Os sons do rio, a buzina do cacilheiro e o resfolegar submerso do motor do barco - mesmo de olhos fechados damo-nos conta de estar em Lisboa. E, depois dos olhos abertos, a sensação continuará por nove episódios, deixando-nos levar pelo tema principal dos Dead Combo. Com tambores de Lisboa mulata e guitarra elétrica fadista, vamos pousando nos pilaretes de pedra velha, frontarias com janelas debruadas em pedra de lioz, candeeiros de nau e corvos pendurados em casas antigas, escadinhas empedradas...
E, ainda, o que mais interessa, gente, gente lisboeta, mesmo, como tão pouco vemos contado nos nossos romances, filmes ou jornais. Uma série chamada Sul, como se o apelo fosse partir, quando a história, o som dela e as formas, e sobretudo as pessoas, nos agarram para ficar.
Que prazer se vão tornando os sábados à noite da RTP1, nove episódios desde a semana passada e por mais dois meses... A inspiração deu-a Lisboa, sempre tão oferecida e quase nunca aproveitada. E a forma de a narrar veio de um género antigo e sempre renovado, a série policial, que apesar de tão rara entre nós se torna agora alfacinha de gema. Um PJ (inspetor Humberto, interpretado por Adriano Luz), cínico como todos os detetives desde Sam Spade, Raymond Chandler e Pepe Carvalho, mas triste e funcionário público desiludido como um português. E deixem-me logo saltar para a Mafalda (Margarida Vila-Nova), tão dali, de Xabregas, desempregada em quintais com periquitos e banhos de alguidar, mas rebelde que estrebucha contra o destino de peixinho em aquário iluminado.
O claro-escuro que ilumina e ensombra toda a série tem um termo culto em italiano para denominar momentos de grande arte. Mas deixem-me pôr assim, em português, claro-escuro, pois falo da luz ofuscante desta cidade e da noite dela - toda a Lisboa. A série (enfim, o filme de 400 minutos, 45mX9 noites) é uma sucessão desse contraste, até na composição dos casais.
Mafalda tem um homem, Matilha (Afonso Pimentel), que é a expressão da vida em pirotecnia. Na sua profissão de gatuno, ele sobe por muros e telhados, pasma-nos como um foguete no fim de ano rasga o céu do Terreiro do Paço e acaba como a cana mergulha esquecida no Tejo. Mas, ouvindo-o, o Matilha está sempre na maior. Ele é a ilusão em moto contínuo, a pobreza de sempre afogada pelo Euromilhões de amanhã. Entretanto, Matilha constrói poderosas frases, às vezes até quando fala sozinho.
Então quando tem uma plateia de mânfios, o tangas produz fraseados em fogo-de-artifício! Olhem para ele a contar aos colegas como manda lá em casa: "Não é só o respeito pelo medo, o respeito do medo é muito fácil de manter..." Matilha é ciente do #MeToo e, portanto, doma a sua dama como um prudente homem moderno. Segundo ele, Mafalda foi conquistada com ela a compreender o verdadeiro amor: "Amor é tipo... é olhares para a pessoa [para ele, diz o seu fascinante jogo de ator] e dizer, "sim senhor, tenho a aprender com este gajo", tás a ver?" Os colegas seguem-lhe o discurso com uma atenção que o olhar bovino desmente. A quadrilha mal-amanhada ia a caminho de um assalto mas, entretanto, sei lá, talvez se fossem tornando melhores cidadãos.
Já agora, Matilha safa-se daquele assalto com inesperados petardos chineses. Porque me lembrei há pouco de comparar uma dos personagens com fogo-de-artifício? Lá está, uma série é também um pouco deixar o mundo recriado conduzir o seu inelutável destino, e um artigo de jornal sobre uma série tem de se deixar ir por ela.
No Sul há três argumentistas, Edgar Medina (também produtor), Guilherme Mendonça e Rui Cardoso Martins (esse, o jornalista que durante anos contou os mais comoventes cidadãos, aqueles a quem a vida atirou para o Tribunal de Polícia). Tentar saber quem desencantou esta ou aquela pérola pode ser um dos muitos prazeres destes bons filmes de 400 minutos que duram dois meses. 300 mil anos de Homo sapiens mudou-nos os hábitos, a moda que a Netflix incita há de nos dar outras formas de ver filmes que não só a de há um século e picos.
