Tensões
29 abril 2024 às 07h14
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América Latina em transe com tensões entre países

México e Equador em conflito diplomático. Venezuela e Guiana em disputa territorial. Presidentes de Argentina e Colômbia em discussão pública. Quais as razões? E o que isso significa?

Um discreto funcionário da embaixada do México no Equador tornou-se o improvável protagonista do aumento das tensões na América Latina, uma região do globo em transe nos últimos meses: Roberto Canseco foi agredido e derrubado por um grupo de encapuzados que invadiram o local, na noite de sexta-feira, 5 de abril. Os encapuzados eram agentes da polícia equatoriana a cumprir ordens do presidente Daniel Noboa para retirarem à força Jorge Glas, um político de oposição condenado por corrupção, que se refugiara no espaço diplomático mexicano em Quito.

Andrés Manuel López Obrador, presidente do México, chamou o ato de “invasão” e de “violação” e rompeu relações com o Equador. Outros líderes regionais fizeram coro na condenação. E a Organização dos Estados Americanos (OEA) mostrou solidariedade com o México por 29 votos a favor e um contra, o do Equador. Noboa falou em “risco de fuga” para justificar a ação policial, sem dar mais detalhes ou apresentar provas.

Glas, que já cumpriu quatro anos de cadeia por envolvimento num escândalo de subornos com a construtora brasileira Odebrecht, tentou suicídio, segundo a advogada, antes de optar por uma greve de fome numa prisão em Guayaquil.

As tensões bilaterais na América Latina estão longe, porém, de terminar aqui. Uma semana depois, Gabriel Boric, presidente do Chile, chamou o embaixador chileno em Caracas para consultas, depois de o ministro dos Negócios Estrangeiros venezuelano dizer que o gangue Tren de Aragua, fundado na Venezuela, era “ficção mediática”.

Boric chamou o embaixador chileno em Caracas para consultas, depois de o chefe da diplomacia venezuelano dizer que o gangue Tren de Aragua, fundado na Venezuela, era “ficção mediática”.
EPA

Liderada pelo temido Niño Guerrero, conta com mais de 5000 membros, identificáveis por usarem roupas alusivas à equipa de basquetebol ChiAcago Bulls, opera em quase toda a América do Sul, com ênfase no Chile, e mantém aliança com a organização brasileira Comando Vermeho.

Meses antes, Javier Milei, presidente da Argentina, chamara Gustavo Petro, líder colombiano, de “assassino comunista” que estava “a afundar” o país, em resposta a declarações de Petro a lamentar a vitória do ultraliberal nas eleições argentinas.

As relações de Buenos Aires com o seu principal parceiro comercial, o Brasil, também não estão perfeitas depois de, em campanha, Milei ter chamado o hoje seu homólogo Lula da Silva “de ladrão”. A ministra dos Negócios Estrangeiros argentina, porém, tem trabalhado para diminuir as tensões.

“ESSEQUIBO É NOSSO”

“Essequibo é nosso”, tem repetido Maduro, que quer que o tema seja central nas eleições presidenciais venezuelanas marcadas para outubro.
AFP

Em dezembro do ano passado, entretanto, a Venezuela organizou um referendo que aprovou a anexação ao país da região de Essequibo, que representa hoje 75% do território da vizinha Guiana. Essequibo, com 159,500 km2 (Portugal tem 92,212), foi atribuído ao Reino Unido em 1899 como herança dos Países Baixos, de acordo com o Laudo de Paris, resolução considerada fraudulenta pela Venezuela. Na época, a Guiana fazia parte do império britânico.

Em 1966, quando o processo de independência das colónias do Reino Unido estava em curso, a diplomacia de Caracas conseguiu que Londres reconhecesse o direito a discutir a posse da região no chamado Acordo de Genebra, o que foi lembrado por Nicolás Maduro, líder da Venezuela, após a descoberta em 2015 de campos vasos de hidrocarbonetos no litoral de Essequibo pela petrolífera Exxon-Mobil que fazem da Guiana o país que mais cresce ao ano na América do Sul.

“Essequibo é nosso”, foi dizendo nos últimos meses Maduro, que quer que o tema seja central nas eleições presidenciais venezuelanas marcadas para outubro e, por isso, passou por cima da decisão do Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, de proibir o referendo. Observadores internacionais na região ainda temem um conflito até porque o poderio militar da Venezuela é incomparavelmente superior ao da Guiana, resumido a 3400 agentes da polícia, e Georgetown pediu, por isso, apoio ao Departamento de Estado dos EUA, o que motivou repúdio venezuelano.

Com tantas tensões no subcontinente, a cimeira marcada para os dias seguintes à invasão da embaixada mexicana em Quito da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), organização criada em 2011 em Caracas para servir de alternativa à OEA, fundada em 1948 em Washington sob a influência dos Estados Unidos, era aguardada com muita expectativa. Mas apenas 10 líderes dos 33 países integrantes do organismo compareceram, deixando sem efeito o pedido de Obrador para uma denúncia formal contra Noboa no Tribunal Internacional de Justiça.

