis nas redes sociais, quase todos sem localização geográfica assumida, a defender a mesma ideia, em várias línguas. Dez destes perfis, identificados pela empresa de dados Alto Analytics (paoloigna1, elianabenador, imabitcsumtimes, a_meluzzi, noitre32, giuseppenoc, lacerci65, emtee2355, o_franco_aleman, kittypunk7) têm mais de 400 mil seguidores. Nas ruas de Marraquexe, estes dez seriam poucos para organizar um protesto contra o pacto das migrações. No Twitter eram uma multidão, e produziram muito (quase dez mil mensagens).
Nos últimos três meses, o DN e o Investigate Europe entrevistaram mais de cem especialistas, cientistas, políticos e responsáveis pelas grandes plataformas tecnológicas e redes sociais para perceber como funciona a máquina de desinformação, quem a controla, quem a usa e como. Desde dezembro, a Alto Analytics, Big Data and Artificial Intelligencerealizou uma recolha de dados, em colaboração com a nossa investigação jornalística, que analisou mais de quatro mil milhões de elementos publicados online por mais de 20 milhões de europeus, nos maiores países da União Europeia: Espanha, França, Itália, Alemanha e Polónia.
De Lisboa a Varsóvia, de Roma a Oslo, há um pequeno grupo de militantes da direita radical, antimigrantes, que consegue tirar partido de uma realidade nova e sem qualquer tipo de regulação. Criam sites de fake news, que depois distribuem nas redes sociais de forma repetitiva. Organizam "comunidades" falsas nessas redes, com a ajuda de ferramentas tecnológicas, que depois alastram a mensagem, tornando-a dominante.
A maioria dos europeus desconhece estas novas formas de propaganda. E as regras do negócio das grandes plataformas oferecem condições ideais para que esta direita nacionalista seja ainda mais eficaz. Os governos nacionais e a Comissão Europeia, chocados com a enorme influência da desinformação nas eleições presidenciais dos EUA e no referendo do Brexit, prometeram agir. Agora parecem confiar apenas na promessa de autorregulação de empresas como a Google, o Facebook e o Twitter.
Há boas razões para que 73% dos europeus se mostrem "preocupados" com os efeitos da desinformação, como mostra o último Eurobarómetro. Mesmo os especialistas ficam perplexos com a dimensão do problema. /video/1" target="_blank">Um tweet da líder da extrema-direita francesa foi reproduzido pela Europa toda, com a ajuda desta rede de "influência".
Ao lado de Le Pen aparecem, claramente, nesta recolha de dados, duas personalidades italianas. Giorgia Meloni, a líder dos Fratelli d'Italia, um pequeno partido de extrema-direita que fez parte da coligação eleitoral dominada por Matteo Salvini, da Liga Norte. Meloni foi ministra da Juventude no último governo liderado por Silvio Berlusconi. O outro italiano desta rede europeia contra o pacto de Marraquexe é Alessandro Meluzzi, que se descreve como "psiquiatra, psicoterapeuta, criminólogo, primaz metropolitano da Igreja Ortodoxa italiana, doutor em Psiquiatria Forense e presidente honorário do PAI". Esta última sigla significa "partido anti-islamização".
Foi a partir destas três figuras que se desenvolveram as várias redes que inundaram as redes sociais de críticas ao pacto da ONU. Meloni e Le Pen lideram a lista das contas com mais respostas e partilhas. Em dois dias (18 e 19 de dezembro), Meluzzi escreveu 39 posts sobre o pacto. Num deles dizia: "Se for aprovado é o fim do povo italiano."
Este é apenas o primeiro passo de uma enorme campanha europeia de desinformação - mentiras postas a circular para influenciar o debate. Os dados recolhidos pela Alto Analytics mostram outro facto evidente, para quem, como nós, verificou mais de 500 perfis: há sites especializados em mascarar a desinformação com o aspeto de "notícias". Um dos mais utilizados por esta campanha de propaganda é The Voice of Europe, e a investigação mostra também como este grupo de utilizadores tende a partilhar conteúdos de sites criados recentemente: 16,67% dos principais domínios mais partilhados foram criados nos últimos 36 meses.
