Religião
12 maio 2024 às 07h57
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Fátima: a moda das festas que ajudam na peregrinação

No troço entre Coimbra e Pombal pegou a moda da “festa do peregrino”. Depois do camião dos gémeos Ferreira, chegou a tenda de Secundino. Vários artistas do Minho juntaram-se ao caminho, com pontos de apoio transformados em arraiais.

Catarina Dias partiu de Montalegre há 9 dias. Se tudo correr como previsto, ela e o grupo de 49 companheiros em peregrinação a Fátima chegarão à Cova da Iria bem a tempo das celebrações do 13 de maio. A organização pertence a Chaves, mas a composição é diversa, incluindo gente de Boticas e Valpaços. É quase uma da tarde de sexta-feira, estão 31 graus, quando o grupo faz uma paragem à beira do IC2, junto ao camião dos gémeos Ferreira, do Marco de Canaveses, que há 31 anos cumprem a promessa de apoiar os peregrinos. Este ano, o espaço dos Hiper Gémeos tem novidades: além do porco no espeto, das febras, bolos e bolachas, presunto a perder de vista e água para matar a sede, anuncia-se a “festa do peregrino”. 

Há artistas populares, música para quem quiser dançar. Catarina reconhece dois amigos de infância: Rafael e Francisca, que são afinal o duo Toka e Dança, em cima do palco improvisado num canto do camião. E ela, que é engenheira civil de profissão e música de paixão (integra o grupo Os Lordes, de Montalegre) pega na concertina e faz o gosto aos dedos. O grupo que a acompanha aplaude. “Vamos lá dançar!”, incentiva Catarina. Com ela vem também a irmã gémea, naquela que é a sua primeira peregrinação. Ninguém diria que nos últimos 9 dias percorreu, a pé, os cerca de 300 km que separam a sua terra daquele descampado à beira do IC2, no lugar de Relvão, freguesia da Redinha, próximo de Pombal. 

Mais tarde, diz ao DN que esta está a ser uma experiência intensa. “Venho sobretudo em sinal de gratidão. E parece-me importante vir e dar um sinal aos jovens no sentido de lhes mostrar que precisam de ser mais humanos”. Tem 25 anos e é uma das mais jovens do grupo. Considera iniciativas como esta “muito valiosas, até porque muita gente vem em sofrimento, e a música é uma maneira de o combater”. Arminda Pinto, 41 anos, companheira de viagem, alinha na mesma opinião. Também ela faz o caminho pela primeira vez, sendo que veio propositadamente da Suíça para o fazer. Queixosa dos joelhos e dos pés, prefere filmar o momento em vez de dançar. 

Quando há três décadas os gémeos José e António Ferreira começaram a distribuir mantimentos aos peregrinos o tempo era outro. O pai era feirante, de modo que ambos cresceram no comércio e acabaram por singrar nessa área (são proprietários de várias lojas no Marco de Canaveses, Lousada, Amarante e Paredes). Aos 25 anos, José sentiu que a vida lhe escapava, à conta de uma doença pulmonar. “Naquele ano prometi à Nossa Senhora que, se ficasse bom, ia a Fátima a pé.” E foi. Nesse e nos quatro anos seguintes. “Aquilo eram condições muito más. Dormíamos onde calhava. Nem imagina”, conta ao DN, ao mesmo tempo que recorda o momento em que decidiu “fazer alguma coisa pelas pessoas que fazem este caminho”. Desde então, repetem o gesto solidário nos dias 9 e 10 de maio. 

Secundino Pinto presta apoio aos peregrinos. Este ano também quer chegar a pé ao Santuário. -- Foto: NUNO BRITES/GLOBAL IMAGENS

Secundino e o sonho de ajudar

A maior parte dos peregrinos que caminham para o Santuário de Fátima vem do norte do país. A (perigosa) estrada que é o IC2 vai repleta, por estes dias. Numa fase em que muitos já precisam de cuidados, há vários pontos de apoio no troço entre Coimbra e Pombal, a cargo da Cruz Vermelha Portuguesa, da Associação Caminhos de Fátima e da Ordem de Malta. Ao mesmo tempo, o camião dos gémeos Ferreira também já é referência para muitos que fazem o caminho. Mas desde o ano passado juntou-se ao programa a tenda de Apoio ao Peregrino de Barcelos. À cabeça de mais esta ideia está Secundino Pinto, 52 anos, um empresário local que mobiliza um verdadeiro exército de boa vontade: uma equipa de 14 pessoas e seis bandas de música, graças ao apoio de 140 empresas. Em plena pandemia, uma noite mudou tudo: “eu tive um sonho, em que estava eu e um amigo a distribuir águas aos peregrinos. No dia seguinte contei-lhe. E ele diz-me ‘ah estávamos? Então vamos mesmo!”.

Secundino conta ao DN que sempre foi devoto de Nossa Senhora de Fátima. “Desde os dois anos de idade que sempre fui ao santuário, todos os anos”, mas de carro. Já tentou fazê-lo a pé, mas ainda nunca conseguiu chegar ao final. 

Está com fé que vai ser este ano. É que depois de desmontar a tenda, ele e um pequeno grupo de familiares e amigos vão fazer-se à estrada, a tempo de chegarem à capelinha das Aparições ao final do dia de domingo, 12 de maio. Espera ali pela mulher, Rosa, que por estes dias presta o mesmo tipo de apoio mais a norte, também com uma tenda. A conversa é interrompida pelos acordes de Nossa Senhora do Minho, a música de Mikael Akordeon, hoje acompanhado pelo duo Opsom. Do acordeão de Mikael Barros, o músico de 36 anos natural de Ponte de Lima, saem sons do minho. “Portugal é meu país/o norte é meu cantinho, louvemos a nossa mãe/Nossa Senhora do Minho”.

Este ano há mais jovens a fazer a peregrinação até Fátima. -- Foto: NUNO BRITES/GLOBAL IMAGENS

Um grupo de Vizela anima-se com o vira minhoto, hoje interpretado com a ajuda de Hugo Costa e Tiago Cortez (os Opsom), que há 24 anos unem esforços na música. São eles o cartaz deste penúltimo dia de apoio ao peregrino, do grupo de Barcelos que transformou a tenda num arraial. Qualquer um dos artistas atua ali graciosamente. “É um conforto que damos às pessoas, ao fim de vários dias a caminhar. Sentimos que estamos a ajudar, e isso é muito gratificante”, afirma Hugo Costa. Nenhum dos três artistas foi já a Fátima a pé. “Ainda não tive essa coragem”, admite Mikael. 

É o que não falta à maioria dos milhares de peregrinos que por ali passam. Sentada a um canto, uma freira observa agora o grupo que dança Kuduro. É a irmã Beatriz da Silva, 93 anos, que só há dois deixou de fazer o caminho a pé. Ainda assim, faz questão de acompanhar o grupo de Viana do Castelo no carro de apoio. São mais de quatro décadas a participar na peregrinação internacional aniversária. “Este ano noto muito mais gente e mais nova”, diz ao DN, apontando uma evidência que se observa nas estradas. Talvez a música e a festa respondam a esse retrato, deste novo tempo.