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Sociedade
22 agosto 2024 às 00h32
Leitura: 17 min

Rendas congeladas: senhorios que pediram compensação sem resposta do Estado

Após um processo caótico, senhorios que conseguiram pedir a compensação pelo congelamento definitivo das rendas não estão a receber resposta nos 30 dias do prazo legal. Reunidos num grupo de FB, querem avançar com queixa para a Provedora de Justiça e uma petição ao parlamento.

"Já passaram 50 dias desde a submissão do meu pedido. Submeti-o no dia 1 de julho – faltavam documentos que não era possível obter na altura e que enviei mal ficaram disponíveis – e até agora a resposta que obtenho é para prestar atenção aos emails… Que não chegam, apesar de a lei indicar 30 dias como limite para a resposta. E o pior é que não nos dizem nada.”

Este é um dos testemunhos no grupo de Facebook “Senhorios – rendas anteriores a 1990”, no qual proprietários nessas circunstâncias, e que estão a tentar obter a compensação legislada no âmbito do Programa Mais Habitação como contrapartida do “congelamento definitivo” dessas rendas, dão dicas uns aos outros sobre como navegar um processo cujo prazo se iniciou a 1 de julho e que, acusam, “foi feito para dificultar ao máximo a vida aos senhorios, para que as pessoas desistam ante toda esta burocracia e o Estado compense o menor número possível. Os senhorios continuam a ser um saco de pancada. Uma vergonha!”

O testemunho citado, de 20 de agosto, é de Irene, 59 anos, proprietária de um T2 na Amadora herdado dos pais e pelo qual o inquilino, que entrou em 1967, paga 53 euros. Irene conta receber 144 euros de compensação – a diferença entre a renda atual e os 197 euros que resultam da aplicação da fórmula prevista na lei, baseada no valor patrimonial tributário (VPT) do imóvel. O qual, no caso deste T2, não chega a 37 mil euros (os valores patrimoniais muito baixos são frequentes nos edifícios antigos; por essa razão uma boa parte dos proprietários com rendas congeladas não terá sequer direito a compensação, como um estudo encomendado pelo anterior governo antecipava, sendo a média mensal estimada da subvenção estatal de apenas 161 euros).

Irene suspira: “Pago impostos, condomínio, seguros, etc, perco dinheiro”. Os esperados 144 euros mensais não irão melhorar muito significativamente a situação, mas até agora nem sequer sabe se o seu requerimento foi considerado válido; apesar de já ter expirado o prazo legal, o Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), encarregado de gerir o processo, não a esclarece – nem ao DN, que o questionou esta terça-feira sobre estes atrasos, o número de requerimentos entrados até meio de agosto e a quantos deu resposta.

Maria, 37 anos, está na mesma situação de Irene. Proprietária de um T3 em Oeiras com 80 m2 cuja inquilina, que ali reside desde 1975, paga 128,33 euros, espera receber uma compensação mensal de 185,89 euros (o VPT do locado é 56 560 euros, 1/15 do VPT são 3770,66 euros, que a dividir pelos doze meses do ano dá 314,22 euros, aos quais se subtrai a renda que a inquilina paga). Entregou o requerimento a 15 de julho. Mas 35 dias e duas solicitações de esclarecimento depois continua na mesma.

“A grande maioria dos senhorios nem consegue fazer o pedido”

São vários os proprietários que comentam não ter recebido sequer uma informação sobre o estado do processo. “Já ficava contente, seria o mínimo esperado”, diz, irónica, Cristina, que tem, em compropriedade com outros herdeiros, sete inquilinos anteriores a 1990 e se viu aflita para submeter os pedidos correspondentes, já que até 24 de julho o formulário disponível no site do IHRU só permitia efetuar um pedido por endereço de email.

Fez o primeiro requerimento a 16 de julho; quando tentou fazer o seguinte recebeu a mensagem “endereço de email introduzido já está registado, tendo o respetivo inquérito sido dado como terminado.” Pediu ajuda no grupo e um dos membros deu-lhe a solução: “Usei vários endereços de email, um para cada pedido. Resultou”. Inconformada – “No meu caso seriam 14 endereços de email (sete inquilinos, dois herdeiros), quem tem de solucionar os problemas não somos nós, não cabe na cabeça de ninguém não equacionarem quem tem mais que um inquilino” –, Irene  ligou para o IHRU. De lá explicaram-lhe que “a plataforma não estava preparada para vários inquilinos” e que na semana seguinte “o problema estaria resolvido”. Perguntou se tal queria dizer que só poderia apresentar os pedidos no fim do mês, perdendo a compensação relativa a julho; a resposta, conta, foi de que “esperavam que não acontecesse”.

