Prova de Vida
07 julho 2024 às 09h51
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A honra perdida de José Maria Seleiro

Teolinda Gersão, que eu saiba, nunca esteve na “Casa Mais Famosa de Portugal”, e é pena. Em todo o caso, escreveu um conto intitulado “Big Brother isn’t watching you”, no qual umas meninas adolescentes da classe média-baixa, todas com os nomes da praxe (Elizabeth, Carina, Vanessa, Andreia, Débora), negligenciadas pelas famílias e seduzidas pelas vidas glamorosas das revistas cor-de-rosa e dos reality shows, decidem assassinar uma colega, a Tânia, fazendo-o com grande infâmia.  

Saído em 2002 no livro Histórias de Ver e Andar, o conto de Teolinda é contemporâneo da primeira temporada do Big Brother, emitida entre Setembro e Dezembro de 2000, com o título Big Brother 1 ou, para quem não soubesse inglês, Big Brother - O Grande Irmão. Tratou-se, ficai sabendo, do programa da televisão portuguesa com maior audiência de sempre. A final ultrapassou os 70% de share televisivo, quebrando o duopólio RTP-SIC e posicionando a TVI como um canal popular, coisa que a “televisão da Igreja” jamais conseguira fazer, por constrangimentos óbvios do foro doutrinal e moral, os quais, naquela altura do campeonato, alvores de um novo milénio, já pouco importavam a uma parcela cada vez maior da população, sobretudo a mais jovem e, logo, a mais atrevida. 

Em 1997, ocorreu aquele que foi, indubitavelmente, o momento mais simbólico do processo de secularização e de perda de influência da Igreja na sociedade portuguesa. Nesse ano, o oitavo conde de Anadia, engenheiro Miguel Maria de Sá Pais do Amaral, depois de ter comprado a Luís Nobre Guedes a maioria do capital social da SOCI, proprietária de O Independente, e depois de a ter transformado na empresa Media Capital, adquiriu 30% do capital do grupo TVI, assumindo a presidência do seu conselho de administração. Para trás ficaram os tempos em que, a pretexto de garantir a presença da fé católica no espectro hertziano, houve peditórios nas missas, contribuições generosas de fiéis, mobilização das instituições da Igreja, como a Rádio Renascença, a Universidade Católica, o Santuário de Fátima, o Seminário do Cristo-Rei, a Confederação Nacional dos Institutos Religiosos, a União das Misericórdias Portuguesas. Tudo em vão. 

Com a entrada de Pais do Amaral e, depois, da Sonae, a TVI rendeu-se ao capitalismo televisivo puro e duro, só norteado pelo lucro e pelas audiências. Largava-se o edifício Altejo e o Cinema Berna, concentrava-se tudo em Queluz de Baixo e, em 1998, José Eduardo Moniz assumiu a direcção-geral da estação, doravante apostada em bater-se de igual para igual com a RTP e com a SIC, sobretudo esta.

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No início de 1999, Piet-Hein Bakker, da Endemol, apresentou o Big Brother a Emídio Rangel, director-geral da SIC, que durante um ano não se decidiu a comprá-lo, talvez porque o formato original fosse demasiado pesado e agreste, com a duração de 365 dias e os concorrentes obrigados, entre outras coisas, a fazerem comida com os produtos da horta da “Casa”. Piet-Hein reformulou-o, aligeirou-o, mas nem assim Rangel quis comprá-lo. Moniz chamou-lhe um figo:  Piet-Hein fez a proposta numa manhã, mostrou um resumo do Big Brother holandês, o único que então existia, e à tarde já tinha a luz verde de Queluz de Baixo, pese o preço astronómico do investimento, cerca de um milhão de contos (cf. Diário de Notícias, de 1/9/2010).   

Para apresentadora, após terem pensado noutros nomes, gente do jornalismo, escolheu-se Teresa Guilherme. Ao receber o convite de Piet-Hein, e mesmo sabendo que era um programa muito “polémica”, Teresa nem hesitou, pois, confessou anos mais tarde, quando estava no cabeleireiro uma “voz interior” dissera-lhe que estava para breve a sua grande oportunidade mediática (cf. Teresa Guilherme, Cheguei onde me esperavam, 2017, p. 148). 

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A 2 de Setembro de 2000, num enorme secretismo, começaram as gravações, só emitidas no dia 4, em jeito de “falso directo.” Não se tratou, longe disso, do único simulacro do programa, o qual, e desde logo, fazia crer que se fazia uma transmissão do quotidiano de uma “casa” (na realidade, um estúdio, com 60 microfones e 26 câmaras, algumas das quais dissimuladas atrás de espelhos), com pessoas normais e vulgares, escolhidas na rua (na verdade, alvo de um rigoroso processo de selecção, por etapas sucessivas, partindo de 2.500 candidaturas, depois 1.500, a seguir 200, 80, 25, até chegar aos 12 apurados), e em todos os momentos do seu dia-a-dia (quando, de facto, os telespectadores só viam, no máximo, 0,08 por cento do que se passava no interior da “Casa”, com emissões diárias de 30 minutos feitas a partir dos 37.440 minutos, ou 624 horas, diariamente gravados pelas quase trinta câmaras). 

Porventura, o simulacro maior foi fazer-se crer que aquilo era uma amostra do quotidiano de doze jovens à solta, quando, de facto, e para evitar a monotonia, a deles e a dos espectadores, os participantes tinham de obedecer a um conjunto de regras draconianas, implacáveis, e executar diária ou semanalmente diversas “tarefas” ou “jogos” predeterminados, sem os quais não receberiam uma alimentação decente. A produção fornecia o básico - carne, peixe, sal -, mas, para terem legumes e fruta, leite ou iogurtes, os residentes da “Casa” deveriam dar o litro, desmultiplicando-se num sem-fim de actividades tontas, algumas das quais fisicamente puxadas. No decurso do programa, um dos concorrentes, o lendário Marco, queixou-se da exiguidade da comida, apenas uma costeleta, e do facto de os outros não se esforçarem tanto como ele; e, num livrinho que publicou após sair da “Casa”, Mário confessou a fome que lá passara, lembrando ainda outro detalhe muito interessante: a produção ia aumentando ou diminuindo o preço dos alimentos para condicionar o que os concorrentes comiam (cf. Mário Ribeiro, “Tás a Ver?”: Big Brother, antes, durante e depois, 2001, p. 46). No mesmo sentido, Marta, outra das concorrentes, diria que “os alimentos escasseavam” e que “o Big Brother e a produção, através dos preços mais altos ou mais baixos, controlavam aquilo que entrava dentro da casa. O tabaco era muito mais caro do que se o comprássemos cá fora, bem como o álcool e alguns produtos alimentares. E havia outros muito baratos, como o pão e as massas. O chocolate e todos os pequenos mimos eram super caros” (cf. Marta Cardoso, Os Segredos da Casa. A novela da vida real 10 anos depois, 2010, p. 23).    

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Procurou figurar-se o Big Brother como um “25 de Abril televisivo”, que, após décadas de opressão pelas elites, finalmente franqueava às camadas populares o acesso aos ecrãs da televisão. Até então, pensava-se, o “povo” era um mero espectador passivo, narcotizado, alienado, ou, quando muito, chamado de quando em vez a desempenhar o papel de outras classes (no caso dos actores oriundos das camadas baixas) ou caricaturado nos seus tiques e idiossincrasias (no caso dos sketches humorísticos, com Herman José à cabeça). Com o Big Brother, pelo contrário, o “povo” tornava-se protagonista de primeiro plano, e, mais ainda, actor de si e para si, pois o que se lhe pedia era que se comportasse tal qual era, justamente como povo livre, largado à solta. Na “Casa Mais Famosa de Portugal”, fosse à mesa das refeições, na sala dos sofás vermelhos ou no quarto dos edredões, o que se esperava e exigia ao Marco, à Sónia, à Célia ou à Carla, é que fossem exactamente como eram, rudes nos modos, por vezes, mas sumamente autênticos, até quando diziam “póssamos”, “órgias” ou “cidadões” ou quando proferiam frases legadas à posteridade, como a célebre “Há aí palhaços que falam, falam, falam e eu não os vejo a fazer nada”, de Marco Borges, afirmação que, anos volvidos, faria as delícias de um célebre sketch dos Gato Fedorento. É claro que, às vezes, quando os concorrentes se esticavam e comportavam demasiado como povo, as elites da produção prontamente intervinham para repor a ordem e o decoro burgueses, como sucedeu quando o Marco deu um pontapé na barriguita na Sónia (esclareça-se: depois de esta o ter mandado “para a puta que te pariu”) e foi sumariamente expulso. 

Mas, sobre o “povo” do Big Brother, a ideia de que o programa era a quintessência da democracia, fosse da parte do quem o via, fosse à conta das “votações” semanais, fosse por causa do perfil social dos concorrentes, importa dizer que, uma vez mais, tudo não passou de uma farsa. No seu livro sobre os “segredos da Casa”, a concorrente Marta Cardoso aborda detidamente esta questão, para infirmar a ideia, muito propalada entre os comentadores e opinion-makers, de que aquele era um “programa do povo”, sendo antes, e isso sim, um “programa de classe média” para um país onde esta era e é dominante. Marta nota, entre o mais, que metade dos participantes tinha habilitações literárias superiores e a outra metade possuía escolaridade até ao 12.º ano (apenas dois participantes não tinham a escolaridade mínima obrigatória, então o 9.º ano); e observa ainda que quase todas as mulheres que participaram no programa tinham uma licenciatura ou frequentavam o ensino superior e que quase metade dos participantes eram estudantes ou empresários. Na verdade, se olharmos para a composição da primeira “Casa”, a do Zé Maria, do Marco e da Marta, não encontramos, de modo algum, um retrato fidedigno ou representativo da população portuguesa (desde logo, na sua diversidade etária), antes e tão-somente um conjunto de jovens escolhidos a dedo, desde logo pela (boa) aparência física, com idades muito próximas (os mais novos com 19 anos, o mais velho com 31, média etária de 24,5 anos), e um perfil muito semelhante: nove já trabalhavam, Susana estava desempregada, dois ainda eram estudantes. Duas das concorrentes eram casadas, a maioria vivia ainda com os pais, gente de classe média, sendo curioso, e muito revelador, que não existissem representantes das classes baixas e das classes média-alta ou alta. Os populares à séria, os pobres mesmo, ou remediados, eram inservíveis para um programa de horário nobre; e os mais ricos, de seu lado, os “filhos-família” que só concorreriam por divertimento ou graça, poucos incentivos tinham para se sujeitarem àquela provação de quatro meses. Ao invés, para miúdos da classe média urbana, em princípio de vida, como a Marta ou o Marco, a Sónia ou o Telmo, a quantia do prémio - 20 mil contos - fazia toda a diferença, tanto mais quanto surgia associada à promessa da fama e, com ela, de portas abertas para novos horizontes. Ou seja, aquele grupo de jovens, nenhum dos quais oriundos de gente com posses, foi milimetricamente escolhido para cumprir desígnios muito precisos, mas jamais publicitados. Boa aparência física, corpos musculados e atraentes, mentes abertas à possibilidade de sexo ou de romance, origens sociais e ambições de vida que, como cobaias, os colocavam à mercê da produção e dos seus diktats, dispostos a competirem entre si, ferozmente, na mira do dinheiro e da fama. Até hoje, dos 85 anónimos e 48 “famosos” que participaram no Big Brother, só houve seis concorrentes vindos das Ilhas, existindo uma representação esmagadora e desproporcional dos distritos de Lisboa, Porto, Setúbal e Leiria. Dizer que ali existia um “espelho da nação” (Mirabeau) ou que aqueles jovens eram membros e representantes do “povo” foi só mais uma, entre muitas, das falsidades do “Grande Irmão”.

Note-se, desde logo, que a “Casa” não o era, pois em qualquer casa digna desse nome, mesmo num apartamento apinhado de gente, há sempre espaços de privacidade (as casas-de-banho, no mínimo) e, mais do que isso, há sempre privacidade em relação ao exterior (mesmo numa barraca ou numa tenda), o que ali não só não existia como era expressamente proscrito. Hoje, à distância de 20 anos, é arrepiante ver aqueles miúdos escondendo-se debaixo dos edredões, como crianças com medo do lobo mau, pois apenas ali tinham um módico da intimidade por que tanto ansiavam. Como é arrepiante saber que a intrusão não era apenas visual, feita por 26 câmaras e microfones, mas também, ou sobretudo, auditiva: além dos constantes gritos de uma equipa de produção de 150 pessoas, que, segundo se diz, frequentemente entrava na “Casa”, coisa que nunca se esclareceu, quem passou por aquele estúdio da Venda do Pinheiro recordou “um buzz eléctrico constante, omnipresente, dos motores que alimentam o abre-e-fecha dos diafragmas, o zoom in, o zoom out, das lentes”, para não falar dos “cabos dependurados do tecto a cada dois palmos” e, o pior de tudo, o quarto de dormir - “as câmaras são mais dolorosas aqui: o equipamento de infravermelhos, capaz de filmar no mais escuro dos breus, é mais difícil passar despercebido…” Os concorrentes, de seu lado, eram obrigados a utilizar sempre um microfone à lapela, excepto na piscina e no banho, sendo terminantemente proibido tapá-lo para abafar as vozes. Uma descrição que, note-se, não foi feita por um fugitivo da “Casa”, ou por um arrependido do Big Brother, mas por dois repórteres da TVI de Moniz e divulgada no site próprio do programa. Em nome da “liberdade de programação” e da “auto-regulação”, a Alta Autoridade para a Comunicação Social eximiu-se a indagar que sequelas ou efeitos psicológicos tudo isto teria, ou poderia ter, nos jovens participantes do concurso. A TVI também não fez esse estudo prévio, até com base no que já ia ocorrendo lá fora com experiências similares (v.g., Holanda, EUA), limitando-se a ter uma equipa de profissionais, liderada pela psicóloga Isabel Leal, hoje reitora do ISPA, para a selecção dos candidatos e, crê-se, para apoio pontual aos concorrentes. Também a classe política, temendo acusações de “censura”, não cuidou de analisar o Big Brother, nomeadamente quanto ao bem-estar e efeitos nos seus participantes.  

Reality shows desta natureza, dos que só mostram gente a viver numa casa (não dos que metem montanhas ou selvas, como o Survivor), são orientados, do princípio ao fim, para que os participantes se embrulhem uns nos outros, aos beijos ou à pancada. Na primeira temporada do Big Brother, o cidadão Marco Borges vingou nos dois campos: pontapé em Sónia Veiga, aquariana de Mirandela, onde estudava Novas Tecnologias de Comunicação; sexo com Marta Cardoso, a qual, disse então uma ardente defensora do programa, iria ficar “na história da sexualidade portuguesa como a primeira mulher a fazer sexo online” (cf. Ana Paula Lemos, Big Bother: o Fenómeno, 2001, p. 38). O facto do jovem kickboxer do Carregado, onde era vendedor e formador de uma empresa de produtos químicos e industriais, ter acabado expulso da “Casa Mais Famosa de Portugal” em nada lhe retira o mérito, pois, na perspectiva da Endemol e da TVI, Marco foi uma aposta ganha, como o demonstra o facto de, 20 anos volvidos, serem os seus momentos que recordamos da primeira série da saga. Ilustrativo: a cena do pontapé foi transmitida no mesmo dia - 19 de Outubro de 2000 - em que Jorge Sampaio anunciou a sua recandidatura à Presidência da República, acontecimento ofuscado, esmagado e quase esquecido pelo marcante gesto de Marco. No alinhamento do telejornal, a TVI apresentaria o pontapé como grande notícia do dia, antes da candidatura de Sampaio, Manuela Moura Guedes entrevistou o agressor em directo, falou-se do tema em 16 peças, dedicando-lhe 37% do noticiário, muito mais do que à política (23%). João Gabriel, o assessor de imprensa de Sampaio registou o facto com escândalo e estupefacção e, depois de classificar o Big Brother como “um extenuante jogo de grupo que incentivava o voyeurismo”, concluiu que o anúncio da candidatura presidencial não foi “um momento feliz”, pois, devido ao pontapé de Marco, “a projecção mediática do anúncio esfumou-se, ficando reduzido a poucos minutos de televisão” (cf. João Gabriel, Confidencial. A década de Sampaio em Belém, 2007, p. 137).     
Com o seu gesto, Marco dava um pontapé na barriga de Sónia, é certo, mas também nas audiências da TVI, as quais, como refere Felisbela Lopes, até então estavam ainda abaixo das da SIC e só a partir daí ganharam a dianteira (cf. “Novos rumos do audiovisual português: o reflexo do Big Brother na informação televisiva”, 2007). Há, aliás, um episódio decisivo, eloquentíssimo: quando Piet-Hein ligou a Teresa Guilherme, dizendo-lhe que Marco agredira Sónia, a apresentadora disse-lhe “A festa acabou”. Sapiente, o holandês respondeu apenas: “Agora é que a festa vai começar”. Teresa desligou o telefone e desabou em lágrimas, talvez percebendo então, finalmente, a natureza do programa a que dava a cara. Pior ainda, nem a avisaram que, pouco depois, Marco iria ser entrevistado em grande destaque no Jornal das 8, como se fosse o herói do dia: “a TVI aproveitou, pôs os pergaminhos jornalísticos para trás das costas, e deu primazia às audiências, não só entrevistando como suavizando aquela reacção impensável de um homem que bate numa mulher porque ela o enfrenta” (cf. Teresa Guilherme, O Avesso do Direto. Segredos dos bastidores de trinta anos de televisão, 2020, p. 56).  

