Dinheiro
29 janeiro 2023 às 00h13

"Estamos a criar uma academia do futuro, para dar competências a todas as gerações" 

Desigualdades, inclusão e sustentabilidade estão no foco da Fundação Santander Portugal, que tem um orçamento de 22,5 milhões de euros, até 2024. A presidente, Inês Oom de Sousa, revela novos projetos e não esconde que está preocupada com a incerteza, a guerra e as taxas de juro, mas afiança que a banca está preparada para os desafios.

A Fundação Santander Portugal tem como propósito contribuir para reduzir desigualdades sociais e económicas. Numa conjuntura de pós-pandemia e de guerra, que não sabemos quando acabará, como é que a Fundação pretende reforçar o seu papel?
O propósito é transformar a vida das pessoas, das empresas e das entidades do terceiro setor. Aquilo que queremos é contribuir para reduzir as desigualdades, reduzir a pobreza, fazer com que as pessoas tenham melhores vidas, melhores empregos e melhores salários. A estratégia da Fundação passa pela educação, acreditamos que assim vamos conseguir contribuir para esta evolução de todas as pessoas e gerações. Através da educação e dos vários programas inovadores que vamos ter neste âmbito, acho que vamos conseguir fazer a diferença, pelo menos é o que pretendemos. Queremos fazer a diferença, mas também arranjar outros parceiros que queiram fazer a diferença e transformar a vida das pessoas. O que aconteceu recentemente, até com a pandemia e com a guerra, foi que a Fundação teve um papel muito importante. Durante a pandemia, o próprio Grupo Santander teve um papel bastante importante no apoio a alguns hospitais portugueses que precisavam de equipamentos e ajudámos nesse sentido. No que respeita à guerra e aos refugiados, fretámos um avião, fomos à Polónia buscar cerca de 180 refugiados ucranianos e distribuímo-los pelas suas famílias em Portugal. Isto para dizer que a fundação tem uma preparação muito grande e que o eixo estratégico é a educação, mas não pode ficar - nem nunca ficará -, alheia aquilo que se está a passar em termos de emergências. Acompanhámos todas estas famílias que chegaram e que tiveram bastante necessidade de vários tipos, desde computadores, bolsas para estudar português para que se pudessem integrar e, algumas, tiveram apoio psicológicos.

A guerra continua. Que iniciativas têm pensadas para 2023?
A incerteza vai continuar, infelizmente, não só pela guerra, mas também pela subida das taxas de juro para fazer face à inflação. No entanto, acho que a banca vai sempre ter um papel muito importante na economia e vai estar sempre muito preocupada em ajudar os vários intervenientes, as famílias e as empresas. Como já fizemos no passado, na altura da pandemia, estamos preocupados em arranjar soluções para os nossos clientes, quer particulares, quer empresas, para que consigam cumprir todos os seus compromissos com a banca. A Fundação terá sempre todo o papel de apoio social e vai continuar a acompanhar a estratégia do banco.

E que novas iniciativas vão marcar o ano de 2023 na Fundação?
Temos dois grandes eixos estratégicos. Primeiro, estamos a criar uma academia do futuro, onde queremos dar competências a todas as gerações para que tenham as skills necessárias para os seus empregos. Vamos ter várias bolsas, mas vamos focar-nos, sobretudo, em três. Vamos focar-nos em tudo o que tenha a ver com a literacia financeira, porque acho fundamental, sobretudo neste enquadramento, conseguirmos ajudar as famílias a reduzir as suas dívidas. Depois, também apostar na literacia relativa ao ambiente e ao campo social e também na literacia digital, isto é, como é que ajudamos os particulares, empresas e IPSS a terem uma transformação digital. Portanto, primeiro temos esta vertente da academia do futuro para dar todas as competências a todas as gerações. Depois, temos o segundo eixo estratégico que visa projetos inovadores para contribuir para a mobilidade socioeconómica dos jovens. Neste contexto, temos vários projetos, incluindo um bastante grande que foi lançado esta semana, em Coimbra [TUMO]. É um centro de formação em que damos a possibilidade aos jovens entre os 12 e os 17 anos de terem a oportunidade de conhecer outras temáticas que serão muito relevantes para o nosso futuro. Por exemplo, tudo o que tenha a ver com tecnologias e criatividade, os 1500 jovens vão para esta escola em Coimbra, de forma totalmente gratuita, terão a oportunidade de aprender programação, robótica, design gráfico, vão ter oito disciplinas que podem escolher, mas fazem o seu próprio currículo e horário. Uma das grandes vantagens deste projeto é que os jovens poderão trabalhar de forma colaborativa, podem descobrir as coisas por si próprios, não têm de esperar que sejam professores a dizer, é um método completamente inovador.