The Voice of Europe é um site criado na Holanda, que publica em inglês, e está registado em nome de Annemiek Ploumen - que é uma misteriosa figura, que ninguém conseguiu identificar. De acordo com a revista holandesa De Groene Amsterdammer (que colabora com o DN nesta investigação), o site é financiado por um empresário, Erik de Vlieger, e conta com um perito em tecnologia, Daan van Seventer. Mas isto é tudo o que se conseguiu saber, até agora. No Twitter, este site descreve-se como uma espécie de Breitbart europeu: "Um canal de notícias conservador que partilha notícias de última hora, artigos sem censura e vídeos imperdíveis."
A mesma rede que partilha o que diz Le Pen usa o The Voice of Europe como "noticiário". Da mesma forma, em várias línguas, tentando chegar a vários países.
Os perfis da "rede" antimigrantes (sejam de militantes nacionalistas ou de contas falsas criadas para difundir a propaganda) geram um debate que, até então, era inexistente. E criam problemas políticos concretos. No Twitter, a extrema-direita ficou com os louros e o The Voice of Europe declarou "vitória", após a polémica que se instalou em muitos governos da UE.
Em Portugal, o efeito desta campanha foi reduzido. O DN colaborou com um grupo de investigadores do CIES-IUL, coordenado por Gustavo Cardoso, que está a desenvolver o projeto "monitorização de propaganda e desinformação nas redes sociais". Os resultados desse trabalho, exclusivamente sobre Portugal, serão publicados nas próximas semanas. Mas José Moreno, que com Miguel Crespo, Ana Pinto Martinho e Rita Sepúlveda trabalha nesta investigação, encontrou o efeito da campanha europeia sobre o pacto de Marraquexe nas redes sociais portuguesas. O volume total de tweets, retweets e respostas foi de 198, desde novembro. No Facebook, o volume total de publicações e comentários no período foi ainda menor: 78.
Por muito que o líder do PNR prometa represálias aos "traidores" que assinaram o pacto, e a atriz Maria Vieira partilhe os links do The Voice of Europe, esta campanha falhou em Portugal. "Os portugueses há muito que andam pelo mundo. É por isso que somos bons em estabelecer laços com diferentes culturas, diferentes tradições e diferentes religiões", garantiu o primeiro-ministro António Costa, em Marraquexe, quando assinava o pacto da ONU. "A nossa visão da migração também tem que ver com a existência de uma diáspora portuguesa há muito estabelecida e bem integrada em todos os continentes, totalizando mais de cinco milhões de pessoas."
Por muito que a campanha de propaganda tenha sido menor em Portugal, o resto da Europa sentiu os seus efeitos de uma forma dura. É possível que isto tenha desempenhado um papel no resultado final do acordo. Apenas 164 Estados assinaram o texto, em vez dos 192 que tinham inicialmente acordado fazê-lo. Cinco países votaram contra: República Checa, Hungria, Israel, Polónia e EUA. Entre as 12 abstenções contavam-se cinco Estados membros da UE: Áustria, Bulgária, Itália, Letónia e Roménia. Não estiveram presentes para participar na votação 24 Estados, incluindo a Eslováquia e a Suíça.
Tudo pode ter começado há mais de um ano, em dezembro de 2017, quando o presidente americano, Donald Trump, decidiu que os EUA não iriam assinar o pacto da ONU, que estava a ser negociado. O anúncio foi feito da maneira habitual, num comício, em Pensacola, na Florida: "É por isso que recentemente retirei os Estados Unidos do plano das Nações Unidas para a governação global da política de imigração e de refugiados. Sem fronteiras. Eles têm um plano, sem fronteiras. Ouvi falar disso recentemente. Eu disse, do que é que estão a falar? Sem fronteiras? Sem fronteiras. Sem fronteiras. Todos podem entrar. Se não se importam, eu rejeitei esse plano. Está bem?"
Em julho de 2018, a Hungria também abandonou as negociações. Entretanto, de acordo com um relatório do ISD, Instituto para o Diálogo Estratégico, forças anti-islâmicas, da direita radical e neonazis na Alemanha bombardearam as redes sociais com artigos sobre o pacto: "Enquanto o acordo mal foi discutido na comunicação social até meados de setembro, os influenciadores populistas de extrema-direita descobriram o assunto e começaram a espalhar interpretações distorcidas em grande escala e desinformação sobre o pacto de migração da ONU."
