Kissinger, o sínico

Publicado a
Atualizado a

Para Henry Kissinger, uma guerra entre os Estados Unidos e a China é um luxo a que nenhum dos países se pode dar, e o resto do mundo também perderia muito se tal acontecesse. Parece uma evidência, mas o guru da diplomacia e da geopolítica falava do alto dos seus 94 anos, uma vida intensa que vai da adolescência na Alemanha nazi até aos dias de hoje como conferencista apreciado mundo fora, passando pelo protagonismo como secretário de Estado americano na década de 1970.

Sobre as relações entre os Estados Unidos e a China, Kissinger pode também falar de alto alegando as mais de cem vezes que visitou o gigante asiático, segundo contas do China Daily, jornal em inglês controlado pelo PC Chinês que relatou as suas afirmações num fórum em Nova Iorque cheio de reitores de universidades de ambos os países. A ouvi-lo na Colúmbia estava a vice-primeira-ministra chinesa, Liu Yandong.

Da centena de visitas que Kissinger fez ao antigo Império do Meio, nenhuma foi tão importante como a primeira, em 1971. Dela conhecem-se algumas fotos, como o almoço com pauzinhos que Kissinger teve com Chu En-lai, o primeiro-ministro com aura de mandarim que sempre procurou travar os excessos de Mao Tsé-tung, fundador da República Popular da China. Nessa missão, Kissinger conseguiu que a liderança de Pequim aceitasse receber Richard Nixon no ano seguinte, facto que alterou todos os equilíbrios da Guerra Fria, com a consumação da rutura entre Pequim e Moscovo e a aproximação entre a China comunista e os Estados Unidos.

"Quando a China e os Estados Unidos começaram por estabelecer a sua atual relação, a motivação era amplamente estratégica, para preservar a segurança", declarou o homem que é reconhecido como um sínico, mas cujos detratores preferem chamar de cínico, tal é a sua adesão aos princípios da realpolitik. "Hoje, os dois países podem procurar um conceito não de segurança mas de coevolução, no qual as duas grandes sociedades podem existir lado a lado, ocasionalmente perseguindo objetivos diferentes, mas fundindo-os numa proteção comum das necessidades e das oportunidades que são um imperativo da nossa época", acrescentou o académico. "O nosso desafio é encontrar uma forma para o excecionalismo americano e os sonhos da China produzirem uma nova ordem mundial para benefício de todos", concluiu.

No seu Da China, Kissinger de-senvolvia ideias semelhantes, notando que, se os Estados Unidos sempre quiseram exportar o seu modelo político, económico e social, já a China não pretende impor o seu, preferindo estabelecer relações que têm muito que ver com a hierarquia das outras nações.

Contudo, com a eleição de Donald Trump, o Destino Manifesto americano retrai-se e ganha espaço o Sonho Chinês, idealizado por Xi Jinping. Ou seja, a América parece afastar-se do liberalismo e optar pelo protecionismo numa época em que a China faz a escolha oposta. Esta mudança, ainda só teórica, pode afetar mais a ordem mundial do que "a mudança do centro de gravidade do Atlântico para o Pacífico" que Kissinger adivinha.

Veremos o que resulta da visita que hoje inicia Rex Tillerson à China. O secretário de Estado americano certamente terá a Coreia do Norte em mente, e os crescentes sinais de que Pequim começa a tomar distâncias de Pyongyang, mas a preparação da visita de Trump em novembro será o determinante da agenda, pelo que pode significar na relação entre as duas maiores economias mundiais.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt