Artes
08 novembro 2017 às 00h24

"Afinal os campos de concentração nazis não estavam assim tão longe de nós"

Entrevista a Cláudia Sofia Ninhos, coautora da obra Salazar, Portugal e o Holocausto, com Irene Pimentel e coeditora de vários livros sobre as relações do III Reich com Portugal e outros países da Europa do Sul

Ana Sousa Dias

O ar delicado de menina e a voz suave não podem fazer esquecer que se dedica a um dos períodos mais trágicos da história europeia. Recuperar para a luz nomes e rostos de vítimas portuguesas do III Reich é uma das formas de redenção, e poderemos vê-los, nomes e rostos, na exposição Os Trabalhadores Forçados Portugueses no III Reich, que é inaugurada no CCB no dia 17, com a participação ativa desta investigadora que acaba de lançar o livro Portugal e os Nazis, Histórias e Segredos de uma Aliança.

Como aparece esta sua investigação?

O livro resulta de uma parte da minha tese de doutoramento, que defendi em 2016 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), sobre as relações entre o Estado Novo e o Terceiro Reich, nomeadamente culturais e científicas.

Eram uma forma de propaganda?

Sobretudo durante este período. Se calhar ainda olhamos para a política cultural como algo apolítico, mas por trás tem objetivos de natureza política e económica. Durante o regime nacional-socialista, a cultura alemã é utilizada para passar uma mensagem de propaganda e de compreensão face à ideologia. A partir da radicalização da política externa nazi, é preciso fazer passar uma imagem mais normalizadora do regime.

É uma política que vem do tempo da República de Weimar, intensificada no nacional-socialismo?

As instituições e a estratégia vêm do período da República de Weimar. O que acontece a partir de 1933 é uma intensificação da natureza política da diplomacia cultural. Também em Portugal ela começa nos anos 1920, e intensifica-se a partir de 1933, e em especial em 1934, quando chega um novo ministro - não era embaixador, era ministro da Alemanha em Portugal -, o barão Hoyningen-Huene, que vai servir-se do prestígio que a cultura alemã tinha entre a elite portuguesa. Desde o final do século XIX vemos médicos e intelectuais portugueses a estudarem na Alemanha.

O barão Huene é chamado por Hitler. Não era suficientemente agressivo?

Ele fica em Lisboa dez anos, de 1934 a 1944, quando é chamado a Berlim para o substituírem, sem conhecimento do próprio nem do Estado Novo. Em Portugal, mesmo pelo regime e por Salazar, ele não era visto como um nazi, era um diplomata do período da República de Weimar, alguém moderado. Mas serviu muito bem os propósitos do regime, conhece muito bem a elite portuguesa, consegue enraizar-se. É chamado porque falha em dois momentos decisivos: a cedência da base dos Açores aos Aliados e o embargo do volfrâmio. Esses erros foram fatais para ele.

Mais tarde, Salazar tenta que ele volte?

Essa é uma das questões mais curiosas. Nos anos 1950, os jornais alemães noticiam que Salazar pretende que Hoyningen-Huene regresse a Portugal como representante diplomático da República Federal da Alemanha, o que não é aceite, obviamente. Esteve preso no final do conflito, depois regressa e fica a viver uns anos em Portugal.

Como começou a interessar-se por este período histórico?

O meu interesse foi primeiro pela língua alemã. Quando fiz a licenciatura em História fiz uma especialização em Estudos Alemães e isso deu-me outros instrumentos. O conhecimento do alemão permite-me aceder aos arquivos e a documentação importantíssima. Apesar de haver estudos sobre a posição de Portugal perante o conflito, faltava uma parte importante, poucos autores utilizavam as fontes alemãs.

Foi para a Alemanha investigar?

Fiz a primeira investigação em Berlim, no arquivo político do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), onde está a correspondência diplomática entre a legação da Alemanha em Lisboa e o MNE alemão. Ao contrário do que acontece no MNE português, onde a documentação sobre as relações entre Portugal e a Alemanha é escassa, em Berlim encontrei uma quantidade enorme de fontes. Parece que a legação de Portugal em Berlim foi bombardeada e perdeu-se muita documentação. Sem os arquivos alemães esta investigação não teria sido possível.

