Sociedade
07 junho 2024 às 15h06
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José Sócrates fala no Brasil sobre a lei das drogas portuguesa

“Mudamos o paradigma’, diz ex-primeiro-ministro em conferência sobre Segurança, com o ex-mayor de Nova Iorque, quatro ministros de Lula e três governadores estaduais.

José Sócrates, ex-primeiro-ministro de Portugal, participou, quinta, 6, e sexta-feira, 7, num evento, em Brasília, intitulado Seminário Internacional sobre Segurança Pública, Direitos Humanos e Democracia, para o qual foi convidado a falar sobre a comumente chamada “Lei das Drogas”, a resolução do Conselho de Ministros de 26 de maio de 1999 que assinou, enquanto ministro-adjunto do primeiro-ministro com a tutela da Toxicodependência, que ainda hoje é considerada revolucionária.

“A lei foi revolucionária porque desentupiu os tribunais, desenvolveu o sistema de saúde e passou a tratar, sem preconceito, o problema da toxicodependência”, disse Sócrates ao DN, após a conferência.

“Entretanto, esta lei seria muito mais difícil de aprovar hoje porque, em todo o mundo, o ideal progressista de fazer reformas, de aumentar a liberdade individual, de que podemos ir mais além, está em recuo, hoje o que está mais em voga são ideias, como a de um ex-presidente do Brasil a dizer recentemente que o ideal seria o país voltar atrás uns 50 a 60 anos”, continuou Sócrates. 

No texto de cerca de 60 páginas da resolução do Conselho de Ministros de 26 de maio de 1999 que aprova a estratégia nacional de luta contra a droga foi o ponto número dois das “opções estratégicas” que correu o mundo e foi considerado “um sucesso enorme”, até pelo conservador Instituto Cato, dos Estados Unidos, e pela Câmara dos Lordes, do Reino Unido. Nesse ponto determinava-se “descriminalizar o consumo de drogas, proibindo-o como ilícito de mera ordenação social”.

Na conferência, Sócrates explicou que “a partir daqui o consumo de droga passou a não ser crime mas não passou a ser legal, ou seja, passou a ilícito, como as infrações de trânsito, por exemplo”. “Não sei se vocês têm ideia da mudança cultural e o efeito imediato que esse ponto da lei, por não existir ainda no mundo, gerou”.

“Esse efeito imediato foi retirar o consumidor de droga do contacto com juízes, procuradores, polícias, ou seja, aquilo que entupia os nossos tribunais, que passaram apenas a cuidar de processos sobre tráfico de droga”, continuou o ex-governante.

“E além de libertar o sistema judicial e ocupá-lo apenas daquilo que merece uma punição penal”, reforçou Sócrates, “isso resultou na tomada de consciência dos consumidores de drogas de que não seriam mais vistos pelo estado com agressividade e sujeitos a condenações como acontecia nos terríveis anos 80 e 90”.

“A lei de luta contra a droga muda o paradigma porque passa a considerar o consumidor de drogas um doente e não um criminoso, determina que o consumidor de drogas precisa de ajuda e não de violência estatal, dessa forma, passamos a combater a doença em vez de combater o doente, e, por isso, pela primeira vez, muitos toxicodependentes passaram a ir a serviços de saúde públicos porque já não sentiam o estigma anterior, em vez disso, sentiam que o estado estendia uma mão”.

“Finalmente, passamos ainda do paradigma de que deveríamos ter uma sociedade livre de droga para outro, menos ambicioso mas mais realista, de tentar minorar os danos que ela provoca na sociedade, nessa perspectiva criamos programas como as trocas de seringa, a introdução de programas de metadona, as salas de chuto, ou seja, tratamos do tema sem nenhum preconceito”.

O ex-primeiro-ministro e ex-ministro adjunto de António Guterres fez questão de sublinhar a importância do hoje secretário geral da ONU na decisão. “Não posso deixar de me referir ao primeiro-ministro da época, António Guterres, porque ele teve a coragem de, a seis meses de eleições, me autorizar a apresentar, e aprovar, esta proposta em Conselho de Ministros”.

As críticas à época, segundo recorda Sócrates, partiram sobretudo do CDS, o partido mais à direita do parlamento naqueles dias. “Como calculam, argumentaram que a lei iria estimular o consumo e que Portugal se tornaria um destino turístico de droga, ora, 25 anos depois, o que tenho a dizer é que isso é tudo uma balela como os números provam”.

Sócrates falou num seminário promovido, segundo os organizadores, “num momento em que a segurança pública na América Latina e o crescente avanço das organizações criminosas, que tanto perturbam e ameaçam as democracias do mundo, é decisivo”.

Organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa e pelo Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, com a coordenação de Walfrido Warde, Francisco Mendes, Benedito Mariano, Rafael Valim, Pedro Serrano e Raul Jungmann, que foi ministro da Defesa de Michel Temer, o evento contou com a presença de dezenas de autoridades.

Do Governo Lula estiveram Ricardo Lewandowski, ministro da Justiça, Vinícius de Carvalho, ministro da Controladoria Geral da União, Jorge Messias, advogado-geral da União, cargo com estatuto de ministro, e Sílvio de Almeida, ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, além de três governadores, Gladson Cameli, do Acre, Cláudio Castro, do Rio de Janeiro, e Ronaldo Caiado, do Goiás, dado como eventual candidato presidencial em 2026 em substituição do inelegível Jair Bolsonaro.

O General Tomás Paiva, comandante do exército, Gilmar Mendes, juiz do Supremo Tribunal Federal, Bruno Dantas, presidente do Tribunal de Contas, Guilherme Boulos, ex-candidato presidencial e candidato a prefeito de São Paulo, e Bill de Blasio, ex-mayor de Nova Iorque, que abordou a liberação do comércio e consumo de manhã na cidade, foram outros dos palestrantes.