Entrevistámos o coordenador do ISD, Jakob Guhl, que nos explica como o campanha online teve importância: "Sim, houve pessoas que se esforçaram por transmitir a mensagem de forma organizada. Influenciadores como Martin Sellner [líder do movimento 'identitário' austríaco] publicaram grandes quantidades de vídeos no YouTube de setembro até ao início de dezembro, petições e canais dedicados foram criados. Mas sem que outros utilizadores partilhassem esse conteúdo organicamente, esses esforços não teriam levado a lugar algum."
A uma petição na Áustria seguiu-se uma reportagem da RT, o canal de televisão russo que disponibiliza edições em inglês, francês e espanhol, de seguida nasceu uma campanha no Twitter (Stop UN Control), uma nova petição na Noruega e uma manifestação na Dinamarca.
Um argumento geral era que o pacto abriria caminho para a imigração em massa da África e do Médio Oriente. A desinformação corria: estava a ser preparada uma "substituição em massa" dos europeus por refugiados. Marine Le Pen deu o mote: "Um país que assine o pacto assina obviamente um pacto com o diabo."
Este seria, segundo as interpretações políticas destas fake news, o "fim formal da soberania nacional" e o início de um "super-Estado da ONU". "Centenas de milhões" de refugiados viriam para a Europa. Marcel de Graaff, eurodeputado holandês, acrescentou: "As críticas à migração tornar-se-ão uma ofensa criminal (...). Os meios de comunicação social que dão espaço às críticas à migração podem ser encerrados."
Muita desta desinformação baseia-se num facto real. Um estudo de 2010 da Rambøll/Eurasylum para a Comissão Europeia sobre a viabilidade da recolocação de refugiados nos Estados membros tinha um quadro (tabela 12 do anexo C) com números gigantescos sobre possíveis quotas de refugiados. Segundos os cálculos sobre a capacidade de acolher população para cada país, a França poderia acolher 486 milhões de pessoas, a Suécia 440 milhões, a Alemanha e a Polónia 274 milhões, a Itália 242 milhões, o Reino Unido 184 milhões, a Grécia 120 milhões, Portugal 81 milhões, os Países Baixos 25 milhões, e assim por diante. No total, a UE27 teria uma capacidade populacional de mais de 3,8 mil milhões de pessoas.
É escusado dizer que este estudo nunca foi mais do que isso. Mas os organizadores da campanha de desinformação transformaram-no num plano. Solon Arditis, do Eurasylum, coautor do estudo, explicou-nos, numa entrevista, que o relatório não tem nenhuma relação com a política de migrações negociada na ONU. Foi apenas, explica, "um exercício científico", além do mais "puramente retórico", que não tinha "obviamente aplicabilidade prática ou política": "Claramente, o estudo para a Comissão Europeia de 2010 não tem nada que ver com isso, e não contribuiu para o Pacto das Migrações das Nações Unidas, seja de que forma for. A ligação entre os dois é, mais uma vez, apenas um reflexo da forma como os meios de comunicação social e os grupos mal-intencionados são hoje capazes de distorcer a realidade para apoiar a sua agenda."
"Se soubéssemos como estes números seriam tratados nove anos mais tarde, tenho a certeza de que não os teríamos lançado", desabafa Arditis. A batalha psicológica começou, de facto, oito anos depois do estudo de Arditis - na primavera de 2018, no gabinete do deputado alemão da AfD Martin Hebner. Um dos seus assessores encontrou um documento sobre o pacto de migração da ONU numa base de dados do Bundestag.
Em abril, o funcionário da AfD escreveu um texto no Jungem Freiheit, o principal órgão da nova direita, que garantia que o acordo era um "sinal de uma migração sem precedentes de povos". A pergunta era retórica: "Quem autorizou o nosso governo a fazer isto? Quando foi o tema debatido no Bundestag e relatado em público?" Duas semanas mais tarde Hebner repetiu a fórmula - "um sinal para uma migração de povos nunca antes vista" - no Bundestag e reivindicou: "Trata-se de uma reinstalação planeada, com a qual a Alemanha se comprometeu." Nas semanas seguintes, Hebner contactou outros nacionalistas na Europa para divulgar este ponto de vista.