A CELAC, aliás, é palco da tensão política na região: os países hoje governados à esquerda apoiam a gestão da presidente hondurenha Xiomara Castro, aqueles sob lideranças de direita acusaram-na de manifestar opiniões pessoais, nomeadamente na guerra Israel-Hamas, em nome do organismo.    

ESPELHO DO MUNDO

Como a América Latina chegou a 2024 no meio de tantas tensões bilaterais? Especialistas ouvidos pelo DN falam em reflexo regional dos conflitos globais. 

“Eu acredito que estas tensões na América Latina refletem o contexto geopolítico internacional na questão das polarizações, dos extremismos, no avanço da extrema-direita que acontece na Europa, nos Estados Unidos, no Reino Unido, na Índia ou na Indonésia”, diz Roberto Georg Uendel, professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing.

“É um dos efeitos, como dizia o geógrafo brasileiro Milton Santos, da chamada ‘globalização perversa’, porque os movimentos não são independentes, as ondas de violência, os conflitos internos e as animosidades entre países vizinhos latino-americanos são reflexo do mundo”.

“Na região periférica da América Latina, há um pendor mais cosmopolita e outro pendor mais nacionalista, que pode ser de direita ou de esquerda, porque tanto Maduro como [o líder da extrema-direita brasileira] Jair Bolsonaro têm simpatia pelo russo Vladimir Putin, por exemplo”, acrescenta Vinícius Vieira, especialista em Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado.

“Os desentendimentos bilaterais na região servem, no campo global, para os líderes dos diversos países indicarem de que lado eles estão e, no campo doméstico, mobilizarem forças”, diz ainda. E exemplifica: “Milei ataca Petro porque quer reforçar, como Nayib Bukele em El Salvador, um laço com a internacional-nacionalista de direita, que muitos até chamam de internacional-fascista, para sinalizar a Donald Trump e outros líderes da área que eles estão contra o cosmopolitismo”.

O argentino Milei chamou o colombiano Gustavo Petro de “assassino comunista” acusando-o de estar “a afundar” o país.
AFP

ELEIÇÕES INCENDIÁRIAS

“Além desse pano de fundo que é global”, opina Vieira, “temos a questão mais imediata e conjuntural que passa pelas muitas eleições deste ano, onde os candidatos nos diferentes países buscam tirar dividendos das questões globais, como Maduro faz na Venezuela ou Obrador faz no México”. “Ao tentar eleger uma sucessora, Obrador reforça a atitude antidireita neste conflito com o Equador que, por sua vez, tendo em conta o pano de fundo global, se sente mais à vontade para tomar atitudes mais nacionalistas à direita”, afirma o académico.

“A profusão de eleições pode contribuir para o aumento das questões no subcontinente é o da profusão de eleições”, concorda Uebel. “Ultimamente, a nível mundial mas mais especificamente na América Latina temos observado uma polarização muito grande nos pleitos nacionais. Aconteceu no Chile, na Argentina, no Brasil, no Paraguai, no México, no Equador, no Peru, talvez a única exceção seja o Uruguai, que sempre conseguiu ser progressista vença a esquerda ou a direita, os extremos nunca ganham muito espaço lá”.

“Do ponto de vista científico, como já até escrevi, a perspectiva é a região sofrer com esses impactos de uma fragmentação da multilateralidade, em que os países se voltam para questões domésticas e acabam gerando animosidades ou dificultando processos de cooperação internacional”, completa.

Víctor Vega, jornalista e consultor de comunicação mexicano, escrevia na revista Fortuna a propósito das 13 eleições previstas para este ano no continente, além da norte-americana entre Trump e Joe Biden, que os processos eleitorais iriam decorrer “no meio de um complexo panorama originado em múltiplos fatores locais, regionais e globais, com temas sensíveis na agenda, como a debilidade económica e a volatilidade inflacionária internacional, a crise migratória, da segurança ou do narcotráfico”.

“No tabuleiro político-social”, continuava o colunista, “observam-se riscos como a hiperpolarização tóxica, a contaminação informativa, a ameaça de radicalização ideológica à esquerda e à direita e a ascensão de regimes autoritários”.

OCIDENTE VS SINO-RÚSSIA

Outro fator que Vinícius Vieira observa é a formação de “um grupo ocidental e de outro, digamos, sino-russo”. “Como ocorreu na Guerra Fria há forças pró-ocidente e forças pró-oriente, o que gera tensões geopolíticas fortes na região que repercutem e gerem embates na política doméstica”, explica.

“Entretanto, não são blocos muito bem alinhados: há uma direita na região pró-ocidente e anti-China mas que, curiosamente, gosta da Rússia de Putin e outra direita que é pró-mercado, mas de forma tosca, como a Argentina de Milei”. Além disso, “há também uma esquerda na região pró-democracia mas alinhada à China e critica da hipocrisia do ocidente, como o PT de Lula, no Brasil, e outra esquerda não democrática, como a de Maduro, na Venezuela”.