Legislativas
01 abril 2024 às 07h18
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O Chega ganhou no Brasil. Porquê?

O voto da comunidade lusa, como o da maioria dos imigrantes de origem europeia no país sul-americano, sempre foi à direita e conservador. Graças ao trabalho comunicacional do bolsonarismo, caiu no colo de Ventura.

Se dependesse dos votos dos portugueses no Brasil, o Chega teria ganho as eleições legislativas e ao presidente Marcelo Rebelo de Sousa não restaria alternativa a não ser convidar o líder do partido, André Ventura, para formar governo. Com 24,61% do total de votos, o partido de extrema-direita superou a AD, que somou 20,45%, e o PS, escolha de 15,30% dos eleitores. Em número de votos, cresceu brutais 275% de 2022 para 2024. Como foi possível? E porquê?

O DN convidou um politólogo, um casal especialista em comunicação política, um jornalista que acompanha as comunidades luso-brasileiras tradicionais e um emigrante português já do século XXI para perceber.

Vinícius Vieira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais, começa por abordar os números: “No Brasil, o ministério da Administração Interna divide os votos entre o consulado de São Paulo, que inclui os estados de São Paulo e do Mato Grosso do Sul, e o resto do país”. “Nesse resto do país, o Chega cresceu 363% na região em dois anos, ao contrário da AD, que caiu 7%, e o PS até subiu. Mas o dado mais curioso é o crescimento de novos inscritos para votar”.

Igor Lopes, jornalista nascido no Rio de Janeiro há 43 anos mas com dupla nacionalidade, em virtude das origens familiares nas regiões do Douro e de Trás os Montes, que se dedica a acompanhar as comunidades luso-brasileiras, dá uma pista: “Com a mudança na lei, houve uma corrida enorme para obtenção de dupla nacionalidade nos últimos cinco ou seis anos”.

“Entretanto, em São Paulo e Mato Grosso do Sul”, prossegue Vinícius Vieira, “enquanto a AD e o PS tiveram quedas de 3 e 2%, respetivamente, o Chega cresceu 279%, em virtude, também, de o número de votantes ter aumentado 73%”. “Houve, pois, uma mobilização enorme em São Paulo e no Mato Grosso do Sul, regiões muito bolsonaristas, e estes portugueses, alguns já de terceira ou quarta geração, acabaram projetando o bolsonarismo nas eleições portuguesas aqui no Brasil”, conclui o politólogo.

Há portugueses e portugueses

A propósito, Artur Costa, empresário que desde 2003 vive entre o estado do Rio de Janeiro e Brasília, estabelece uma diferença entre eleitores: os portugueses, como ele, que passaram a maior parte da vida em Portugal e ainda acompanham o dia a dia do país de origem e aqueles que, por serem filhos, netos, até bisnetos de emigrantes, são, na verdade, muito mais brasileiros do que portugueses.

“Acho que há os votantes portugueses, como eu, que torço pelo Sporting todos os fins de semana e vibro com os golos do Gyökeres e aqueles votantes portugueses que nem sabem quem é o Gyökeres”, resume. “Isto é, os filhos, netos e demais descendentes dos portugueses que emigraram no século passado que votam nas eleições portuguesas são muito mais brasileiros do que portugueses e, por isso, muito mais suscetíveis à agenda política e social do Brasil do que de Portugal”.

“E esses portugueses”, continua Costa, “estando, na maioria dos casos, bem de vida porque os pais, do nada, fizeram um pé de meia ou até fortunas, têm tendência a aderir às ideias bolsonaristas”. “Ora, quando veem nas redes sociais, que são a principal fonte de informação deles, que de um lado está o PS, de esquerda, cujo governo caiu por corrupção, e do outro está o Chega, que fala em ‘Deus, Pátria, Família’ e ainda em segurança pública, que não é tanto um problema em Portugal, mas é-o, e muito, no Brasil, não têm dúvidas em quem votar”, completa.

Igor Lopes, com a autoridade de quem acompanha o dia a dia da comunidade luso-brasileira, serviu até de “conselheiro eleitoral”. “Esses novos portugueses, muitos nem nunca foram a Portugal, chegaram a recorrer a mim e a outros da comunidade que estão sempre entre cá e lá a perguntar qual candidato daria melhor... Presidente da República”. “Porque eles não conhecem nem o sistema político do país, nem que partidos são de direita ou esquerda, nem quem é moderado ou radical, e, por isso, acabaram, sim, votando naqueles que melhor traduziam aquilo em que acreditam no Brasil. Daí a transferência de votos de Bolsonaro para o Chega”, prossegue.

A “internacional reacionária”

Fernanda Sarkis, mestre em comunicação política, e Marcus Nogueira, sociólogo, que ajudaram o gabinete jurídico do PT, o partido de Lula da Silva, a remover fake news produzidas pela extrema-direita nas eleições gerais de 2022 e, ainda nesse ano, mapearam a extrema-direita portuguesa no universo digital a convite do PS, destacam “o peso do bolsonarismo e da aliança transnacional de extrema-direita no resultado eleitoral do Chega”.

“Devemos sempre dar conta da grande capacidade e qualidade que estão presentes no trabalho realizado pela direita do ponto de vista da ocupação comunicacional”, afirma Sarkis. “E por se tratar de uma comunicação de base comunitária, mobiliza e envolve as pessoas nas histórias que são contadas através das lutas que os líderes políticos enfrentam para transformar a realidade da sociedade a partir dos valores tradicionais do judaico cristianismo”, acrescenta. “Porque quando se observa de maneira transnacional, ‘Deus, Pátria, Família’ comunicam em muitos idiomas”.