A 26 de julho, questionado pelo DN sobre as dificuldades de submissão dos requerimentos e o número até então submetido, o ministério das Infraestruturas e Habitação admitia apenas um “problema informático”: “O problema informático que sobrecarregou o sistema informático do IHRU ficou resolvido ontem, 25/07, pelas 12h, pelo que o processo de submissão de pedidos está a decorrer normalmente”. Adiantava também que até então haviam dado entrada no IHRU apenas 850 pedidos de compensação – uma fração ínfima do universo estimado de arrendamentos com rendas congeladas, mais de 100 mil.

No grupo dos senhorios no FB, o número, que foi divulgado mais tarde pelo governo, ocasionou comentários sarcásticos: “O tom destas notícias é de que desde início de julho está disponível uma fantástica compensação aos senhorios e que apenas 850 senhorios a solicitaram. Quem não esteja dentro do assunto fica a achar que somos todos tão ricos, por sermos proprietários, que nem nos damos ao trabalho de requerer aquilo a que temos direito. Isto é tudo um absurdo e a comunicação social ajuda à festa. A grande maioria dos senhorios nem consegue fazer o pedido por inúmeras razões e não é que não queiram a compensação, mesmo sendo esta apenas migalhas.”

De facto, como resulta da leitura dos posts e comentários no grupo, a maioria dos membros esteve semanas a tentar reunir os documentos exigidos, nomeadamente o comprovativo do pedido de isenção de IMI e o comprovativo da data de celebração do contrato de arrendamento – ambos da responsabilidade da Autoridade Tributária (AT).

No que respeita ao segundo, os proprietários não conseguiam “descarregá-lo” do site, porque essa operação não estava disponível. Perante os protestos dos senhorios, a AT ou não respondia ou informava que tinham de ir à repartição de Finanças onde o contrato fora depositado pedir uma cópia autenticada (que teriam depois de transformar em documento digital, já que todo o processo tem de ser submetido digitalmente); houve até quem fosse confrontado com a exigência de pagamento da cópia do contrato.

O próprio IHRU, apesar dos protestos da Associação Lisbonense dos Proprietários – que em comunicado no final de junho antecipou que o processo seria “um caos” devido à total ausência de informação  –, só colocou no seu site referência ao pedido de compensação no último dia de junho, e o link do formulário para o efeito só ficou ativo no início da tarde de 1 de julho. E a partir daí foi um ror de trapalhadas: não só não aceitava mais que um pedido por cada endereço de email, como, caso  o senhorio não dispusesse de assinatura digital, exigia um comprovativo de IBAN – número de identificação bancária –  com reconhecimento notarial de assinatura  (exigência que deixou cair antes do final de julho),  dando informações contraditórias: a uns garantia que em caso de compropriedade bastava um proprietário pedir em nome de todos, a outros dizia que cada um tinha de pedir a compensação separadamente.

“Mesmo tendo o curso de Direito vi-me grega para tratar disto”

Quanto à AT, só a 4 de julho disponibilizou online um formulário para que se pudesse requerer a isenção de IMI (depois de, como o DN noticiou no final de junho, recusar esclarecimento aos proprietários que a contactaram previamente para saber como obter o referido comprovativo, facto para o qual o ministério das Finanças, confrontado pelo jornal, se eximiu de dar explicações).
Mas, comenta a criadora do grupo no FB, Suéli de Carvalho, o formulário para o pedido do comprovativo de isenção de IMI foi “tão bem escondido” que já nem se lembra de como o descobriu: “Não estava nos pedidos de isenção, estava nos destaques”. Foi, explica ao DN, exatamente por se dar conta da  dificuldade do processo que decidiu criar o grupo de Facebook. “Mesmo tendo o curso de Direito vi-me grega para tratar disto. Pensei que se fosse a minha mãe a querer pedir a compensação não iria conseguir, e quis ajudar. O proprietário de uma fração do mesmo prédio que a minha, também com renda congelada, não sabe por onde começar, não sabe mexer muito bem no computador. Acho horrível este processo ser online. Se as pessoas com mais de 65 anos não são obrigadas a passar recibos eletrónicos, como é que neste processo têm de fazer tudo por via digital? Não faz sentido.”

Com 46 anos, Suéli é proprietária de um apartamento em Vieira do Minho que o pai, emigrante na Alemanha, comprou nos anos 1970. A ideia era a família viver lá quando regressasse, mas entretanto o pai resolveu arrendá-lo. O arrendamento iniciou-se em setembro de 1977. “Só que o meu pai adoeceu e foi preciso voltar, e a minha mãe com a pressa comprou outra casa. Quando quiseram pôr uma ação em tribunal para a inquilina sair perderam, porque tinham a outra casa. O meu pai morreu em 1991 e a minha mãe doou a casa às duas filhas, mas nenhuma de nós a pôde usar.”

