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01 MAI 2020
01 maio 2020 às 00h13

Tarrafal. O campo da morte lenta

Em 2021 o governo de Cabo Verde apresentará à UNESCO a candidatura da colónia penal do Tarrafal a Património da Humanidade. Para tal, contará com a cooperação de Portugal. O acordo entre os dois países é assinado hoje, 1 de maio, na data em que passam 46 anos sobre a libertação dos últimos presos políticos

Maria João Martins

Estava-se em pleno Mundial de Futebol de Estocolmo (1958) quando a morte inesperada de Cândido de Oliveira chocou o país. Antigo selecionador de futebol, treinador de alguns dos principais clubes, fazia para A Bola (jornal de que foi co-fundador) a reportagem do acontecimento. Mas não chegou a ver o Brasil sagrar-se campeão já que uma pneumonia o matou em poucos dias. Quem o conhecia dizia que nunca recuperara inteiramente a saúde desde que, em plena Segunda Guerra Mundial, a colaboração ativa com os serviços secretos ingleses o atirara para o Tarrafal. Aí permaneceu durante 18 meses, durante os quais testemunhou, por exemplo, a morte do líder comunista Bento Gonçalves, como escreve no livro Tarrafal, Pântano da Morte, que só seria publicado após o 25 de Abril (com uma nota prévia do advogado anti-fascista e, acrescente-se porque isso diz bem das afinidades entre ambos, primeiro diretor do jornal do Benfica, José Magalhães Godinho).

Nesse livro, que acabaria por ser póstumo, escreve: "Dentro do Campo não se vive! Aguarda-se a morte! É a morte lenta, mas certa. Apenas uma questão de tempo (...). Uma visita ao Campo confrange. Não se esquece mais. Perdurará na memória como visão horrível - da horrível existência de seres humanos expiando o crime político."

Cândido de Oliveira não exagerava o tom. A historiadora Irene Pimentel (autora de várias obras de referência de História Contemporânea, entre os quais História da PIDE, ed. Temas e Debates, 2007) considera que, na sua primeira fase, o regime vigente no Tarrafal roçava a brutalidade, favorecido por um clima internacional em que os fascismos estavam em alta: "Parecia-se muito com os campos, não de extermínio, mas de concentração e internamento existentes na Alemanha nazi, na França do regime de Vichy ou na Espanha de Franco. O objetivo não era matar os prisioneiros, mas deixá-los morrer." Dos ferimentos causados pelas torturas, das doenças várias causadas pelas condições de presídio no clima pouco ameno da ilha cabo-verdiana de Santiago, onde estava o Campo, da falta de cuidados. O médico, Esmeraldo Pais da Prata, de resto, não se dava ao trabalho de disfarçar intenções, avisando, em frase hoje inscrita nas paredes do antigo presídio: "Não estou aqui para curar, mas para assinar certidões de óbito."

Criado em 1936, por decreto lei de 23 de abril, o Campo começaria a funcionar em outubro do mesmo ano, recolhendo os presos da revolta de Marinha Grande, em 1934, e os marinheiros amotinados dos navios da Armada, "Dão", "Bartolomeu Dias" e "Afonso de Albuquerque" que tinham procurado juntar-se aos republicanos de Espanha. Entre esses primeiros prisioneiros, a mortalidade seria elevada: Cândido Alves Barja, 27 anos, e Francisco José Pereira, 28, ambos artilheiros do "Bartolomeu Dias" resistirão menos de um ano, morrendo em setembro de 1937. Mais tarde será a vez do marinheiro Jacinto Melo Faria Vilaça, 26 anos, e do grumete Henrique Fernandes, de 28. No Tarrafal, morreriam ao todo 32 prisioneiros políticos portugueses, dois angolanos e dois guineenses. Entre os primeiros, destacam-se as figuras do destacado líder anarco-sindicalista Mário Castelhano e do secretário-geral do PCP, Bento Gonçalves, ambos vitimados por doença mal definida a que então se dava o nome genérico de biliose, mas que ia desde o paludismo à disenteria.

Não admirava. Desembarcados do navio Luanda em outubro de 1936, os prisioneiros foram divididos em grupos de doze ou treze, por doze barracas de lona, onde viveram dois anos em condições cada vez mais degradantes. A casa de banho não era mais do que cinco buracos no chão com cinco latas dentro, a céu aberto. A água vinha do poço do Chão Bom, a 700 metros do campo, mas era salobra.

No final do seu mandato como diretor do campo, o capitão de artilharia, Manuel dos Reis, manda construir a tristemente famosa Frigideira, um cubículo de cimento sem janelas onde os reclusos eram mantidos em isolamento, a dormir sobre o cimento escaldante. "Sem rede mosquiteira", explica Cândido de Oliveira no seu livro, ir para ali significava ficar-se "condenado à contaminação pelo paludismo" e a um calor que "subia acima dos 50°". Gabriel Pedro, pai do antigo dirigente do PS, Edmundo Pedro passou ao todo 135 dias na Frigideira. Em dia de maior desespero cortou as veias dos pulsos, mas foi encontrado ainda com vida. O filho passaria lá 70 dias, despido, sem botas nem qualquer proteção quer contra os mosquitos, quer contra os rigores do sol.

