A arte saiu à rua ainda ia a meio o dia 25 de Abril de 1974 e nos meses que se seguiram quem cantava, escrevia, pintava, representava, filmava, grafitava ou desenhava, aproveitou a liberdade como nunca. Foi uma revolução feita à medida dos criadores artísticos e que tinha em quase todos os portugueses um público que ansiava pela modernidade que se vivia além Pirenéus. Nem foi preciso esperar que o poder mudasse de mãos com a rendição de Marcelo Caetano a meio da tarde para nascer o principal ícone gráfico da Revolução: o cravo.
Um símbolo que os artistas imediatamente estilizaram, cantaram e pintaram, e que prova como um gesto popular pode batizar um golpe de estado às primeiras horas. Afinal Celeste Caeiro, a empregada de um restaurante que não abriu portas nesse dia, recebeu um ramo de cravos do patrão - por não os poder dar aos clientes - e no regresso a casa distribuiu-os pelos revoltosos. Além de dar nome ao movimento militar, A Revolução dos Cravos, logo a visão de um flor enfiada no cano da arma se tornou emblemática. E a arte inspirou a revolução imediatamente, como se pode ver no primeiro cartaz que o DN vai oferecer para comemorar os 44 anos do 25 de Abril (à esquerda), sendo esta uma das expressões nacionais que mais se reinventaram com a alteração política e que foi determinantes para a mudança de mentalidades que se seguiu. Um renascimento tão grande que a maioria dos protagonistas das artes ouvidos pelo DN usam a palavra "explosão" para o definir.
Uma floresta de imagens gráficas
Nos dias que se seguiram ao 25 de Abril, o historiador José Pacheco Pereira destaca o papel do cartaz, bem como a do autocolante e do pin, na mudança de mentalidades em curso: "É a primeira vez que se pode fazer propaganda pública com grande dimensão e, de repente, dá-se uma verdadeira explosão da arte gráfica, com a particularidade de não existir uma uniformização estética. Foi uma época em que os olhos dos portugueses viram pela primeira vez cartazes, murais e outras expressões gráficas proibida, e era tudo tão novo que as primeiras grandes colagens de cartazes foram documentadas fotograficamente. Para quem não viveu essa época pode parecer pouco importante, mas são dois mundos: o de antes e o depois." Para Pacheco Pereira a iconografia ajuda a levar as mentalidades da ditadura para a liberdade: "É uma revolução difícil de medir devido à grande variedade gráfica e a uma verdadeira floresta de imagens."
O cinema a fixar a mudança
Se o cartaz mudava mentalidades também o cinema o fazia e a cineasta Raquel Freire garante que "o cinema ajudou a mudar as mentalidades porque mudou bastante e foi uma expressão cultural com impacto": Recorda as palavras do realizador Glauber Rocha que dizia ser "o cinema a síntese da explosão histórica quando ela acontece" e não foi por acaso que "ele até veio cá filmar". Destaca o trabalho de Rui Simões, "o cineasta que faz dois filmes brilhantes sobre o pós-25 de Abril". Acrescenta que "foram feitos também documentários fundamentais sobre a Revolução que ajudaram a mudar o pensamento", tanto que a seu ver "deveriam passar em todas as escolas". É o caso de As Armas e o Povo que retrata os primeiros seis dias da Revolução dos Cravos, realizado por um coletivo: "Como o que aconteceu naquela época é impressionante, foi um momento fundamental para o cinema ansioso pela liberdade. Os cineastas aproveitam a oportunidade e registam a transformação que o país atravessa. Documentários que mostram os desejos do que seria a democracia e geravam uma vontade de mudar em quem os via."
O teatro não podia fechar a porta
Para a atriz Maria do Céu Guerra os dias que se seguiram ao 25 de Abril foram também uma "explosão". Recorda entusiasmada o tempo em que o teatro mudou mas não esquece a exibição de O Mal Amado dois dias depois do golpe: "Era um filme em que eu participava mas estava proibido de ser exibido desde 1973. No dia 27 de abril estreou no Monumental. No fim, houve uma senhora que emocionada agradeceu e disse: "E fizeram isto em dois dias!" Era assim, as pessoas estavam mesmo envolvidas." Quanto ao teatro, a mudança foi radical: "Era tanta gente que tínhamos de fazer duas sessões para que ninguém fosse embora sem assistir à peça." Quanto ao repertório, também muda porque o "interesse dos espetadores altera-se e as companhias queriam encenar o que lhes esteve proibido". Exemplo disso foi a proliferação de textos de Brecht, que "de um dia para o outro estava em todos os palcos".
Época exaltante para a canção
A música não faltou à Revolução, nem antes nem depois. Sérgio Godinho considera que "não são as canções que fazem uma revolução, mas deram um grande contributo na consciencialização de muita gente". Fora o caso das cassetes com as músicas do cantor, as de José Afonso, Luís Cília ou José Mário Branco, que "eram ouvidas na guerra colonial e esclareceram muitos muito soldados". A seguir ao 25 de Abril, refere, "houve uma presença grande da canção e éramos como caixeiros viajantes a difundir o que estava a acontecer através da música, mesmo que em condições muito precárias. Nada que impedisse ter sido uma época exaltante". Não eram só as grandes cidades a ouvir esse período inovador da canção: "Íamos para o interior, o que foi muito importante para mim porque estive nove anos fora e nunca cantara no meu país. Era o contacto real com a população, em comunhão com a sede que o público tinha de estar em liberdade. Era contagiante." Altura em que cantores e bandas estrangeiras eram raras e só se ouviam na Festa do Avante: "Nomes que nunca cá tinham vindo, como Chico Buarque. A música motivava as pessoas".
Novo ambiente na literatura
Na literatura, explica o editor Zeferino Coelho, "houve a grande frustração de não aparecerem os romances que se diziam estar guardados na gaveta devido à ação da censura, e os autores que vendiam muito continuaram a ter sucesso". Era o caso de Fernando Namora, mesmo que tenha acertado o foco para a nova realidade, ou a dos que eram vítimas da censura, como Urbano Tavares Rodrigues, que deixaram de estar limitados. Para o editor o exemplo mais significativo da mudança é José Saramago com Levantados do Chão: "Era um livro que não podia ser escrito antes porque não existia essa vivência. Ou Lobo Antunes, cujo tema da guerra colonial era impossível tratar. A censura era muito férrea." Para Zeferino Coelho, o teatro era também um setor da cultura muito visado: "Quando havia a primeira audição da censura já se tinha gasto muito dinheiro na montagem." Lembra-se de um caso no Porto: "Estava tudo pronto mas o censor disse que o ator poderia dizer uma certa fala mas nunca naquele tom."
Ilustração precisa de liberdade
André Carrilho só nasce a 26 de julho mas considera que pôde tornar-se ilustrador devido à Revolução: "O meu trabalho está condicionado pelo grau de liberdade de expressão. Houve outros que conseguiram ter uma voz numa imprensa que não era livre, como Stuart Carvalhais." No entanto, quatro décadas depois, faz uma análise inesperada dos tempos que vivemos: "As estrelas da ilustração estão a especializar-se em mensagem política e isso pode-se ver nas capas das revistas Der Spiegel ou The New Yorker, com um desenho mais interventivo do que há uns anos. Voltamos aos tempos da mensagem politizada do 25 de Abril por se estar a viver um tempo de protesto." Mais curioso é a sua reflexão seguinte: "As pessoas querem partilhar cada vez mais imagens para ganhar voz e a mensagem do cartoon é própria para esse objetivo nas redes sociais."