Ana Anjos Mântua, que acabo de conhecer, revela-se uma bela contadora de histórias e por isso durante duas horas falaremos do seu livro sobre uma americana que queria ser rainha de Portugal (pretexto deste Almoço com...), mas também sobre museus, Índia, Ilha de Moçambique e até o próprio DN. Sentada à mesa d"O Sinal Verde, um restaurante no Chiado onde vai "de vez e quando" e ao qual costuma levar "os amigos estrangeiros de visita a Lisboa para provarem comida portuguesa", fala-me da Casa--Museu Anastácio Gonçalves, que dirige desde 2013, e do admirável médico oftalmologista que lhe dá nome: "Começou por ser a casa do pintor José Malhoa, até ser adquirida em 1932 pelo Dr. António Anastácio Gonçalves, excelente colecionador, de olhar clínico, e um republicano convicto com preocupações sociais que deixou tudo ao país.".E conta-me depois, enquanto esperamos pela ementa, como morreu o colecionador, quase um final de sonho para um apaixonado pelas artes, pois acabara de visitar o Hermitage, em São Petersburgo, um velho desejo seu: "Em 1962, o Dr. Anastácio Gonçalves tinha feito uma longa visita à União Soviética e aos países satélites, como se costumava dizer. Mas no dia que tinha programado passar em Leninegrado, como então se chamava São Petersburgo, era feriado nacional e o Hermitage estava fechado. Não desistiu, porém, de regressar um dia. E em 1965 voltou a preencher a habitual ficha na PIDE a explicar porque queria ir à União Soviética. É que dos grandes museus do mundo só lhe faltava visitar aquele. Foi autorizado e na noite depois da visita ao Hermitage morreu. Há quem chame a isso a síndrome de Stendhal, o choque provocado pelo muito belo, mas também é verdade que tinha 76 anos e sofria de problemas respiratórios.".Ana - combinamos ser assim o tratamento, durante a conversa e nesta peça - pede peixe-espada frito com açorda. Agrada-me e imito a escolha. "Aqui n"O Sinal Verde costumo comer aquilo que não faço em casa. E adoro peixe frito", explica, tendo o cuidado de acrescentar que é eclética em termos de gastronomia. Pede uma imperial para acompanhar, o que também imito (pelo contrário, Ana não me acompanhou no queijo fresco de entrada, pois para ela "é mais um lanche") e comenta que também aprecia vinho, sobretudo os tintos, mas que desde que sejam bons tanto lhe faz que sejam do Douro, do Dão ou alentejanos. "Não sou uma conhecedora, mas gosto do que é bom e às vezes desconfio de tantas marcas novas, de vinhos novos sempre a aparecer", acrescenta, depois de bebericar a imperial que há de durar o almoço todo - também o tempo frio não convidava a mais..Falamos um pouco da parte mais pessoal de Ana. "Lisboeta, nascida em 1958, divorciada, mãe de João, 31 anos, designer gráfico a viver em Aveiro", sintetiza. Pergunto-lhe se é lisboeta de várias gerações ou com pais vindos de algum recanto do país que ainda considera a terra. Surpreende-me com uma avó espanhola, de Valência. "Conhecia-a muito bem, até porque morávamos no mesmo prédio. Morreu quando eu tinha 10 anos. Nunca falou português e não se cansava de dizer-me a mim e às minhas primas que "lo más importante son los estudios"..O conselho da avó valenciana foi seguido. Ana formou-se em História, na variante de História de Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Antes de ingressar como técnica superior na Casa-Museu Anastácio Gonçalves, foi investigadora e curadora no Mosteiro dos Jerónimos e no Museu Nacional do Azulejo. Tem publicado artigos em revistas especializadas, feito comunicações cá dentro e lá fora, e ainda, alimentando a sua paixão pela música, chegou a ter programas na Antena 2 "a traçar uma relação entre a música e as artes plásticas". Em 2016, sob o título de O Fio de Ariadne, foram 13 programas, dessa vez "a dar luz e voz a algumas mulheres-artistas que a história, injustamente, deturpou ou negligenciou", conta..N"O Sinal Verde, que encheu, o dia é de cozido à portuguesa e os comensais renderam-se, a acreditar nas travessas cheias de carnes e enchidos que atravessam a sala. Mas estamos ambos satisfeitos com o peixe-espada frito. "Está ótimo", elogia Ana, tendo à frente uma senhora posta, bem alta. Concordo e estendo o elogio também à açorda que acompanha o peixe.."Também