“E o bolsonarismo no contexto da política portuguesa, ou melhor, da língua portuguesa, sempre será sentido pelas dimensões populacionais do Brasil e pela cultura de internet dos brasileiros”, afirma Nogueira.

“Em 2022, o bolsonarismo já era forte mas a derrota nas eleições talvez tenha feito a ‘internacional reacionária’, da qual Steve Bannon, a família Bolsonaro e o Chega fazem parte, investir mais na transnacionalidade”, sugere Vinícius Vieira.

Para Igor Lopes, “a transferência de voto do bolsonarismo para o Chega tem de ser vista, claro, como uma influência: até porque Ventura apoiou publicamente Bolsonaro em 2022 e Bolsonaro fez o caminho inverso em relação a Ventura agora em 2024”. “Mas, o voto no Chega, pela minha observação, foi também um voto de protesto contra a política tradicional, quase como o voto no Tiririca, aqui, em 2010, replicado em Portugal”.

Até porque, como sublinha Nogueira, “qualquer repercussão na internet brasileira vira trending topics em Portugal, a pressão brasileira já era vista no entretenimento, agora é na política”.

O caso Tavares

O deputado Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente e principal membro brasileiro da “internacional reacionária”, foi a Portugal endossar apoio a Ventura. Numa live, ele, o pai, o irmão senador e o irmão vereador reforçaram esse apoio. O próprio Jair gravou mensagem de apoio e foi entrevistado pelo youtuber português Sérgio Tavares, protagonista de um caso de enorme repercussão no Brasil.

Chegado a São Paulo para a cobertura da manifestação de apoio a Jair Bolsonaro na Avenida Paulista, a 25 de fevereiro, exatas duas semanas antes das eleições portuguesas, o suposto jornalista foi bloqueado no aeroporto. O caso viralizou nas redes bolsonaristas – e chegou a ser noticiado com destaque na chamada grande imprensa, como os jornais Folha de S. Paulo ou no canal Globo News. 

“A favor de Tavares está o negacionismo ou o conservadorismo comunicacional daqueles que pretendem contrapor os argumentos e a linha política dele, sobretudo no contexto português”. “Para o contrapor”, remata a especialista, “não basta discurso, vai ser preciso absorver os novos paradigmas comunicacionais que estão definindo a política”.

A identidade branca

Além da onda bolsonarista a favor do Chega, Vinícius Vieira traz para a discussão “a branquitude”. “Houve uma mobilização enorme no voto no Chega indissociável do bolsonarismo, da solidariedade da extrema-direita transnacional, das acusações de corrupção de que o PS foi alvo, um tema muito caro aos brasileiros, mas, além disso, da identidade branca”.

Os americanos, nos anos 80 e 90, falavam muito nas ‘etnicidades opcionais’ entre os brancos americanos, um fenómeno que acredito se transferiu para o Brasil. Hoje, adquirir uma dupla nacionalidade com base na ancestralidade é um atestado de “branquitude” mas também, e sobretudo, uma possibilidade de emigrar e de viajar”, sublinha. “E há uma correlação forte entre ser branco e votar no Bolsonaro – vai ser interessante ver, sobretudo em São Paulo, onde a comunidade ítalo-brasileira é enorme, como serão os resultados nas próximas eleições em Itália”.

Comparativo da edição brasileira do jornal El Pais, após a primeira volta das eleições de 2018, ganhas por Bolsonaro na segunda volta a Fernando Haddad, do PT, já abordava o “fosso racial”. De acordo com o levantamento, Bolsonaro venceu na ocasião em nove dos 10 municípios com maioria branca; Haddad venceu em sete dos 10 municípios com uma maioria não branca.

Bolsonaro ganhou com folga nas cidades onde quase toda a população é branca, principalmente no sul do país: em Novo Hamburgo, onde 90% das pessoas são de origem alemã, Bolsonaro obteve 63% dos votos e Haddad apenas 14%. Mas se o candidato do PT obteve resultados decepcionantes nessas cidades, prevaleceu em todas aquelas onde os brancos não chegam a 20% da população. A análise do El Pais aos resultados em 5500 municípios detectou, portanto, padrões claros: o desempenho de Bolsonaro foi muito melhor nas cidades mais ricas e mais brancas.

Trabalho de conexão

Para Artur Costa, “o perfil dos emigrantes portugueses, na verdade, está muito mais próximo do perfil do emigrante italiano, mais comum em São Paulo, do alemão, sobretudo no Sul, ou de outro lado qualquer da Europa”. “E não deixa de ser curioso que muitos dos emigrantes de primeira geração tenham trocado Portugal pelo Brasil por causa do Salazar e agora os de segunda, terceira ou quarta, adiram a valores equivalentes”.

Costa deixa, entretanto, um lamento: “Eu, português, sempre que me encontro com esses portugueses de outro perfil noto que não tenho assunto, além do vinho, da comida, do fado”.

Sarkis remata com um aviso: “Não foi uma surpresa o resultado, assim como não será nas Europeias, pois, quando se observa a prática do Chega na ocupação das redes, deve-se percebê-la do ponto de vista do resultado de um intercâmbio técnico que todas as famílias políticas à direita participaram. Isso significa que, no que tange ao que está escrito na rede, o avanço da direita nas Europeias será grande”.

Já Igor Lopes deixa uma recomendação: “Acho que deve haver um trabalho para conectar os novos portugueses com o país, via comunicação social e através, claro, dos deputados eleitos, para aumentar a responsabilização dos novos portugueses nas escolhas”.