Depois surgiu a petição do austríaco de extrema-direita Martin Sellner. A 24 de setembro, a Wochenblick, uma revista austríaca ligada ao partido de direita nacionalista FPÖ, escreveu sobre ela. Um dia antes, o presidente do partido, Strache, afirma na sua página no Facebook que não pode apoiar este pacto porque ele irá ameaçar a soberania da Áustria. O chanceler Kurz começou por apoiar o pacto, mas a 10 de outubro admitiu que a Áustria poderia seguir os EUA e a Hungria na retirada. A 31 de outubro, a Áustria retira-se oficialmente.
A 16 de outubro, Thierry Baudet, líder do partido de direita nacionalista holandesa Forum voor Democratie, solicita um debate parlamentar sobre o pacto. A maioria do Parlamento rejeita. O Forum voor Democratie começa a publicar vários vídeos que sugerem que este tema é ignorado pelos políticos da coligação que, além disso, nem sequer sabem o que o pacto implica. Nos meses seguintes, Baudet é convidado a debater as suas ideias sobre o conteúdo do pacto nos principais programas de comunicação social. Realiza-se um debate parlamentar a 4 de dezembro. Os partidos da coligação VVD e CDA afirmam agora que também estão ligeiramente descontentes com o pacto, mas decidem assinar.
A 18 de dezembro, o governo belga demite-se, após a saída do maior parceiro da coligação, o partido nacionalista flamengo N-VA que acusou o primeiro-ministro de participar sem o seu consentimento na conferência da ONU em Marraquexe para assinar o pacto.
O primeiro-ministro dinamarquês, Lars Løkke Rasmussen, teve de se deslocar a Marraquexe para assinar o pacto, uma vez que os dois ministros que tinham efetivamente negociado o acordo recusaram-se a fazê-lo. O Ministério das Relações Exteriores - numa pesquisa interna - encontrou pelo menos 16 suspeitos de bots no Facebook que partilharam material crítico.
Em dezembro, o pacto é um dos temas principais na agenda do setor de extrema-direita dos coletes amarelos em França. Vários estudos recentes, da ONG Avaaz e do jornal Le Monde, mostram como o assunto foi fulcral na disseminação de fake news.
Um dos principais meios de distribuição das mentiras foi a popular rede de vídeos YouTube. Esta subsidiária da Google funciona com um algoritmo que privilegia clips com títulos particularmente provocantes ou sensacionalistas. Se alguém procura um vídeo musical, inofensivo, pode receber nas sugestões da barra lateral direita outro tipo de conteúdos, extremos. Isso foi denunciado pela socióloga norte-americana Zeynep Tufekci, que chama ao YouTube "o grande radicalizador".
A máquina de desinformação produz dúvida em massa. Esse é o efeito. "Em 2018 aprendi que as fake news são muito mais perigosas, resistentes e toleradas do que eu imaginava. E que as eleições só aguçam seu efeito perverso." É assim que Felipe Nunes, professor de Ciência Política da Universidade de Minas Gerais, no Brasil, descreve a sua experiência ao estudar o efeito da desinformação antes e depois das últimas presidenciais ganhas por Jair Bolsonaro.
"Mais pessimista do que identificar o alto percentual de gente acreditando em notícias falsas, foi constatar que não há muito o que se fazer para combater esse mal", explica Nunes. "O eleitor, prestes a tomar uma decisão eleitoral em um contexto de tamanha polarização, ficou ainda mais cético. Parece que as pessoas perderam, naquele momento, a capacidade de distinguir entre quem está certo e quem está errado. Passaram a achar certo aquilo que elas gostariam que fosse certo."
Se a experiência de Felipe Nunes, no Brasil, mostra que pouco se pode fazer depois de as fake news chegarem às pessoas - e tornarem-se parte das suas convicções -, o caminho para as combater poderia ser o inverso. Impedir que o debate público fosse dominado por desinformação, criando regras sobre sites anónimos e perfis falsos nas redes sociais. Mas esse é, também, um caminho arriscado.