E junta vários parceiros?
Sim, junta vários parceiros. Vamos começar por Coimbra, mas a ideia é termos mais centros em Portugal. Um outro projeto que queremos bastante ajudar é o Global Teacher Prize, um prémio que vamos dar ao melhor professor de Portugal. Acho que os professores têm um grande papel na educação e no elevador social. Ainda há pouco, antes de começarmos a gravar, estávamos a falar do Johnson Semedo e sobre a academia e dizíamos exatamente isso: é preciso trabalhar com os alunos, os professores e os pais. Sem este ecossistema, não vamos conseguir acelerar no sentido destes jovens terem um rendimento médio ao nível da Europa. Este prémio é para valorizar os professores, motivá-los, para que consigam ter outras condições e ensinar com motivação.

Que leitura fez das recentes greves dos professores?
Não vou comentar, especificamente, as razões que eles têm, mas esta classe dos professores tem de ser bastante valorizada porque tem um papel fundamental na educação das crianças e no seu futuro. Já dei aulas numa escola num bairro social em Lisboa e lá dava aulas um professor de Braga. Falávamos sempre da questão da motivação, porque ele tinha uma filha em Braga com seis meses... Com que motivação podia ele estar ali, se só via a filha aos fins-de-semana? Esta questão de pôr os professores fora de casa, longe das suas famílias, é algo completamente violento.

Falou do elevador social, mas por vezes dá a sensação de que, em Portugal, ele está "avariado". O que está a falhar?
Temos de trabalhar muito com os professores e as escolas, temos de dar oportunidade a estes jovens de ter outras experiências, que é exatamente o que vamos fazer em Coimbra. Temos de lhes dar possibilidades para sonhar, abrir a cabeça e ambicionar ter uma vida diferente. O que se passa em Portugal, e vimos isso nos últimos estudos da OCDE, é que mais de metade das crianças que têm pais que só chegaram ao nono ano, também acabam por ficar só com o nono ano. Temos de romper completamente esta bola de neve que existe no nosso país. Tem aumentado muitíssimo o número de candidaturas ao ensino superior e as pessoas que acabam o secundário são sete a dez vezes mais do que eram em 1974, mas há um grande caminho pela frente. Há desigualdades muito grandes e temos de combater isto. E daí os nossos três grandes objetivos de focar na educação, combater as desigualdades e fazer parcerias. Muitas vezes, mais do que termos iniciativa, temos é de ajudar quem está no terreno a tentar mudar as coisas.

O facto de o salário médio em Portugal se estar a aproximar muito do salário mínimo pode ser um desincentivo para os alunos continuarem a estudar? Poderão ter a perceção de que, por muito que estudem, o elevador social tem dificuldade em funcionar?
Há um risco grande relativamente aos rendimentos em Portugal e o que observamos é que muitos jovens estão a ir para fora para terem melhores condições. Muitos vão para o estrangeiro até para fazer os seus cursos superiores. Mas temos de pensar nisso, porque temos cá universidades muito boas. A questão é um desequilíbrio muito grande entre oferta e procura em Portugal. O que estamos a formar não é exatamente o que o mercado procura e continuamos com um défice muito grande em várias profissões. Há um equilíbrio que tem de existir em termos da educação e do que o mercado precisa. Não vale a pena continuarmos a fazer o que fazíamos há dez ou quinze anos, porque o mercado e o mundo mudaram. Temos de nos adaptar a essas mudanças.

Precisamos de outro tipo de políticas públicas para a educação?
Temos de ter outras políticas públicas para a educação, claramente. E nas universidades também temos de ver como formamos, as próprias metodologias de ensino têm de evoluir. Recentemente, por exemplo, assinámos um pacto para termos mais emprego jovem, pacto assinado com mais de 50 empresas, precisamente para combater esta realidade que temos cerca de 30% das pessoas formadas a ficarem desempregadas.

Está a referir-se ao pacto pelo emprego jovem com a Fundação José Neves?
Exatamente. Há muitas pessoas desempregadas e muitas a trabalhar em funções que não são aquelas para as quais se formaram. Isto tem de ser debatido, temos de encontrar uma solução, não podemos simplesmente fingir que não está a acontecer. As empresas e universidades têm um papel fundamental em mudar este paradigma. E acho muito bem que os jovens saiam, mas queremos muito que voltem até para nos ensinarem o que se passa lá fora.

Mas as empresas têm manifestado dificuldades em encontrar e, sobretudo, em reter talento. Que conselho pode dar aos empresários?
Tudo o que as empresas estão a fazer no que diz respeito à sustentabilidade, em ter um propósito e em apostar em que as pessoas sintam orgulho em pertencer a esse propósito, pode fazer toda a diferença. Os jovens querem saber o que as entidades estão a fazer no que respeita à sustentabilidade e ambiente, em relação à diversidade e igualdade, em relação à ética e muitos outros temas. Cada vez mais os jovens são sensíveis a estes temas de ESG [em português, ambiente, social e governança empresarial]. As pessoas têm de sentir orgulho e identificar-se com o propósito da entidade em que trabalham. Isso é meio caminho andado para a retenção de talento.