À luz daquelas premissas - sexo e conflitos -, compreende-se a selecção feita: jovens em idade fértil, com as hormonas aos saltos, debaixo do mesmo tecto, partilhando uma piscina aquecida, concursos de body painting e de striptease e, sobretudo, a consciência de que tudo quanto fizessem para apimentar a sua estadia na “Casa” dar-lhe-ia pontos, dentro e fora dela, aumentando as hipóteses de vitória, saldada em 20 mil contos. Houve também romantismo autêntico, é claro, a Célia casou com o Telmo, a Marta casou com o Marco (“eu sou homem, tenho sangue na guelra e gosto do sexo feminino”, disse este a Teresa Guilherme). Porém, não deixa de ser sintomático que as duas mulheres casadas da “Casa”, a Riquita e a Carla, tenham sido as primeiras a sair, ao fim de três e de nove dias, respectivamente. 

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Às 00h36 do dia 1 de Janeiro de 2001, era sagrado o gladiador vencedor da primeira edição do Big Brother. Em cada 100 espectadores que viam televisão a essa hora, 90 estavam colados aos ecrãs da TVI. Seis milhões de portugueses assistiram ao programa e, ao longo de 120 dias, um milhão de pessoas visitava diariamente à sua página na Internet. Com isso, a televisão de Moniz esmagava a concorrência, adquirindo uma primazia que, com altos e baixos, tem mantido. Só no funeral de Diana se vira coisa parecida, mas o fenómeno não era, note-se, um exclusivo nacional: numa dada noite, metade da população de toda a Espanha passou os olhos pelo “Gran Hermano”, como por lá se chamava. Numa das emissões, quando dois concorrentes fizeram o que deles se esperava, embrulhando-se carnalmente, o povo castelhano não condenou o acto, nem a sua transmissão, mas tão-somente o facto de o protagonista masculino ter permanecido de peúgas vestidas… 

José Maria Seleiro, o vencedor da contenda, converteu-se num “herói nacional”, como lhe chamaram, apesar de ser, como também disseram, a personificação do “anti-herói”. Numa sondagem entre os jovens, realizada pela Visão, pelo Público e pela TSF, em 14 de Dezembro de 2000, a sua popularidade só era superada pela de José Saramago, nobelizado pouco antes, em 1998, mas estava muito acima dos níveis do Presidente da República, Jorge Sampaio, e do poeta Camões. A revista Invista elegeu-o como “personalidade do ano”, talvez menos por ele, mais pelo Big Brother, o “programa que mudou a televisão”, como o qualificou o Público, de 30/12/2000, a toda a largura da primeira página. 