"No período que antecede as eleições para o Parlamento Europeu, é provável que aumentem as campanhas de desinformação específicas", alertou a Comissão num plano de ação recente. "Por conseguinte, é urgente uma ação imediata para proteger a União e os seus cidadãos da desinformação", solicitaram os comissários.
Mas com que instrumentos? Quem deve decidir o que é mentira e qual é a verdade? E quem poderia impor proibições deste tipo, sem exercer censura? Até agora, as instituições democráticas ainda não foram capazes de encontrar uma resposta.
Num primeiro momento, em março de 2015, com o documento "Euco 11/15", a UE parecia empenhada em atribuir toda a culpa à Rússia: "O Conselho Europeu sublinha a necessidade de contrariar as atuais campanhas de desinformação da Rússia. Dentro de poucos meses, é criada uma nova unidade, a East StratCom, no Serviço Europeu para a Ação Externa." No entanto, esta equipa tem apenas seis pessoas e nenhuma delas é analista de dados.
Os Estados membros limitam fortemente a área em que os funcionários estão autorizados a agir. Só podem criticar os meios de comunicação social controlados a partir do exterior da UE. "Temos um problema de legitimidade", admite um dos funcionários. Isto significa que campanhas perigosas como as do Pacto das Nações Unidas não são analisadas. "Tudo o que podemos fazer é tentar dar ímpeto aos governos nacionais. Os Estados membros devem levar a sério a desinformação. Porque este problema não será resolvido em Bruxelas", explica outra fonte da UE.
É por isso que os representantes dos Estados membros devem agora tomar medidas conjuntas contra a desinformação. Cada governo deve introduzir as suas observações num sistema de alerta rápido, para avisar todos os outros, em caso de crise. Em meados de março, quase dois meses antes das eleições europeias, o sistema de alerta foi inaugurado numa sala de conferências em Bruxelas.
Tal como os funcionários da UE da East StratCom, esta rede só está autorizada a comunicar casos provenientes de fontes não comunitárias. A UE teme provocar conflitos internos com países como a Hungria, explica um funcionário alemão. Porque, em Budapeste, o próprio primeiro-ministro Viktor Orbán usa fake news com frequência, como a de que a Comissão Europeia quer "promover a imigração ilegal". Por isso, os representantes de outros Estados membros da UE receiam que o responsável húngaro da rede possa utilizar indevidamente o sistema de alerta para denunciar alegadas campanhas de desinformação dos seus parceiros.
Os comissários e os ministros de cada país da UE estão a apostar numa saída aparentemente mais fácil: as empresas digitais Google/Youtube, Facebook e Twitter devem resolver a situação. Afinal, ganham dinheiro com a guerra de propaganda nas suas plataformas. Quanto mais pessoas passam o tempo a ver vídeos, ou a escrever sobre o pacto da ONU, mais anúncios as plataformas digitais podem vender. Mas, durante muito tempo, as empresas recusaram qualquer responsabilidade pelo conteúdo distribuído. "Somos uma empresa de tecnologia, não uma empresa de media", é a frase-chave de Mark Zuckerberg. "Apenas construímos as ferramentas, não produzimos o conteúdo."
A Comissão já não aceita essa anunciada neutralidade. Por isso, em setembro de 2018, instou as empresas a assinar um código de conduta voluntário. Nele, os operadores comprometem-se a nomear os clientes da sua publicidade e a tomar medidas contra contas ou identidades falsas. Todas aceitaram permitir que os cientistas investiguem a desinformação nas suas plataformas. Além disso, os gestores de Facebook, Google e Twitter prometeram apresentar relatórios mensais aos comissários europeus. "É a primeira vez no mundo que as empresas concordam voluntariamente com medidas de autorregulação para combater a desinformação", anunciou, euforicamente, a Comissão.
Meio ano depois, nada resta dessa alegria. Julian King, o comissário britânico para a Segurança, tem no seu gabinete em Bruxelas duas almofadas com bandeiras da UE no seu sofá. E outras duas com a Union Jack. No meio do caos do Brexit, não sabe por quanto tempo vai continuar a trabalhar na UE. Preocupado, adverte: "Temos um problema quando se trata de publicidade política. As plataformas prometeram fazer alguma coisa, mas até agora nada aconteceu e não sabemos quanto tempo levará para que os sistemas funcionem em toda a Europa." O mesmo se passa quanto ao controlo das contas falsas ou o livre acesso aos dados para os cientistas, continua King. Não existem sanções contra infratores. "Estamos a pressionar as plataformas e esperamos que atuem."