O facto do país estar a viver instabilidade política, com casos e casinhos no governo, pode dar novo alento à disciplina da ética?
A ética é fundamental e se a ligarmos à retenção, os jovens cada vez ligam mais a estas questões. Não basta parecer, é preciso ser, é preciso querer e é preciso fazer. Penso que a grande parte das empresas estão mesmo a trabalhar nestas áreas e não só pela questão legal, mas porque estão empenhadas em fazer a diferença. Uma empresa que não tenha um propósito forte, dificilmente retém talento.

Considera que as empresas deveriam aplicar um questionário de ética e transparência aos colaboradores, tal como vai ser feito aos futuros governantes?
Há muitas empresas que fazem esses questionários. Pode ser um caminho, há muitas coisas que devem ser feitas e parece-me que as empresas têm um papel importante em conseguir mudar um pouco esta realidade em Portugal. E os jovens estão cada vez mais sensíveis e também vão empurrar bastante para que as coisas sejam diferentes e acelerem.

A pobreza tem vindo a aumentar em Portugal. Para a colmatar que medidas a Fundação quer pôr em marcha?
Para reduzir a pobreza voltamos à questão da educação. Há números que evidenciam o aumento da pobreza e de pessoas no limiar da pobreza, mas para a reduzirmos temos de começar pela educação. E não é nas camadas mais velhas, mas também nas mais jovens, é o tal segundo eixo estratégico em que a Fundação Santander Portugal se quer focar: como é que conseguimos contribuir para o elevador social e dar melhor educação a estas crianças para terem melhores empregos, melhores salários e uma melhor vida. De facto, há muita coisa a fazer. Demora cinco gerações para que uma criança consiga atingir o rendimento médio do país, porque está influenciada por todos os antepassados. Temos de quebrar isto, temos de combater o abandono escolar, temos de apoiar as crianças, aumentar a sua performance e queremos que tenham a ambição de ter um curso superior ou técnico-profissional.

Haverá um problema de falta de ambição em Portugal?
Não diria que é um problema de falta de ambição, mas sim do passado e da educação dos pais influenciar muito os filhos. Aliás, Portugal é um dos países mais influenciados por esses fatores. Um dos projetos que a Fundação vai fazer no próximo ano e de que somos um dos principais parceiros, chama-se myMentor e é uma plataforma onde existe informação de tudo o que queremos fazer, que cursos devemos ter, que competências devemos ter, e existem quase dez mil cursos online para as pessoas poderem fazer este percurso. E agora há um botão nesta plataforma, lançado recentemente pela Fundação Santander e pela Fundação Gulbenkian, que diz "não sei o que fazer, nem por onde começar"- para os jovens é o botão certo. Ao carregar neste botão são indicados os cursos e competências que devem ter e não só a nível de cursos superiores, mas também de cursos técnico-profissionais. Há muitas profissões em falta e que não estamos a formar. O mercado precisa disto.

É inevitável falar também da pobreza energética que pode afetar dois a três milhões de pessoas em Portugal. Num inverno frio como este, muitos portugueses não têm como aquecer as suas casas. Como pode a Fundação ajudar a resolver o problema?
Primeiro, Portugal não está mal em relação à Europa no que diz respeito à produção de energias renováveis, penso que está em sexto lugar, está bem. Onde de facto estamos bastante atrasados é na eficiência energética das casas, penso que mais de 25% das pessoas não têm capacidade de aquecer as suas casas no inverno, mas também 30% das pessoas não as consegue arrefecer no verão. Temos um grave problema em termos de eficiência energética, temos de mudar as janelas, temos de mudar os equipamentos, mudar as luzes, há muita coisa a fazer.

Como é que a instituição a que preside pretende atuar nesta área?
Estamos a ver parcerias com outros players nesta área da energia para perceber como é que conseguimos fazer a diferença e transformar a vida das pessoas em relação à pobreza energética. Mas há aqui um tema muito importante: a falta de sensibilização e conhecimento de todos, em geral ,do que é necessário fazer, e a falta de meios para o fazer.