gosto muito de comida goesa. Conhece o chef Jesus, que tinha o Tentações de Goa ali no Martim Moniz? Tem agora outro restaurante, o Jesus É Goês, de que dizem muito bem também", diz Ana, surpreendendo-me. Pergunto se tem alguma ligação a Goa. Não, responde, mas já lá foi e ficou apaixonada pela antiga colónia portuguesa, com as belas praias e as igrejas caiadas no meio de colinas verdejantes. "Fui à Índia para apresentar na Universidade de Nova Deli uma comunicação sobre "Os Animais nas Tapeçarias de D. João de Castro" e acabei por ficar lá um mês e meio", relata, entusiasmada. Foi há uns anos. "Conheci uma Índia muito indiana. Em Nova Deli fiquei na casa de uma família indiana, amigos de uma amiga minha. E isso deu-me uma perspetiva que não é a do turista", acrescenta. Conto-lhe partilhar do mesmo fascínio pela Índia, onde fui três vezes como repórter do DN e, portanto, olhando-a também de uma perspetiva que não é a do turista. Digo que gostei de Goa, mas que a surpresa maior que tive foi o Templo Dourado do sikhs, um oásis de mármore branco e água no meio do caos de Amritsar. Ana fala-me de Indira Gandhi e dos seus guardas sikhs que a assassinaram, mas, de repente, percebemos que temos de acabar o tema Índia porque o almoço já vai adiantado e ainda falta falar do livro A Americana Que Queria Ser Rainha de Portugal. Mas não resisto a perguntar a Ana se teve mais alguma experiência exótica na sua carreira e sim, diz ela, teve.."Em 2004 fui a Moçambique dar uma ação de formação de salvaguarda do património e passei dois meses, em Maputo e na Ilha de Moçambique. Gostei imenso", explica. E depois a admissão de um desejo: "Adorava ir trabalhar para uma embaixada num desses países e por lá ficar dois ou três anos.".Falemos então do livro que a Manuscrito acaba de publicar. Confesso que fiquei surpreendido por ser um romance quando estava à espera de uma biografia, dado o título falar de Nevada Hayes, figura que em tempos já me tinha chamado a atenção por alguma referência num artigo ou livro. Ana fez questão de esclarecer: "O que está no livro é 95% história e só 5% é ficção e essa está sobretudo nos diálogos." Sintetizemos: Nevada Hayes, americana viúva de um milionário, vem a Portugal em 1908 e conhece D. Afonso, irmão do rei D. Carlos, meses antes assassinado tal como o príncipe herdeiro D. Luís Filipe. Já depois da queda da monarquia em 1910, e com a família real portuguesa condenada ao exílio pelo regime republicano, Nevada e Afonso voltam a encontrar-se e acabam por casar-se contra a vontade de D. Manuel II, nosso último rei e sobrinho do noivo. Vivem num palácio nos arredores de Nápoles até 1920, ano da morte de D. Afonso, e a americana acompanha o corpo, que é colocado em 1921 em Lisboa no Panteão dos Bragança, na Igreja de São Vicente de Fora..Vou direto ao assunto e pergunto à historiadora Ana Anjos Mântua (aqui justifica-se o formalismo) se Nevada era mesmo uma caçadora de fortunas: "Sim, era, mas no caso de D. Afonso era mais uma caçadora de títulos. O marido que morreu tinha-lhe deixado uma fortuna e D. Afonso não tinha posses, vivendo do que lhe dava o sobrinho e a casa real italiana, os seus primos da Casa de Saboia. Mas devo acrescentar que gostava dele. Nos seus diários diz ter saudades do seu Afonso." Ana estudou ao pormenor Nevada e D. Afonso, o popular Arreda, alcunha que lhe foi dada por ser o que gritava aos transeuntes quando acelerava de carro pelas ruas de Lisboa em jovem..Nevada, nascida no Ohio, reivindicava ter nascido em 1885, mas roubava uns bons anos à idade real. Foi casada e divorciou-se, casou-se de novo e enviuvou, casou-se terceira vez para também se divorciar. O casamento com o infante português foi o quarto e ocorreu em 1917 em Roma, pelo rito metodista, e depois também em Madrid para legalização junto da embaixada portuguesa. "Ela converteu-se ao catolicismo e até se batizou com o nome Maria Pia, como a mãe de D. Afonso, uma atitude manipuladora para cativar a família real mas sem êxito", sublinha Ana, que se tem duplicado em entrevistas sobre A Americana Que Queria Ser Rainha de Portugal. Ainda há dias esteve na Casa-Museu Anastácio Gonçalves Manuel Luís Goucha a gravar para um programa na TVI, conta a historiadora, que