Antes de entrar no Big Brother (e também depois) era escassa a biografia do moço: nascera em 10 de Julho de 1973, sendo nativo de Caranguejo, trabalhava como servente na empresa de construção civil do pai, em Barrancos, sonhava ser ajudante de pasteleiro, mas o que mais gostava era de trabalhar no campo. Todos os dias, após o trabalho, passava uma hora a cuidar da horta e dos animais, sobretudo das suas galinhas, o que lhe valeu não pouca troça na “Casa”. Era reservado, tímido, sensível, de poucas falas, o que irritava sobremaneira alguns dos colegas de concurso, com destaque para o fogoso Marco, a estrela do pontapé. Gostava de desenhar, de pintar, de fazer cerâmica, fora responsável pelos cenários e pela maquilhagem de um grupo recreativo local. Como actor, não tivera uma carreira assinalável, entrando numa única peça, onde ademais fez de touro, papel arriscado e difícil por aquelas terras barranquenhas. Por mês, chegava a ir mais de 20 vezes ao estrangeiro, mas nunca passou de Espanha, a seis quilómetros dali. Talvez por amor aos bichos, e à Natureza, indicou a Amazónia como destino de sonho. Para passar o resto da vida, dizia, sintomaticamente, “em qualquer lugar de Portugal, menos em Barrancos”. No interior da “Casa”, fez uns avanços marotos a uma das concorrentes, falando-lhe de hamsters e assim, e acabou confessando, escusadamente, que tinha um envolvimento amoroso e secreto com uma mulher casada, a “Cegonha”, mãe de dois filhos, confidência que a TVI, é evidente, não teve pejo ou pudor em difundir urbi et orbi. Um dado curiosíssimo, só há pouco revelado por Teresa Guilherme: como sempre, o público não sabia, mas existia um “grupo de cobaias” (sic), que a Endemol decidiu encerrar na “Casa”, durante duas semanas, nas mesmas condições dos concorrentes, apenas para testar a rede técnica e o funcionamento do programa - Zé Maria fazia parte desse lote, foi repescado à última para integrar a equipa principal (cf. Teresa Guilherme, ob. cit., p. 24). 

A vitória do trastagano seria apresentada como um enredo de Frank Capra ou, como então alguém disse, com certa maldade e crueza, como o triunfo “da lógica do Zé-Ninguém” (ou “a vitória do Zé Povinho”, como lhe chamou Fernando Dacosta na Visão, de 28/12/2000). Na sua crónica dominical no “Jornal Nacional”, Marcelo Rebelo de Sousa analisaria os potenciais vencedores, pouco antes de se saber quem iria ganhar a contenda: “a grande interrogação que se coloca hoje, e que tem muito a ver com a nossa maneira de ser, na política como na economia, e na sociedade, é se vai ganhar o jogador que melhor manipula ou se vai ganhar a melhor vítima”. Depois, disse o futuro chefe do Estado: “pode acontecer que o malandro do momento se transforme na vítima do dia seguinte; que apareçam novas vítimas; ou aquele que é a vítima neste momento seja uma vítima que tira proveito da sua vitimização de forma manipuladora”. De todos os concorrentes, Zé Maria parecia, de facto, a “melhor vítima” ou, se quisermos, o menos fadado para ganhar, dada a sua personalidade tímida e discreta, uma mosquinha morta. Outro engano, nova mentira: sobretudo a dada altura do programa, o seu triunfo estava anunciado nas estrelas, pois, de todos os concorrentes, Zé Maria era o que permitia uma melhor, mais apaixonante e mais enternecedora “narrativa”, a do vencedor imprevisto, a do rapaz que, vindo das lonjuras das planuras, ganhava a tudo e todos e, no final, regressava de helicóptero à sua terra, em total apoteose e com discurso do presidente da câmara. Era o triunfo do nonsense, sem dúvida, mas o que mais comovia os corações do país, o que melhor mobilizava a compaixão lusitana mais pelos fracos - e o triunfo que, na aparência, à superfície, mais certificava a autenticidade do Big Brother

Foi exactamente neste mesmo sentido que Emídio Rangel afirmou um dia que, com o poder que a televisão lhe dava, tanto conseguia vender sabonetes como presidentes da República: “Uma estação que tem 50% de share vende tudo, até o Presidente da República! Vende aos bocados: um bocado de Presidente da República para aqui, outro bocado para acoli, outro bocado para acolá, vende tudo! Vende sabonetes!” Ignorava o então director-geral da SIC, e nós também, que, por essa altura, do lado de lá do Atlântico, um empresário falido de Nova Iorque dava os primeiros passos de uma cavalgada galopante, começada nos ecrãs da TV e terminada na Casa Branca. Mark Burnett, o criador de alguns dos mais populares reality shows de todos os tempos (Survivor, The Voice, Shark Tank), convidara Donald J. Trump para júri do célebre The Apprentice, onde esteve durante 14 temporadas, até ser despedido pela NBC em Agosto de 2015, por ter feito comentários desbragados sobre os imigrantes mexicanos. Na altura, Trump já era candidato à Presidência dos Estados Unidos e a passagem pela reality television, além de o ter resgatado da falência, foi, sem margem para dúvida, o acontecimento mais decisivo para a sua conquista da Casa Branca. No passado, a América tivera um actor de cinema como Presidente. Agora, chegara a hora da reality tv, numa demonstração retumbante da sua força e da sua influência (cf. Patrick Radden Keefe, “How Mark Burnett Ressurected Donald Trump As An Icon of American Success”, The New Yorker, de 30/12/2018, republicado in Rogues. True Stories of Grifters, Killers, Rebels and Crooks, 2022, pp. 175-205).     