A Fundação atuará com fundos ou com literacia?
O principal objetivo da Fundação é sensibilizar estas pessoas sobre o que é necessário fazer, mas toda a parte do financiamento é feita pelo banco. A Fundação faz a literacia e ajuda os parceiros a ajudarem as pessoas nesse sentido. Há uma falta de informação muito grande e, como responsável desta área a nível europeu, fizemos até um questionário na Europa que revela que 80% das pessoas estão preocupadas com o ambiente, mas depois se fizermos algumas perguntas sobre o que fazem para responder às questões ambientais, uma percentagem muito pequena sabe o que fazer. Estamos a falar de coisas básicas como mudar as lâmpadas ou desligar a luz. E nós, como banco, assim como todas as empresas em geral, temos a obrigação de dar estes instrumentos às pessoas e de as ajudar a perceber como atuar. Podem depois conseguir ou não fazê-lo, mas temos essa obrigação de passar esse conhecimento. É de facto uma grande preocupação da Fundação e do Banco Santander, faz parte dos nossos objetivos. Claramente, em relação aos particulares, temos o objetivo de perceber como podemos aumentar a eficiência energética das casas, não só pelo ambiente, mas para que consigam reduzir os seus custos.

Nestas áreas, que se inserem no mundo ESG, que oportunidades vê para Portugal?
Portugal tem uma vantagem bastante grande em relação a outros países naquilo que tem a ver com as renováveis. Penso que temos um potencial bastante grande nesta área, seja em painéis solares, seja em bombas de calor, é um mundo que está em crescimento. Temos de acelerar também a parte da inovação, ainda há muitas tecnologias que não estão no ponto em que gostaríamos e, se falarmos com os principais players , é exatamente isso que eles dizem. Além disso, os custos ainda são muito elevados e temos de arranjar forma de os reduzir para que todas as pessoas possam ter acesso a estas fontes de energia. Temos um potencial muito grande, não só a nível de particulares, mas também de empresas.

Como antevê este novo ano para a banca , em Portugal?
Penso que continuamos com uma grande incerteza devido à guerra e às taxas de juro, mas acho que a banca vai sempre ter um papel fundamental na economia. Quer seja a ajudar no dia-a-dia dos particulares, quer seja em ajudar as empresas.

Depois da última grande crise financeira e de todas as restruturações feitas, estará a banca mais preparada para os desafios?
O que a banca está a fazer e bem é uma restruturação completa e uma transformação digital. O consumidor mudou a sua maneira de trabalhar e de se relacionar com a banca e a banca teve de se adaptar para responder ainda melhor aos clientes. Foi todo um processo cujo objetivo é servir melhor os nossos clientes, com um custo mais baixo e com melhor serviço e experiência. Este é o objetivo da banca, adaptar-se a estas transformações que vivemos, nomeadamente a digital. Cada vez mais os clientes procuram fazer as suas transações e falar com o banco de forma digital, apesar da presença física ser sempre fundamental. A banca vai estar preparada e estamos cá mesmo para ajudar as pessoas.

Uma vez mais, em Portugal, este ano muito se tem falado de novas fusões e aquisições. Na sua análise, vão acontecer?
Não sei dizer. De facto, há grandes especulações sobre isso, mas não sei exatamente o que seria melhor para a banca, tendo em conta o papel que tem de ter na economia, nos acionistas, nos clientes e colaboradores. Saber o que será melhor para todos estes stakeholders da banca é uma questão que deve ser avaliada.

Mas julga que poderá haver perigos numa eventual concentração?
Não, acho que não.

Poderá haver oportunidades?
Já houve oportunidades, também com o Santander.

Voltando à Fundação e porque também é importante falar do aspeto cultural. As linhas de orientação estratégica para 2023 incluem a preservação da cultura, nomeadamente do património histórico e cultural. Como é que essa preocupação se vai transpor para a realidade nacional?
Dentro da Fundação fazemos toda a exploração do Edifício dos Leões, na Rua do Ouro [na Baixa de Lisboa],temos uma exposição permanente, um acordo com o Museu Nacional de Arte Antiga e terminámos agora uma exposição sobre o retrato. Vamos começar uma nova exposição em março, cujo foco será a mulher. Faz todo o sentido continuarmos a apoiar a cultura, continuarmos a apoiar as exposições e queremos fazer outros eventos neste edifício. Pretendemos fazer conferências com clientes, inclusivamente até com as próprias empresas do terceiro setor poderem ir fazer debates e expor os seus próprios projetos. É fundamental ter um espaço agregador para várias entidades com as mesmas causas. O espaço do Edifício dos Leões é fundamental, não só para a cultura a nível de museu e concertos que é o que fazemos, mas também por ser um espaço onde possamos fazer outras coisas como, por exemplo, levarmos lá crianças a ter uma aula de literacia financeira ou ter uma bolsa sobre um determinado tema. No fundo, que seja uma academia com vários eventos que juntem diversas pessoas e entidades. Vamos aproveitar bastante este espaço cultural que tem a Fundação.

rosalia.amorim@dn.pt