Durante décadas, os jornalistas foram os "cães de guarda". Eram os media que criavam a moldura do debate público. Hoje, qualquer pessoa que tenha um smartphone ou um computador pode assumir estas tarefas, e o Facebook, a Google/YouTube ou o Twitter tornam possível a distribuição em massa. Mais de metade dos europeus recebem notícias principalmente destas plataformas. E são os seus algoritmos que decidem o que é mostrado primeiro, seguindo uma lógica comercial, apurada pela nova forma de distribuir publicidade direcionada.
Mas será que estas plataformas também devem decidir o que é verdade e o que não é? Se isso acontecesse, a censura seria privatizada. Os primeiros casos já existem. No início de março, por exemplo, a Google restringiu as contas de vários utilizadores radicais de direita - incluindo Martin Sellner, que iniciou a campanha contra o pacto de migração. Desde então, Sellner deixou de poder mostrar anúncios antes dos seus vídeos e, portanto, não consegue ganhar dinheiro. O mesmo se aplica ao organismo de radiodifusão estatal russo RT. "O Facebook e a Google estão a eliminar de acordo com as suas próprias regras, porque se veem a si próprios como empresas privadas e querem impor uma espécie de direito à casa digital", adverte Christian Mihr, diretor-geral dos Repórteres sem Fronteiras. "Mas as suas plataformas tornaram-se parte do público moderno, por isso as pessoas têm de poder dizer ali tudo o que não viole a lei."
Tessa Lyons-Laing é a responsável do Facebook pelo combate à desinformação. Dá-nos uma entrevista, por videoconferência, a partir da sede da empresa em Menlo Park, Califórnia. E é muito clara a esclarecer o papel da principal rede social (com mais de dois mil milhões de utilizadores) na escolha do que é, ou não, publicável: "Não queremos ser, e não pensamos que uma empresa privada deva ser, quem determina que conteúdo é bom ou mau, que fontes de notícias são boas ou más para o mundo."
Tentamos ouvir o que tem a dizer o outro gigante do setor. No centro de Londres, os escritórios da Google são tudo menos discretos - toda a fachada está pintada com as cores do logótipo da empresa. Jon Steinberg é o responsável que nos recebe. Já foi assessor de John Kerry, quando este se candidatou à presidência dos EUA. Há sete anos ocupa um dos mais trabalhosos cargos de gestão da Google: é o gestor de políticas públicas. Trabalha no nono andar.
Como o Facebook, a Google ganha muito dinheiro com publicidade, incluindo os pequenos spots que aparecem antes de muitos vídeos do YouTube. No entanto, estes anúncios são uma porta de entrada para a desinformação e a influência, como foi demonstrado, em especial, pela campanha do Brexit, durante a qual os opositores da UE gastaram a maior parte do seu orçamento em anúncios obscuros, que só foram mostrados a utilizadores que tinham sido anteriormente considerados influenciáveis, com base no seu comportamento na rede.
No seu código de conduta com a UE, a Google comprometeu-se a mudar as regras para a publicidade política. No entanto, isto só se aplica a spots e anúncios publicitários de candidatos ou partidos. A desinformação não é abrangida. "Estamos a trabalhar seriamente nos bastidores numa solução para tornar a publicidade mais transparente para os utilizadores", explica Steinberg. O Facebook também prometeu recentemente "rotular todos os anúncios políticos para que se saiba quem pagou por eles".
Mesmo que isso funcione, muito permanece por resolver. A Google recusa-se a permitir que investigadores ou autoridades verifiquem os algoritmos que são suspeitos de mostrar aos utilizadores vídeos extremistas. Jon Steinberg dá uma explicação: "Temos de encontrar um equilíbrio entre criar transparência e impedir que os maus atores abusem do nosso sistema."
O governo francês aprovou uma lei em dezembro que visa impedir a difusão de "notícias implausíveis" nos três meses que antecedem uma eleição. Mas a forma como isto vai ser posto em prática ainda não é clara, apesar de faltarem seis semanas para as eleições europeias.
Há uma enorme incerteza no ar. Qual é o efeito da desinformação sobre as escolhas políticas dos cidadãos? "Sabemos tão pouco sobre isso", adverte a cientista política americana Rebekah Tromble. "Não sabemos quantas pessoas realmente entram em contacto com informações falsas, e muito menos podemos dizer qual é o impacto político", acrescenta. "Não sabemos quantas pessoas são mobilizadas pela desinformação e quantas, portanto, mudam de opinião."
O que é claro, porém, é que o problema da desinformação existe. E que a Europa é a mais ativa frente, nesta guerra psicológica, em que a propaganda pretende - como sempre - moldar as convicções da maioria dos cidadãos.
Encontrámos Andrzej no final de fevereiro, no centro de Łódź, na Polónia - no seu computador, Andrzej mostra o Tom. Andrzej, de 40 anos, é o proprietário de uma empresa de marketing (aceitamos não revelar os nomes reais, nem do nosso entrevistado nem o da empresa). Tom é uma máquina que dá grandes lucros: recolhe dados da rede, organiza, analisa. Segue comentadores na internet e nas redes sociais. Graças a Tom, a empresa de Andrzej pode verificar todas as menções que lhe interessam, sobre qualquer tópico, e captar informações muito úteis, como saber quem são os perfis mais ativos. No mercado publicitário, esse conhecimento custa dinheiro. Andrzej elogia Tom: "Durante anos não sabíamos qual era a tendência na internet. Agora sabemos tudo - quando alguém faz comentários, que emoções transmite. Sabemos quem e o que é mais importante no debate na Polónia, em tempo real."
Tom não é a única ferramenta informática da empresa de Andrzej: "Para recolher informações sobre os perfis do Facebook, temos de criar contas falsas. Temos mulheres, homens, jovens, velhos, de todo o mundo. Assim podemos saber o que o Facebook lhes mostra. Trabalhamos para empresas que querem encontrar os seus clientes rapidamente. Estamos a criar perfis de utilizadores da internet. A ideia é localizar um homem que publica comentários - e mostrar-lhe um anúncio específico e preciso. Mas, por agora, é apenas um sonho."
Enquanto estamos a falar, Tom está a filtrar os comentários. Atribui-lhes categorias de sentimentos (distingue entre sarcasmo e ironia). Organiza as entradas em vários grupos - uns são "negativos", ooutros "médio-negativos" e outros "muito maus".
A empresa vive mais do marketing para empresas, mas já trabalhou em campanhas políticas. "Fizemos assim: criámos vinte páginas de fãs no Facebook e dinamizámos o movimento com campanhas pagas", diz Andrzej. "Os nossos temas eram, por exemplo, o facto de a gasolina ser muito cara ou de os salários de uma parte da população serem baixos. Um dia depois, desistimos de 15 dessas páginas porque não funcionavam. As pessoas reais não interagiam com elas. Ficámos com apenas cinco, e foi aí que fizemos o resto da campanha. Isto é o que a verdadeira propaganda online precisa - não se trata de quantidade, mas de fazer o que tem efeito. Encontrar linhas narrativas que interessam às pessoas. Quando as pessoas começam a interagir com elas, somos bem-sucedidos."
A diferença em relação ao passado é bastante clara. Quem quer manipular tem, agora, uma máquina eficaz para o fazer.
*Com Elisa Simantke, Harald Schumann, Ingeborg Eliassen, Juliet Ferguson, Leila Miñano, Nico Schmidt, Nikolas Leontopoulos, Maria Maggiore, Wojciech Ciesla e Investico (Daphné Dupont-Nivet)
Investigate Europe é um projeto iniciado em setembro de 2016 que junta jornalistas de oito países europeus.
Este trabalho foi financiado em Portugal pela Fundação Calouste Gulbenkian. Investigate Europe tem o apoio das fundações Cariplo, Milão, Stiftung Hübner und Kennedy, Kassel, Fritt Ord, Oslo, Rudolf Augstein-Stiftung, Hamburgo, GLS, Alemanha e Open Society Initiative for Europe, Barcelona.