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José Maria Seleiro passou quatro meses na “Casa”, mas ela ainda está dentro dele, ou vice-versa (“o Big Brother nunca mais saiu da sua vida”, diz Teresa Guilherme, sem se aperceber da crueldade dessa sua afirmação). A TVI tentou transformá-lo em apresentador de televisão, levou-o ao Big Brother Famosos, em 2002, mas os insistentes rumores sobre a sua sexualidade fizeram-no colapsar. De permeio, ofereceu aos pais o carro que tinha ganho, comprou outro, veio de Barrancos para Lisboa, abriu um restaurante, foi colaborador de uma revista de cozinha, anunciou o casamento, desmentiu depois, anunciou outra vez. O restaurante acabou trespassado, a namorada partiu para o México, ele ficou na penúria. Em 15 de Agosto de 2004, quatro anos depois de sair da “Casa”, tentou suicidar-se, lançando-se da Ponte 25 de Abril, sendo salvo in extremis pelos militares da Brigada de Trânsito da GNR. Dois dias depois, foi visto a passear nu numa rua de Lisboa e também então tentou atirar-se ao rio. Uns agentes da PSP conseguiram evitar a tragédia, levando-o para o Curry Cabral. Depois, seria internado no Hospital Miguel Bombarda, sendo transferido para a Clínica Psiquiátrica de São José, a cargo das Irmãs Hospitalárias do Sagrado Coração de Jesus (ou, no dizer do Correio da Manhã, de 27/8/2004, “Zé Maria Entregue a Freiras”). Actualmente, continua a ser seguido pela equipa de saúde mental do Hospital de Beja e a tomar medicação que, segundo dizem, o acompanhará até ao fim dos seus dias. O dinheiro do concurso acabou, regressou à casa dos pais. Recebe há vários anos o Rendimento Social de Inserção, tirou há pouco um curso de jardinagem, através do centro de emprego, e obteve a equivalência ao 9.º ano de escolaridade. Numa terra envelhecida, sem empregos nem perspectivas, vai fazendo uns biscates de jardinagem, colabora pontualmente com a junta de freguesia. Trabalhou numa pastelaria da Amadora, no cabeleireiro da irmã em Barrancos, andou a vender jóias em Jerez de los Caballeros, Espanha, ignorando-se se por lá continua. Dizem que lançou livros (não encontrámos nenhum) e foi comentador do “social” (não procurámos). Em 2020, abriu as portas de casa para uma reportagem da TVI, programa “Você na TV”, a primeira e única entrevista que concedeu após ter caído em crise. Tem poucos amigos, uma vida social muito escassa, quase nula. Aos que lhe conquistam a confiança, gosta de recordar quem é, ou foi, o “Zé Maria do Big Brother.” 

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“Éramos genuínos. Éramos puros. Não tínhamos maldade. Não tínhamos noção de nada. Vivíamos como se fosse a nossa casa. Não tínhamos a noção da projeção do Big Brother, da quantidade de pessoas que, também, estavam a viver aqueles momentos”, diz Susana, outra das concorrentes da “Casa”, talvez a mais próxima do barranquenho, tentando explicar o sucedido ao amigo. Teresa Guilherme, de seu lado, diz que “ficou uma ligação” entre ela e Zé Maria, acrescentando:  “Não o achei capaz de vir para Lisboa ou voltar a meter-se numa aventura como se meteu naquela, provavelmente não terá estrutura psicológica para aquela pressão”, só havendo a lamentar que nada disso tenha sido detectado e despistado antes, durante e depois da passagem do rapaz pela “Casa Mais Famosa” e, já agora, que ele tenha entrado, em 2002, no primeiro Big Brother Famosos, ao lado de vedetas como Romana, Cinha Jardim, Nuno Homem de Sá, o futebolista Cadete e a cantora Nicole. Vinte dias depois de ter entrado na “Casa”, Zé Maria desistiu. Depois, ao que parece, tentou entrar na Quinta dos Famosos, mas não conseguiu chegar à fala com a equipa da Endemol, onde nem sequer o atenderam. Hoje está “lindamente”, garante Cinha Jardim, que ficou sua amiga para a vida. “Está giro. Com cabelos brancos, mas giro”, diz a sua ex-colega Marta Cardoso. “É um caranguejo com um coração mole como eu… Somos umas florzinhas de estufa”, refere Teresa Guilherme, num retrato a um tempo astrológico e psicológico, mas bem eufemístico, do antigo participante da “novela da vida real” (como o Big Brother se autointitulava, para tramar as novelas da SIC). 