Faz parte da equipa que prepara uma exposição que abre na próxima semana no CCB sobre os portugueses e o Holocausto. Como está a correr?

É uma investigação em que tenho trabalhado paralelamente ao doutoramento. É coordenada pelo Fernando Rosas e junta investigadores alemães, espanhóis e uma investigadora portuguesa radicada em Paris. Começou por ser um projeto sobre os portugueses no Holocausto. Concorremos a financiamentos da FCT, foram recusados. Soubemos que havia uma fundação na Alemanha [EVZ Stiftung Erinnerung Verantwortung Zukunft - Fundação Memória, Responsabilidade e Futuro] que financiava projetos relacionados com as vítimas esquecidas do nacional-socialismo, nomeadamente sobre os trabalhadores forçados. Adaptámos o projeto e obtivemos o financiamento dessa fundação.

O que vai ser a exposição?

O tema é Os Trabalhadores Forçados Portugueses no III Reich. O trabalho forçado durante a II Guerra Mundial é uma questão omnipresente, quer dos prisioneiros dos campos de concentração quer dos prisioneiros de guerra que foram forçados a trabalhar. Apanhámos nesta teia centenas de portugueses, muitos deles levados a partir de França. A França é o principal núcleo a partir do qual os portugueses são apanhados e deportados, quer para as prisões do Reich quer para o sistema concentracionário, ou levados como trabalhadores e utilizados em indústrias.

Não por serem judeus?

Foram apanhados no turbilhão da guerra e são sobretudo emigrantes portugueses em França, católicos. A questão judaica não se aplica. Conseguimos identificar vários nomes, acreditamos que seja a ponta do icebergue porque muita documentação perdeu-se, foi destruída, muitas vezes os portugueses são considerados espanhóis ou franceses. Houve uma família do Porto que nos contactou porque um tio esteve internado num stalag, um campo de prisioneiros de guerra, e é uma das histórias contadas na exposição. O objetivo é dar nome e, sempre que possível, cara a essas vítimas esquecidas.

Porque decidiu estudar História?

Foi sobretudo por influência de uma professora que tive no ensino básico, Graça Colaço. Há bons professores no ensino oficial, temos o hábito de criticar as escolas públicas, mas um bom professor faz a diferença.

É bolseira há sete anos?

A viver um ano de cada vez, à espera da próxima bolsa.

Como investiga um historiador?

É um processo complexo. Esta investigação é um pouco como as cerejas, puxamos uma e vêm atrás pistas que é preciso seguir. A documentação nem sempre corresponde às expectativas, nem sempre confirma as suposições que temos, criando um novo caminho. É um processo contínuo, por isso a história nunca está feita.

Creio que não há outro período histórico com tanta investigação. Porquê?

É uma questão que já me coloquei. É um período que ainda nos marca muito e, apesar de dizerem que Portugal foi um país neutro, que não teve nada que ver com o Holocausto nem com a guerra, isso não é verdade. Temos vindo a contribuir para desconstruir um pouco este mito criado pelo Estado Novo. Foram muitos mortos, é um genocídio no coração da Europa, aqui ao lado, e praticado por um país que considerávamos com uma cultura superior. Porque é que os bolseiros portugueses durante a guerra continuaram a pedir bolsas para irem estudar para a Alemanha?

Isso é verdade?

É verdade. Essa parte ficou fora deste livro, espero publicá-la mais tarde.

O que a impressiona mais na exposição?

A possibilidade de dar nome, de dar rosto a estas vítimas portuguesas, porque afinal os campos de concentração não estavam assim tão longe de nós. Estamos habituados a ver isto de uma perspetiva contrária, os refugiados a saírem da Europa através de Portugal, mas neste caso temos portugueses que são deportados para os campos, para as prisões. E muitos são mortos.