O apartamento, um T3 de 99 metros quadrados, tem VPT de 60 mil euros, pelo que a subvenção respetiva deverá ser de 113 euros. “Quando comecei as atualizações de renda, em 2006 – foi a primeira vez que foi possível atualizar, com o regime de Novo Arrendamento Urbano [apresentado por António Costa, então ministro da Administração Interna do Governo Sócrates]  – a inquilina pagava 32 euros. Fiz atualizações sempre que pude, só assim a renda chegou aos 220.”

Experimentou colocar os dados do imóvel no Programa de Arrendamento Acessível, e o valor indicado para a renda nesse programa existente desde 2019, no âmbito do qual os proprietários beneficiam de isenção total de IRS por praticarem rendas mais baixas que as “de mercado” foi de 609 euros. Suéli  ri: “Quem me dera. A renda total que vou receber, mesmo com a compensação, é quase metade. E entretanto vivo com a minha mãe porque não consigo comprar uma casa nem arrendar.”

“Não posso ser prejudicada pela incompetência da Autoridade Tributária”

No grupo, há quem proponha uma petição à Assembleia da República para revogação do congelamento das rendas, quem anuncie queixa à Provedora de Justiça e quem fale em recorrer aos tribunais, com vista a chegar ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, o qual em várias decisões condenou os Estados por considerar as rendas congeladas “um sacrifício desproporcional” dos senhorios e uma violação do respetivo direito à propriedade.

“Quem não se sente não é filho de boa gente e os proprietários que suportam estes contratos já levaram pancada que chegue”, diz um dos membros, que anuncia ter criado um endereço de email para “saber quantos somos e trocarmos algumas ideias”.

Já a administradora do grupo perguntou num post se não será boa ideia criar uma associação dos senhorios com rendas congeladas. Teresa, uma das proprietárias mais ativas no grupo, concorda: “De alguma forma, parte da culpa de toda esta situação se manter ao longo de tanto tempo também será nossa. Até agora os senhorios, enquanto grupo, não se organizaram, não contestaram estas políticas. Está na hora de nos fazermos ouvir e de mudarmos esta situação. Temos o direito de ser tratados com equidade face aos outros senhorios com rendas atuais. É uma questão de justiça”.

Com 62 anos, Teresa diz-se “senhoria de terceira geração” por ter herdado do avô e do pai o apartamento T3 de 115 metros quadrados em Benfica cuja inquilina, tendo entrado em 1978, paga 395 euros. “Sou provavelmente das proprietárias do grupo que recebe uma renda mais alta”, admite. Quantia à qual espera somar uma compensação acima de 200 euros, já que o VPT é de 110 mil euros. Mas cuja solicitação, garante, lhe transformou “o mês de julho num inferno”: “Perdi dias e dias a tentar reunir os documentos necessários.”

O seu é um bom exemplo do atraso que a AT causou nos pedidos: tendo solicitado o comprovativo de isenção do IMI a 6 de julho, 23 dias, duas reclamações (a 17 e 22 de julho), e um novo pedido (a 27 de julho) depois, ainda não obtivera o documento. Decidiu assim, face ao exemplo de outros membros do grupo (como Irene, citada logo no início do artigo), e a conselho de quem a atendeu no IHRU, dar entrada do pedido de compensação sem o documento da AT. Fê-lo a 29 de julho, tendo de seguida, a 10 de agosto, enviado um email ao instituto anunciando que vai apresentar queixa à Provedoria de Justiça.
Terá sido, comenta ao DN, remédio santo: “A 13 de agosto a AT enviou-me finalmente o comprovativo”. Que por sua vez enviou para o IHRU. Mas, questiona, “será que isto significa que não vou receber o mês de julho? A lei diz que o pagamento só é devido a partir da data da submissão do pedido da compensação, mas se não receber é uma injustiça, porque não posso ser prejudicada pela incompetência da AT.”

Não sendo claro até agora se o pagamento é devido apenas a partir do dia em que o pedido é submetido ou se qualquer requerimento feito em julho, se contendo os elementos necessários e respeitando a uma situação enquadrada na lei, dá direito a receber a compensação referente a todo o mês, é menos claro ainda se vão ser tidos em consideração os atrasos e insuficiências quer da AT quer do IHRU.

O DN questionou quer o ministério das Infraestruturas e Habitação (a 6 de agosto) quer o IHRU (a 20 de agosto) sobre como vai ser dirimida a responsabilidade da AT e do IHRU no atraso na entrada de pedidos, mas até ao fecho deste texto não houve reação.

Por este andar, a dúvida só será esclarecida quando o IHRU der resposta aos senhorios.