O primeiro caso confirmado de covid-19 em Portugal foi o de um médico de 60 anos, que esteve internado no Centro Hospitalar Universitário do Porto (Santo António), depois de regressar de férias no norte de Itália e que sentiu os primeiros sintomas a 29 de fevereiro. Isto foi a 2 de março. Uma semana depois, o futebol italiano foi suspenso (9 de março) e regressa esta sexta-feira (12 de junho) com um vibrante Juventus- AC Milan (1-1 no San Siro), que decide o primeiro finalista da Taça a levantar a 17 de junho no Olímpico de Roma (esta sábado, joga-se o Nápoles-Inter, depois do 0-1 em Milão).
O futebol italiano regressa num país devastado pela Covid-19, com quase 236 mil casos confirmados e mais de 34 mil mortes até ao momento, e com um jogo entre os dois maiores colossos, um deles liderado pela classe estelar de Cristiano Ronaldo, que ainda assim será desapontante para o capitão da seleção portuguesa.
"Os clubes vivem dos direitos televisivos e, como exemplo, a Premier League gastou 500 milhões de euros com a pandemia porque tem uma organização mais eficaz, enquanto a Serie A teve de despender muito mais dinheiro, porque o sistema organizativo é mais fraco e desequilibrado", analisa Massimo Basile, jornalista italiano que trabalhou em algumas das mais prestigiadas redações do país nas últimas décadas e vive agora há ano e meio em Nova Iorque, escrevendo como freelancer para o Corriere dello Sport, o La Repubblica e a AGI (a segunda mais importante agência noticiosa do país).
E prevê um cenário muito pouco animador para o campeonato italiano, que parecia dar sinais de retoma económica, financeira e desportiva com a chegada de Cristiano Ronaldo em 2018. A Juventus pagou então 106 milhões de euros ao Real Madrid pelos direitos desportivos do jogador que completou em fevereiro 35 anos.
Esse enorme saco de dinheiro foi uma jogada desportiva, de fortalecimento da equipa para ganhar a Liga dos Campeões, que só conquistou duas vezes, em 1985 (Ronaldo nasceu a 5 de fevereiro desse ano na Madeira) e em 1996. E financeira: porque pagou, mais do que por um jogador, pelo lucro direto e indireto da marca CR7, que permitiu recuperar o investimento em menos de dois anos. Obviamente que contratar um dos dois maiores jogadores da atualidade - a par de Lionel Messi - também é importante: Ronaldo já ganhou cinco Bolas de Ouro e dois prémios FIFA de melhor do Mundo, além de cinco Champions (Manchester United, 2008; Real Madrid: 2014, 2016, 2017, 2018). E esse toque de midas de Cristiano era importante para a Juventus e para o futebol italiano, que procurava o lugar que já ocupou, como uma das melhores ligas do mundo (foi largamente superado pelo futebol inglês e espanhol).
"Uma das questões principais e decisivas é que os grandes [Juventus, AC Milan e Inter, e logo a seguir o Nápoles, a Lazio e a Roma] podem perder o desafio de entrar na elite europeia do futebol que se concretizará numa Superliga continental", pontua o jornalista e analista.
E dá pistas para o fim da recuperação que a Serie A vinha fazendo: "Lautaro Martínez [Inter] vai para o Barcelona, Federico Chiesa [Fiorentina] pode ir para a Premier League Nicolò Zaniolo [Roma, treinada por Paulo Fonseca] também pode sair".
Os grandes talentos poderão ter de abandonar um campeonato desvalorizado pelas consequências da covid-19, mas também do insucesso europeu dos clubes italianos. Desde a segunda e até ver última vitória da Juve na Champions, em 1996, passaram-se 34 anos e só houve mais troféus máximos conquistados: AC Milan, em 2003 e 2007, e Inter, orientado por José Mourinho, em 2010.
Mas não só os grandes talentos. A grande estrela desportiva e comercial da Serie A também poderá estar a preparar uma nova etapa, fora de Itália. "Cristiano Ronaldo poderá ser a última grande estrela do Calcio. É um grande jogador, mas que está triste com a quebra de nível da série A e precisa de desafios de nível mais elevado. Precisa de um "Messi" para o motivar a superar-se", projeta Massimo Basile.
Só que "tudo é possível e o impossível é possível em Itália", diz o jornalista. "Mas acho que podemos ver em 2020/2021 um regresso ao passado dos anos 70 e 80, de aposta nos jovens italianos, por falta de capacidade para competir com as ligas maiores", diagnostica.
"Il ritorno del cálcio", avança Massimo Basile, será tudo menos num ambiente de defesa coletiva de interesses comuns. "Um novo cálcio caos? [risos]", "sim", diz Massimo Basile.
"É bom para Itália voltar a haver jogos de futebol. Mas será claramente num clima surreal, porque é um país muito devastado pela pandemia. A verdadeira diferença no futebol italiano é essa realidade de um país devastado. Alguns clubes têm medo de descer e vão usar o pânico para sabotar a série A", avisa.
