Desporto
09 dezembro 2023 às 07h00

A distrofia muscular e a luta contra a cadeira de rodas até ser Campeã Europeia

Sofreu bullying e lutou contra a cadeira de rodas até descobrir que lhe devolvia a liberdade perdida para a doença e lhe permitia ser atleta. Competiu grávida e foi Campeã da Europa alguns meses após ser mãe. Representa o FC Porto e sonha com Paris2024.

Carla Oliveira tinha 10 anos quando ouviu uma enfermeira dizer à mãe que teria 7/8 anos de vida devido a uma doença rara que afeta uma em cada 500 mil crianças: distrofia muscular das cinturas. Hoje tem 34 anos, é uma atleta de elite, Campeã da Europa de Boccia e está integrada no Programa de Preparação Paralímpico Paris2024. A luta contra a cadeira de rodas, até descobrir que lhe devolvia a liberdade perdida para a doença, é uma história de vida, assim como o talento para jogar Boccia da Campeã da Europa.

Carla caía muitas vezes "e pensava que era apenas desastrada". Não corria tão rápido, mas corria, não saltava tão alto, mas saltava e conseguia andar de bicicleta, que era o que "mais adorava". Mas os gémeos das pernas demasiado desenvolvidos do esforço de andar sempre em bicos de pés chamaram a atenção dos pais e foi aí que começou a "andar de médico em médico".

Disseram-lhe que era um problema no tendão de Aquiles, que era só operar e ficava tudo bem... Mas as limitações foram progredindo ao ponto de não conseguir lavar a cara ou pentear-se. Uma biópsia ao músculo e uma eletromiografia pré-diagnosticaram-lhe distrofia muscular das cinturas, uma doença rara e com prazo de vida associado. Tentou várias terapias, foi a vários médicos e alguns charlatões: "Agora é absurdo pensar que acreditamos na prometida cura de 99%, mas na altura era o desespero, o tentar arranjar uma solução."

O período mais crítico "terá sido aos 12 anos", na fase da adolescência e da formação de uma identidade que a doença teimava em roubar-lhe. Os risos dos colegas, a cada queda que dava, ainda ecoam na memória da atleta e afetaram-lhe a confiança e a autoestima. O bullying na escola seria o menor dos seus problemas. Carla deixaria de ser autónoma aos 15 anos: "Lutei contra a cadeira de rodas até ao limite do meu corpo."

Nessa altura agarrou-se à fé, a Deus e à ajuda da mãe. Fernanda Silva teve de deixar de trabalhar para levar a filha à escola, à fisioterapia, à hidroginástica... Como era (e é) muito sociável, foi percebendo que "aquele aparelho não era o inimigo", antes pelo contrário devolvia-lhe a liberdade de ir à escola, ao shopping e até sair à noite.

A aceitação da cadeira de rodas deu-se antes do Boccia entrar na sua vida de vez, aos 20 anos. Tinha jogado boccia uma vez, aos 14 anos, no antigo Estádio das Antas (agora Dragão) e não gostou. "Nunca tive cultura desportiva. Uma coisa era pensar na vibração do futebol, outra era pensar em lançar umas bolas para o chão e nem percebia muito bem o sentido do jogo. Não gostei nada, mas o senhor José Rodrigues, do FC Porto, foi-me ligando e, um dia, depois de acabar a licenciatura [Educação Social] e o mestrado [Ciências da Educação] deixei de ter desculpas. Vencida pelo cansaço decidi experimentar, sem compromisso", contou ao DN, explicando que treinava uma vez por semana.

Ao fim de três meses de treino foi a uma competição e ficou rendida à modalidade. Diz que aprendeu a ser atleta, adquiriu disciplina e comprometimento com o treino e começou a competir pelo FC Porto. Em 2012 foi chamada à seleção e um ano depois levantou o primeiro troféu numa Taça do Mundo. Selecionada para ir ao Rio 2016 devido às quotas, envergonhou-se dessa discriminação positiva e tratou de ir a Tóquio 2020 por mérito. E nem a pandemia da covid-19 a impediu de lá chegar. Ficou em 4.º lugar, o mais "inglório" de todos.

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Carla conheceu entretanto aquele que viria a ser o seu marido, Agostinho Cardoso, num estágio do mestrado e ficou grávida. "A intimidade aconteceu naturalmente, não estou limitada sexualmente. Ele sabia que me despia, mas também tinha de me vestir [risos]. Isto criou muito mais proximidade. O desconforto, passou a ser conforto. Eu digo-lhe que não nos podemos chatear, porque ele tem de me abraçar cada vez que me move da cadeira para o carro, para o sofá ou para a cama", contou sem complexos.

Teve uma gravidez tranquila, sem enjoos ou má-disposição, e os treinadores só souberam aos três meses de gestação. No Open da Póvoa do Varzim de 2022 estava grávida de cinco meses e conquistou o Ouro. A felicidade camuflou medos. Não sabia se iria continuar no Boccia depois de ser mãe e como o corpo iria lidar com o peso da barriga. E se iria querer abdicar de tempo de qualidade com a filha para treinar e competir: "Tive a Gabi e os medos foram-se dissipando. Três meses depois, em fevereiro deste ano, comecei a treinar gradualmente, mas não conseguia acompanhar o ritmo e reduzi a carga de treino. Não me sentia preparada para o Campeonato da Europa, mas ter lá a minha filha e um bom suporte familiar ajudou a compensar a parte física e deu-me a motivação que precisava para ser campeã (classe BC4)."

Ir ao Europeu só foi possível porque o FC Porto e o Comité Paralímpico de Portugal lhe deram condições para tal. "Estava a amamentar e isso implicava levar uma pessoa extra na comitiva. Além do assistente desportivo, precisava de alguém que ficasse com a minha filha e escolhi a minha mãe, mas as despesas de estadia e da deslocação dela fui eu que paguei", contou.

Hoje lamenta que os médicos nunca lhe tenham dito para "praticar desporto" e que os professores de Educação Física nunca lhe tenham falado no desporto adaptado. Enquadrada no projeto-piloto MAVI (Movimento de Apoio à Vida Independente), Carla tem uma assistente pessoal, além de um bom suporte familiar e patronal: " Vivo a cinco minutos do Estádio do Dragão, onde trabalho na Secção de Desporto Adaptado do FC Porto, clube que represento. É só subir um andar de elevador e estou no espaço de treino. E facilita ter um clube, colegas e uma entidade patronal que entendem as exigências do alto-rendimento."

Carla está em 5.º lugar do ranking mundial que garante Paris2024 e sonha com uma medalha olímpica. Só um pódio superará "esse momento mágico" de jogar Boccia num pavilhão com 10 mil pessoas, como aconteceu no Rio2016, e permitirá devolver à modalidade tudo aquilo que lhe deu: "De resto sinto-me realizada."

isaura.almeida@dn.pt