Arábia Saudita
16 junho 2024 às 19h42
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Quase dois milhões de peregrinos muçulmanos "apedrejam o diabo" às portas de Meca

A peregrinação anual do 'hajj', um dos cinco pilares do Islão, começou na sexta-feira em Meca, na Arábia Saudita, sob um calor sufocante e já provocou pelo menos 19 mortes. Muçulmanos celebram a festa do sacrifício

Quase dois milhões de peregrinos realizaram este domingo o último grande ritual do hajj (peregrinação anual a Meca), o "apedrejamento do diabo", junto a Meca, na Arábia Saudita, num dia em que os muçulmanos de todo o mundo celebraram o feriado de Eid al-Adha, ou festa do sacrifício.

No final de uma das maiores reuniões religiosas anuais do mundo, o governo de Amã anunciou que pelo menos 14 peregrinos jordanos tinham sucumbido a uma "onda de calor extremo", sublinhando o elevado custo físico dos rituais anuais que, nos últimos anos, têm ocorrido durante o verão saudita, que é um autêntico forno.

A partir do amanhecer, os cerca de 1,8 milhões de muçulmanos que este ano realizam a grande peregrinação a Meca atiraram sete pedras a cada uma das três paredes de betão que simbolizam o diabo no vale de Mina, situado fora da cidade mais sagrada do Islão.

O ritual comemora o apedrejamento do demónio por parte de Abraão nos três pontos onde se diz que Satanás tentou dissuadi-lo de obedecer à ordem de Deus para sacrificar o seu filho.

Ao longo dos anos, ocorreram vários acidentes trágicos por esmagamentos coletivos em Mina, o mais recente dos quais em 2015, quando cerca de 2300 fiéis foram mortos no pior desastre registado na celebração do hajj.

Desde então, o local foi renovado para facilitar o movimento das grandes multidões. No entanto, as estradas que conduzem aos muros de betão estavam cheias neste domingo, com alguns peregrinos a debaterem-se sob o sol da manhã. Pelo menos dois peregrinos foram vistos deitados na berma da estrada.

"É muito difícil, não conseguimos encontrar transporte. Já não me consigo levantar", diz Ahmed Alsayed Omran, um reformado egípcio de 70 anos, sentado no passeio. As temperaturas subiram muito acima dos 40 graus Celsius ao longo da semana e, no sábado, atingiram 46 graus no Monte Arafat, onde os peregrinos fizeram horas de orações ao ar livre.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Jordânia disse no domingo que, para além dos 14 peregrinos jordanos que morreram "depois de sofrerem insolação devido à onda de calor extremo", 17 outros estavam "desaparecidos".

Também o Irão comunicou a morte de cinco peregrinos, mas não especificou a causa.

A Arábia Saudita não forneceu qualquer informação sobre as vítimas mortais.

Durante o hajj do ano passado, pelo menos 240 pessoas, muitas das quais oriundas da Indonésia, morreram, de acordo com os números anunciados por vários países, que também não especificaram as causas da morte.

Mais de 1,8 milhões de pessoas acorreram ao hajj, a peregrinação anual a Meca
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Muito, muito calor

Os fiéis fizeram o seu melhor para enfrentar as condições difíceis, aproveitando o que para muitos foi uma oportunidade única na vida de rezar nos santuários mais sagrados do Islão.

"É fisicamente extenuante, mas é muito retemperador espiritualmente. Para mim, estive sempre numa espécie de encantamento", diz o canadiano Neron Khan, de 49 anos.

Durante parte da peregrinação, "estive numa espécie de situação de exaustão pelo calor", reconhece. "Mas tive de continuar porque estávamos rodeados por toda a gente. E era preciso aguentar".

Um centro de tratamento perto do Monte Arafat registou 225 casos de stress térmico e fadiga até ao momento, informa a agência noticiosa oficial saudita.

"Estava muito, muito calor", diz à AFP Rohy Daiseca, um gambiano de 60 anos que vive nos Estados Unidos. "Alhamdulillah (louvado seja Deus), pus muita água na cabeça e ficou tudo bem".

Amal Mahrouss, uma mulher de 55 anos do Egipto, diz-se "feliz para além das palavras" e refere que o hajj mostra "que somos todos iguais, que não há diferenças entre os muçulmanos de todo o mundo".

Um dos cinco pilares do Islão, o hajj - a grande peregrinação a Meca - deve ser realizado pelo menos uma vez por todos os muçulmanos que disponham de meios para o fazer.

Este ano, o número de 1,8 milhões de peregrinos é semelhante ao do ano passado e as autoridades sauditas afirmaram no sábado que 1,6 milhões vieram do estrangeiro.

Entre estes, contam-se 17 500 sírios, de acordo com Badreddine Mansour, diretor de uma agência saudita especializada em peregrinações.

Para os sírios que vivem em zonas controladas pelo governo, o hajj esteve durante muito tempo fora de alcance, mas a reintegração do governo do Presidente Bashar al-Assad no seio da comunidade árabe, no ano passado, permitiu a realização de voos directos para a peregrinação.

Para Ghada Rifai, 60 anos, uma professora reformada de Damasco, isto significa "um sonho tornado realidade".

Crentes muçulmanos rapam a cabeça durante o feriado da festa do sacrifício
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Festa do sacrifício

O ritual de apedrejamento de domingo coincidiu com o feriado muçulmano de Eid al-Adha, ou a festa do sacrifício, que honra a vontade de Abraão de sacrificar o seu filho antes de Deus oferecer uma ovelha.

Os fiéis costumam abater uma ovelha e oferecer parte da carne aos necessitados.

As festividades foram ensombradas pela guerra entre Israel e o grupo militante palestiniano Hamas na Faixa de Gaza.

"Não sentimos o feriado de Eid porque os nossos irmãos em Gaza são oprimidos pela ocupação (israelita)", diz Najem Nawwar, um peregrino egípcio de 43 anos.

O Rei Salman convidou 2.000 palestinianos para a hajj a expensas suas, incluindo familiares de habitantes de Gaza que procuraram refúgio noutros locais. Mas as autoridades sauditas avisaram que não seriam tolerados slogans políticos.

Isso não impediu que muitos fiéis manifestassem a sua solidariedade para com os palestinianos. "Rezamos por eles... e pela libertação da Palestina, para que tenhamos dois feriados em vez de um", diz Wadih Ali Khalifah, um peregrino saudita de 32 anos.

O apedrejamento do diabo é um dos rituais da peregrinação anual dos muçulmanos
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