"O grande "Toro" [Torino] tem como presidente Urbano Cairo, um magnata dos media e uma espécie de novo Berlusconni [risos]. Com medo da descida do Toro à Serie B, vai causar muita pressão com eventuais casos de covid-19 no futebol para parar o campeonato", contextualiza Basile. Cairo é proprietário do Torino desde 2005 e no seu interminável portfólio financeiro tem marcas de comunicação social como o Corriere della Sera e La Gazzetta dello Sport, além de controlar a Unidad Editorial, proprietária dos periódicos espanhóis Marca e El Mundo.
O Torino segue na 15.ª posição com 27 pontos, apenas mais um do que a Sampdoria e mais dois do que Génova e Lecce, este já em lugar de despromoção - descem três dos 20 clubes da Serie A.
"Ironicamente, o primeiro jogo do campeonato será o Torino-Parma [20 de junho, 18:30]", regista Massimo Basile, falando depois da complexidade e posição delicada causada por posturas agressivas como a de Cairo.
"Vão-se disputar 124 partidas em 40 dias. Serão 12 jornadas de 20 de junho a 2 de agosto", aponta. E acrescenta outro dos nomes que quer encravar a engrenagem do "Il ritorno del cálcio". "O Brescia é o último. O presidente Massimo Cellino, antigo patrão do Cagliari e do Leeds, e com muitos problemas com o fisco, também vai fazer tudo para evitar a quase inevitável despromoção do clube", que ocupa o último lugar com 16 pontos (4 vitórias, 4 empates e 18 derrotas). E que já disse ao que vem neste tempo de desconfinamento, lembra o jornalista: "Não podemos jogar, tenho um jogador com covid".
"Para evitar bloquear o campeonato por causa de novos casos de covid, o governo decretou que um atleta contaminado obriga a equipa a parar 14 dias. Por exemplo, na NBA, a liga de basquetebol dos Estados Unidos, o protocolo é diferente e só o jogador contaminado para sete dias, e não 14 como em Itália", diz.
Resumindo, cá como lá, "o campeonato pode acabar no tribunal". "Os grandes só pensam em si mesmos e os pequenos em sobreviver. É curioso que os EUA são um país individualista com um sistema desportivo socialista - o clube mais fraco tem mais direitos. Em Itália e Portugal, países historicamente marcados pelo socialismo, são capitalistas no futebol", nota.
Nas contas da luta pelo título, Massimo Basile considera tudo em aberto. A Juventus lidera com 63 pontos, mais um do que a Lazio e nove do que o Inter (menos um jogo).
"Sim, tudo é possível e o impossível é possível. Se a Lazio pode bater a Juventus na conquista do "scudetto" [título de campeão]? Pode, claramente. Antes da paragem, a Lazio estava bem e jogava melhor do que a Juve", defende. Mas os resultados das cinco jornadas antes da suspensão só deram mais um ponto aos laziale, que ganharam quatro jogos e empataram um - a Juve conseguiu o mesmo número de triunfos, mas perdeu um jogo.
"Agora, não sei. Ninguém sabe ou pode sequer fazer prognósticos", devido à instabilidade criada pelo covid, por dirigentes menos escrupulosos e pela condição física pouco previsível das equipas.
Se chegar ao fim na frente, a Juventus chegará ao nono título consecutivo, tendo começado a série em 2012, mas se esse objetivo é importante, mais importante será a carreira na Liga dos Campeões, o grande repto do emblema de Turim.
E esse sonho mantém-se vivo, uma vez que a Juventus tem um jogo para recuperar do 0-1 em Lyon para chegar aos quartos-de-final de uma prova que se deverá realizar em agosto de forma concentrada em Lisboa, no Estádio de Alvalade e no Estádio da Luz, onde o CR7 levantou o troféu pela última vez há dois anos, ainda pelo Real Madrid e pouco antes de se concretizar o ingresso na Vecchia Signora. O atual campeão europeu é o Liverpool, mas já saiu da prova, eliminado pelo Atlético de Madrid nos oitavos-de-final, fase em que a prova está encalhada. Além da equipa que tem João Félix nas fileiras (transferiu-se do Benfica no verão por 106 milhões de euros), estão apurados para os "quartos" a Atalanta, o RB Leipzig e o Paris Saint-Germain. As outra quatro equipas sairão do já referido duelo entre Juventus e Lyon e do Manchester City - Real Madrid (2-1, em Espanha), Bayern - Chelsea (3-0, em Inglaterra) e Barcelona - Nápoles (1-1, em Itália).
Segundo os dados da Organização Mundial de Saúde disponíveis quinta-feira à tarde (11 de junho), Itália, que tem 60,4 milhões de habitantes, registava 235.763 casos confirmados e 34.114 mortes, sendo um dos países mais atingidos pela pandemia. Na Europa, só o Reino Unido (66,7 milhões de habitantes) tem números superiores: 290.147 casos confirmados e 41.128 mortes.