tem aproveitado para divulgar também o museu que coordena, ali em frente à Maternidade Alfredo da Costa (um grande médico goês, mas não me lembrei de referir isso a Ana durante a conversa).."Quem me desafiou a investigar a Nevada foi o meu grande amigo José Alberto Ribeiro, que me trouxe para a Casa-Museu Anastácio Gonçalves e hoje é diretor do Palácio da Ajuda. Ele tinha andado a investigar a rainha D. Amélia e tinha-se cruzado com documentação sobre a relação de Nevada Hayes com D. Afonso. Na época andava eu com outros interesses e acabei por não seguir a sugestão, mas leituras sobre leilões de joias pertencentes à família real portuguesa voltaram a fazer-me encontrar com a enigmática americana e então não parei de investigar", diz Ana. Depois foi uma sequência de acontecimentos, com "um artigo sobre Nevada para a revista ARTIS que me levou a descobrir o inventário da herança de D. Afonso no arquivo do Ministério das Finanças", acrescenta. Depois um outro amigo, Anísio Franco, conservador no Museu Nacional de Arte Antiga, pô-la em contacto com Sofia Monteiro da Manuscrito. A editora aderiu logo à ideia, mas sugerindo que fosse sob a forma de uma biografia romanceada. Ana hesitou, hoje está feliz por assim ter sido..A historiadora salta a sobremesa, hesitando sobre pedir um leite-creme, eu peço uma laranja em fatias. Feito o pedido, voltamos a falar sobre o desafio de narrar na primeira pessoa a história de outra, mesmo sendo também uma mulher. "Foi um grande desafio, mas creio que resultou." Concordo. E deixo aqui uma passagem, tirada logo do início do livro, quando Nevada chega a Portugal poucos meses depois do regicídio e vai a Sintra à procura de provocar um encontro com D. Afonso, visto como um bom partido: "Detive-me no centro, junto ao palácio real, para repousar, comer qualquer coisa e me refrescar, quando ouvi o som de um motor ruidoso de automóvel, perturbando aquela pacatez que me rodeava. O Fiat - era essa a marca do carro - parou frente ao paço e dele saíram dois homens para que rapidamente pudessem abrir a porta ao condutor. Percebi de imediato que se tratava de alguém importante, não só pelos poucos automóveis que até então tivera ocasião de ver em Lisboa, mas principalmente pela forma como era tratado. Detive-me a observar. As gentes locais acorreram prontamente, fazendo-lhe vénias e cumprimentos prolongados. Perguntei, pausadamente para que me pudesse entender, a uma mulher que passava, de quem se tratava. Ela, entre palavras e gestos, e num tom de reverência, apressou-se a esclarecer-me que se tratava do príncipe real D. Afonso, irmão do falecido rei. Era um homem alto, com uns olhos azuis que refletiam bonomia, bem vestido num estilo desportivo, com um elegante casaco de pele castanho. Senti um calafrio. Ainda hoje não sei explicar o que se passou mas fui subitamente acometida por um pressentimento. Continuo sem saber explicar bem o que se passou, pois não sou assim de arrebatamentos tão fortes, mas ao olhar para aquele homem tive a mais absoluta certeza de que ele havia, um dia, de mudar a minha vida." Mudo da voz de Nevada para a de Ana e pergunto como sabe que o encontro com D. Afonso foi assim.."Essa é uma parte dos 5% de ficção de que já falei. Diz-se que eles se conheceram numa festa em Cascais, mas não há provas. Então o que fiz foi ver onde andava D. Afonso quando Nevada esteve em Portugal em 1908 e fazê-los coincidir num local verosímil, como Sintra. E como soube por andava D. Afonso? Consultando o Diário de Notícias, que todos os dias publicava o que tinha feito cada membro da família real portuguesa. Como historiadora, tenho de agradecer ao seu jornal", conta Ana, por entre risos. O mesmo método, noutro ponto do romance, resultou em pôr o casal a passear no zoo de Lisboa..Chegam os cafés e é hora da despedida. Desejo a Ana que o livro seja um sucesso. "Sabe, o meu sonho é que esta minha história da Nevada e de D. Afonso um dia desse um filme americano", responde-me. Quem sabe? Hollywood não costuma desperdiçar boas histórias, sobretudo se tiver uma heroína/vilã americana e reis e príncipes pelo meio..O sinal Verde.› Queijo fresco.› 2 imperiais.› 2 peixe-espada frito com açorda.› fruta da época.› 2 cafés.Total: 24,5 euros