Nesta fase, esclarece Irene Pimentel, a maior parte dos presos ia parar ao Tarrafal "sem julgamento ou o menor simulacro de justiça porque era assim que acontecia nas outras ditaduras europeias". Foi justamente o caso de Edmundo Pedro, que esteve oito anos no campo, para só ser julgado (e condenado) quando regressou a Portugal. De resto, acrescenta a historiadora, "não eram encarados como presos políticos, mas como inimigos do Estado legitimamente fundado pela Constituição de 1933. Gente que atentava contra a segurança do país e dos seus cidadãos." Se a lenda negra do Tarrafal grassasse na metrópole, "tanto melhor". Para Irene Pimentel "é muito evidente que a ditadura procurava intimidar e dissuadir eventuais subversivos através das histórias terríveis segredadas por quem dele voltava ou tinha lá familiares e conhecidos." E assim foi até 1954, data em que, ansioso por mudar alguma coisa para que tudo ficasse na mesma e sobretudo de agradar às democracias aliadas, o regime encerrou o campo.

Prisão de nacionalistas africanos

A escalada de acontecimentos que, em 1961, levaria ao início da Guerra Colonial justificou, aos olhos do regime, a reabertura do Tarrafal, mudando-lhe, no entanto, o nome para Campo de Trabalho do Chão Bom. Como recorda Irene Pimentel, "já não recebia anti-fascistas portugueses, mas membros dos movimentos nacionalistas africanos, fundamentalmente angolanos, guineenses e cabo-verdianos. Os moçambicanos, até pela distância, eram encaminhados para prisões locais como a tristemente famosa Machava, no Sul do país." Pelo Chão Bom passaram, entre muitos outros, Luandino Vieira, Mendes de Carvalho, António Cardoso, António Jacinto, Eduardo Chingunji ou Justino Pinto de Andrade. As condições de internamento e trabalho variavam de acordo com o temperamento dos diretores e com as crescentes pressões da comunidade internacional. Nesta fase, o campo receberia duas visitas da Cruz Vermelha, uma em 1969 e outra em 1971.

José Luandino Vieira, Prémio Camões em 2006 (que recusaria, aliás), passaria boa parte dos oito anos da sua prisão a escrever. Os apontamentos, diários, a correspondência e até os desenhos então produzidos foram, em 2015, reunidos num grosso volume Papéis da Prisão, editado pela Caminho. Para a investigadora-coordenadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Margarida Calafate Ribeiro (co-organizadora da edição, com Mónica Silva e Roberto Vecchi), a importância destes escritos ultrapassa em muito a dimensão lusófona: "O que me parece fantástico nestes Papéis do Luandino, entre muitas outras coisas, é mostrar um angolano com a dimensão escrita dos grandes lutadores pela liberdade do século XX, nomeadamente africanos. A comparação com Memórias de um Terrorista Albino, com Conversations with my self de Mandela, com There was a country de Chinua Achebe, mas também com Gramsci por exemplo faz todo o sentido."

A passagem pelo Tarrafal tornar-se-ia inevitavelmente um tema literário para os que o protagonizaram (como o angolano António Jacinto, que, em 1985, publicou o livro de poemas Sobreviver em Tarrafal de Santiago), mas também para a geração seguinte. São os casos do cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa (autor de O Diabo foi meu Padeiro, ed. Dom Quixote, 2019) e da portuguesa Ana Margarida Carvalho (Que Importa a Fúria do Mar, ed. Teorema, 2016).

Como jornalista, Ana Margarida interessara-se já pela "história dos primeiros presos, muitos deles operários da Marinha Grande e resistentes da Revolta dos Marinheiros, todos eles muito jovens, que foram inaugurar o campo, em 1936." Marcaram-na, antes de mais, as condições particulares que os esperavam em tão funesto destino: "Achei dramaticamente interessante a ideia de os presos ajudarem (forçadamente, é claro) a construir a própria prisão que os enclausurava e oprimia. Quando lá chegaram não havia infra-estruturas. Apenas grandes tendas de campanha, com lonas meio apodrecidas, que eles tinham de agarrar com as ventanias, como se fossem homens a lutar num barco, a segurar as velas, durante uma tempestade em mar alto".

Ainda hoje, quatro anos depois de publicado o romance, o que mais a arrepia "é a idade dos mortos e dos presos que por lá passaram. Gente tão jovem, e com a vida interrompida, estagnada, sujeita a trabalhos forçados, condenados a uma morte lenta, vítimas de subnutrição, malária, falta de água potável, de medicamentos, cuidados médicos elementares - para além de todas as humilhações, torturas medonhas e malfeitorias. O isolamento que se abatia sobre eles era esmagador, sufocante como o calor e os efeitos da malária que descreviam. Assim como a falta de notícias de casa, associado ao facto de não saberem quando aquelas penas (que poderiam ser perpétuas, para muito foram-no, até à morte) e aquele desterro acabaria." Como se resistia a tais extremos físicos e psicológicos? "Muitos conseguiram manter uma notável lucidez de espírito, muito equilíbrio mental, muita disciplina interior. E o enquadramento político e as próprias regras do Partido Comunista, e não só, a que se auto-impunham, de solidariedade e de entre-ajuda entre os presos, muito devem ter contribuído para isso."

Quase meio século volvido sobre a abertura das celas, Cabo Verde procura agora, com a ajuda de Portugal e da UNESCO, dar um sentido cívico a estas memórias. Para que não esqueçamos quão fácil é fechar os olhos e permitir a tirania...