É apressado e pouco sério dizer-se que foi a passagem pelo Big Brother que fez nascer ou sequer precipitou os problemas de saúde mental de José Maria Seleiro, como alguma imprensa insinuou, e até afirmou expressamente, com tremenda irresponsabilidade (aliás, a mesma imprensa que outrora o levou às estrelas, para logo o esquecer, é aquela que hoje faz notícias sobre o seu estado psíquico, usando-o e descartando-o num minuto, tal qual como há 20 anos).  

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O formato do Big Brother persiste e ainda hoje são emitidas “novelas da vida real”, mesmo que a sua audiência se encontre em franco declínio, como, de resto, a de todas as televisões generalistas, cada vez mais preteridas em favor do streaming e das redes sociais (“Inacreditável o nível desumano a que estão a chegar as redes sociais”, disse há pouco Piet-Hein Bakker, indignado pelos comentários feitos a fotografias da sua filha despida numa praia de nudistas: Flash!, de 2/8/2023). A cada dia que passa é mais evidente que, com o actual modelo, a SIC e a TVI se encontram em lenta agonia: só nos primeiros seis meses de 2023, o Grupo Impresa viu os seus prejuízos agravarem-se em 87%, tendo uma dívida líquida no valor de 145,2 milhões de euros; o grupo Media Capital, dono da TVI e da CNN, registou 4,1 milhões de perdas em 2021, recuperando no ano seguinte pela venda do negócio das rádios, que gerou mais-valias líquidas de 46,1 milhões de euros. Esta, sim, é a “novela da vida real”. 

O Big Brother trouxe dinheiro e fama a muitos jovens de Portugal e, como sempre sucede, os que tiveram tino e cabeça souberam aproveitá-lo para melhorar as suas vidas e a das suas famílias (em todo o caso, tudo quanto ganharam ficará sempre aquém, muito aquém, da colossal fortuna de John de Mol, o dono da Endemol Entertainement, considerado o homem mais rico da Holanda e um dos 500 mais ricos do mundo na lista da Forbes). 

Se eles trouxeram a fortuna de produtores como John de Mol, e de estações como a TVI, para muitos outros, porém, a passagem pela “Casa Mais Famosa” acabou por revelar-se uma indelével tragédia, que os marcará para sempre. A alguns, mais tontos ou imaturos, a súbita fama subiu à cabeça, havendo até o caso de uma concorrente que, quando foi pedir um empréstimo ao banco e lhe perguntaram pela profissão, respondeu “Big Estrela.” se sentissem estar a ser ultrapassados pelos outros). 

Quanto aos milhões de espectadores do programa, não se sabe se saíram culturalmente mais enriquecidos, mas foram, ao menos, efemeramente entretidos. Não deixa, no entanto, de nos acorrer ao espírito uma frase de Nietzsche, “quando olhas muito para o abismo, o abismo também olha para ti”. Na verdade, e ao contrário do que se pensou e pensa, o Big Brother não foi um “retrato de Portugal” pela amostra dos concorrentes ou pelo que exibia no interior da “Casa”; foi, isso sim, um retrato do país que diariamente o via e que assim se pôde observar ao espelho, vendo-se reflectido nas percentagens do share e das audiências. Estas mostraram, para surpresa de muitos, que o Big Brother não era, como chegaram a dizer, “o mundo VIP dos pobres” ou, se quisermos, que os seus espectadores não se cingiam, de modo algum, às classes populares e iletradas, estando antes distribuídos equitativamente por todas as camadas da pirâmide social: 15% para a classe alta, 30% da classe média alta, 35% da classe média baixa, 22% da classe baixa. 

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Todos os natais, Zé Maria liga a Teresa Guilherme, desejando-lhe as Boas Festas. E, num passado não muito distante, ajudou a amiga Cinha Jardim numa mudança de casa. 

*Prova de vida (53) faz parte de uma série de perfis
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.