Ministro associou acidentes ao consumo de álcool
15 novembro 2024 às 17h50
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"Causou um dano enorme a uma classe profissional". Maquinistas recusam acusações de Leitão Amaro

António Domingues, presidente do Sindicato dos Maquinistas, afirma ao DN que as declarações do ministro da Presidência, António Leitão Amaro, que associou os acidentes ferroviários ao consumo de álcool dos maquinistas, causaram um "dano" reputacional. "Demonstrou uma perfeita ignorância", critica o dirigente.

No final da reunião do Conselho de Ministros na quinta-feira, António Leitão Amaro, ministro da Presidência, afirmou que "não é muito conhecido, mas Portugal tem o segundo pior desempenho ao nível do número por quilómetro de ferrovia de acidentes que ocorrem" e que tem "um desempenho cerca de sete vezes pior do que a primeira metade dos países europeus", explicando que o Governo aprovou uma proposta de lei que reforça "as medidas de contraordenação para os maquinistas deste transporte ferroviário, criando uma proibição de condução sob o efeito de álcool".

Mas, ouvido pelo DN, o presidente do Sindicato dos Maquinistas, António Domingues, recusa as afirmações do ministro, que diz revelarem desconhecimento sobre os reais motivos da sinistralidade na ferrovia. E garante que os maquinistas são dos profissionais "mais escrutinados" do País.

As declarações do ministro da Presidência têm algum fundamento, no vosso entender?

As declarações do ministro só demonstram uma determinada ignorância que perspassa por alguns elementos da tutela. Presumo que foi o porta-voz daquilo que emanou do Conselho de Ministros e baralhou-se todo. Fez uma ligação que não devia ter feito, relacionando as questões de álcool com o ranking português na questão da segurança ferroviária, quando uma coisa não está ligada com a outra. O que é visível nos relatórios anuais de segurança do IMT é que, o facto de nós estarmos mal posicionados nesse ranking, tem essencialmente a ver com questões que dizem respeito à infraestrutura ferroviária e que não têm nada a ver com o pessoal operacional.

Como, por exemplo, invasão de linhas, desrespeito pelas passagens de nível?

Exatamente, sim. É isso que tem um grande impacto. E nada, absolutamente nada, a ver com questões, nem com questões do trabalho das operacionais, nem com questões dos operadores ferroviários. Isso tem a ver com infraestrutura e tem a ver com questões que também dizem respeito à tutela. O que o senhor ministro devia explicar é por que motivo há descarrilamentos na linha do Vouga, consecutivamente, ou por que há queda de pedras na linha do Douro. No inverno, quando os maquinistas circulam na linha do Douro, andam com o credo na boca porque nunca sabem quando é que uma barreira desmorona e pode haver um acidente grave. Com isso é que o senhor ministro se devia preocupar, ou com falhas nas comunicações, ou com limitações de velocidade não sinalizadas. Essas situações é que têm impacto. Ou então as colhidas, atropelamentos na via, ou ou suicídios. Neste último caso, são, obviamente, questões que dizem respeito à tutela porque é uma questão de saúde pública e não tem nada a ver propriamente com questões ferroviárias. Isso tem impacto nos rankings, bem como os acidentes nas passagens de nível. Tem também um grande impacto. Portanto, aquilo que o senhor ministro demonstrou foi uma perfeita ignorância daquilo que estava a dizer. Estamos à espera que, no mínimo, o ministro tenha a nobreza de caráter para vir clarificar aquilo que disse, porque causou uma mancha reputacional sobre uma classe profissional que não podemos admitir. Estamos à espera que ele tenha essa nobreza de caráter. Se não for ele que seja alguém de tutela que conheça o meio ferroviário, porque sabemos que na tutela há pessoas que conhecem o meio ferroviário. É isso que nós estamos à espera.

Até porque ontem [quinta-feira] enviaram uma mensagem ao ministro, certo? Foi-vos dada alguma estimativa de resposta?

Nada, absolutamente nada. Como acabei de dizer, estamos à espera que ele tenha essa humilidade de explicar e corrigir aquilo que foi feito, porque, a partir do momento em que há declarações feitas daquela forma, há um efeito mediático enorme. A bola de neve vai crescendo, a comunicação social vai replicando aquela declaração, e o mal está feito. Até ao momento, ainda não foi feito um desmentido, nem uma clarificação daquilo que queria dizer. Limitou-se a anunciar duas ou três medidas avulsas que não têm qualquer impacto, nem prevê nem o que quer que seja nos acidentes ferroviários, que não têm nada a ver com essa prevenção, que é necessária. No fundo mandou uma cortina de fumo enganando as pessoas. E, não sei, presumo que não tenha sido feito de forma propositada, porque isso seria eventualmente até um crime de difamação, mas foi feito de forma atabalhoada e fruto também de uma certa ignorância.

Os maquinistas têm um limite de taxa de álcool no sangue baixo, não é?

Sim, de 0.2 gramas por litro de sangue. Por isso é que não se percebe. E depois as pessoas são levadas ao engano. Quando alega que vai haver uma legislação que proíbe os maquinistas de conduzirem sob efeitos de álcool ou de estupefacientes, aquilo que pergunto é: desde quando é permitido aos maquinistas conduzirem sob o efeito de álcool ou de estupefacientes? É bem inferior ao comum dos condutores rodoviários particulares. É uma situação que não se percebe. Quando se fala em contraordenações, as contraordenações nem sequer serão para ser aplicadas aos maquinistas, mas aos operadores ferroviários, por questões burocráticas de certificação de segurança. Não tem a ver propriamente com os trabalhadores. Estava, absolutamente, fora do contexto, não percebeu nada daquilo que estava a dizer e causa um dano enorme a uma classe profissional. As pessoas sentem-se revoltadas. Estamos à espera que venha a terreiro (ou alguém por ele) para clarificar, definitivamente, aquilo que devia ter sido dito e não foi.

Vocês fazem testes periódicos ao controlo desse efeito do álcool? Como é que é feito?

Os maquinistas têm uma das profissões mais escrutinadas em Portugal. Para desempenhar a profissão, os maquinistas são submetidos, até aos 55 anos, a testes psicomotores, médicos e psicológicos, de três em três anos. A partir dos 55 anos, anualmente. É-nos exigido uma certificação profissional com exames escritos e práticos. Os controlos ao álcool são feitos de forma aleatória. Ou seja: há sempre funcionários da medicina do trabalho prontos a testar os maquinistas, que nunca sabem quando serão sujeitos a testes. Isto acontece aos pilotos e em muito poucas profissões mais. Somos escrutinados quase diariamente. E no âmbito da medicina do trabalho também. Somos escrutinados também nos hábitos alimentares. As empresas conhecem o hábito alimentar de cada maquinista. E fazemos testes ao álcool sempre que há um acidente. As empresas têm essa estatística e conhecem os números.