Num momento do Sul, ouve-se Beatriz Batarda, que faz de jornalista de televisão, a dizer num bar: "Está a dar-me a mão, senhor inspetor?" A cena começara com ela a decidir sobre o que beber no primeiro encontro com o inspetor Humberto: "Traga uma garrafa de branco, seco, bem fresco", disse ao barman.
Como não recordar a cena do balcão em O Pai Tirano, há 80 anos, nos píncaros de bons diálogos no cinema português? Então, num casal de maduros, entre hipóteses de pastéis de camarão ou rissóis, ela decidia-se invariavelmente por "dois copinhos de vinho branco" e ele concordava sempre: "Vamos nessa!"... É bom assistir a piscares de olho a bons passados. Sobretudo quando acompanhados de um esforço para que não seja só plágio: o que no filme de 1941 era uma candura programada, à Estado Novo, nesta série passou a uma formidável cena sensual.
O realizador de cinema Ivo M. Ferreira adapta-se às séries com este Sul. Ele sugeriu no artigo de Joana Amaral Cardoso sobre a série, no Público , que a sua praia continua a ser o cinema (o de duas horas e sala pública). Rezemos ao santinho protetor dos adeptos de séries televisivas que não deixe Ivo M. Ferreira voltar a essa exclusividade. Digo-o porque vi o nosso Matilha, motorista no já citado assalto, que ele ainda nem sabia que o era, mas desconfiava o suficiente para suspirar de alívio quando lhe disseram para ficar no carro. "Fico cá, né? Fico aqui, é melhor, fico aqui...", diz, já sozinho, com ar de quem se resigna em ficar com o papel mais perigoso...
Sentadinho atrás do volante, num carro que é roubado mas ele quer crer que não, Matilha julga, na verdade, ter algum descanso. Ora isso podia ser só por três bons argumentistas o terem prantado no guião. Mas quando a câmara foca, de costas, os dois maus da fita a caminhar para o assalto, mostra-os a retirar grossas pistolas dos bolsos traseiros.
A câmara regressa então ao Matilha, enquadrado pela janela do carro, e mostra-nos que ele vê o que acabámos de ver. Os movimentos do ator são mínimos e o zoom para a sua cara é lento... Mas com isso o realizador levou-nos a um estado agudo de carência pelo que iria seguir-se. Como vos dizia, Sul é todo bom.
E tem, além dos já citados atores, Ivo Canelas, José Raposo, Miguel Guilherme, a voz que já considerávamos perdida de Paula Guedes, e Nuno Lopes e Maria João Abreu e Leonor Silveira... Nesta primeira temporada, a série policial é consagrada a mulheres mortas que dão às margens do Tejo - correu que assim era, eu sei mas não digo.
Suspeito que outro jogo surgirá nas nossas casas, nas próximas semanas: será que os argumentistas vão ousar matar, ousando afastar do nosso convívio dos sábados de 2021, da próxima temporada a filmar em 2020, quem nos apaixonou em 2019? A angústia dos espectadores por temer o desaparecimento de um qualquer daqueles artistas, que iremos descobrir boas personagens, é um bónus extra do Sul.
Os primeiros dois episódios de Sul são transmitidos nas vésperas do fim do mandato governamental que substituiu aquele governo da troika que ensombrou o país e moldou a sociedade que é o pano de fundo da série. Como se a irrealidade de uma série televisiva quisesse ser pontuada pelo relógio da atualidade, enfim, colar-se ao país...
Colar-se à cidade, certamente que o conseguiu. Lisboa fica a dever a Sul personagens que nos fizeram descobrir lisboetas - e deram vontade para conhecer mais. Esse pode ser outro jogo incitado por esta série de ficção. Que tal documentários televisivos e jornais aproveitarem o desejo causado pela série e partirem à procura de Lisboa?