Boaventura de Sousa Santos (BSS) anunciou esta terça-feira a sua demissão do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES) através de dois comunicados diferentes: um enviado por email para os membros da instituição, outro para os media – colocado num site criado para o apoiar.
Se no primeiro, como o DN noticiou em primeira mão na edição digital, acusa a direção do CES de “tentativa de linchamento”, de o “querer expulsar” e de ter aberto um processo interno de averiguações às denúncias de assédio na instituição para “responder à pressão mediática” (processo no qual se queixa de não ter sido convenientemente ouvido e que estará já, diz, “concluído”), no segundo escreve que está a ser por aquela usado como bode expiatório para “exonerar qualquer má prática do centro” e “para esconder” algo, dizendo-se alvo de perseguição, de “caça” e até de “ameaças inaceitáveis”– pelo que, por sua vez, ameaça a direção do CES com os tribunais.
Terão sido, de resto, as ameaças de que se sentiu alvo, escreve no comunicado à imprensa, a levar à sua demissão: “Nos últimos dias, recebi mesmo ameaças que são inaceitáveis e que conduziram a este desfecho. (…) Tentei ser respeitoso e cooperante com todas as iniciativas que se desenvolveram no CES, mas é evidente que a caça contra mim assumiu dimensões insuportáveis e ilegais, pelo que não posso ir mais longe.”
BSS não esclarece em que terão consistido as tais ameaças, mas juntando essa informação com a que colocou no comunicado interno (no qual diz não confiar que “possa haver no CES qualquer tipo de julgamento imparcial”) parece poder deduzir-se que sabe ou tem motivos para concluir que o resultado do mencionado processo de averiguações lhe não terá sido favorável, podendo estar em causa um processo disciplinar com vista ao despedimento – daí acusar a direção do CES de o querer “expulsar”.
"Inquérito" foi concluído mas demissão de BSS torna qualquer ação “inútil”, diz direção do CES
Isso mesmo parece resultar de duas afirmações contidas no comunicado de imprensa.
No qual se lê: “A direção do CES iniciou uma perseguição através de uma mais do que duvidosa iniciativa privada de investigação confiada a advogados, sem quaisquer garantias, sem permitir o acesso às provas ou aos dados existentes e aplicando técnicas contrárias ao Estado de Direito e típicas do direito penal do inimigo, e cujo alvo último e principal era e sou eu”.
E a seguir: “Além disso, o inquérito sobrepôs-se de forma parcial, interesseira e arbitrária aos inquéritos penais e civis instaurados [refere-se à ação cível de que é autor, contra quatro das suas denunciantes, e ao inquérito criminal que corre no Ministério Público de Coimbra, em resultado das denúncias apresentadas à Comissão Independente que o CES nomeou para investigar as acusações ao centro e a seus funcionários], sem me dar a possibilidade de uma defesa mínima. Esta situação pode conduzir a responsabilidades penais e civis evidentes por parte da direção do CES e dos próprios investigadores privados, que devem ser levados a tribunal imediatamente.” Isto porque, acusa, “interferir no meio de um processo judicial aberto não passa de uma ilegalidade".
Na noite desta terça-feira, a direção do CES enviou aos media um comunicado em resposta às acusações de BSS, informando que de facto “o processo prévio de inquérito” que visava o apuramento indiciário de factos concretos e seus agentes”, conduzido por “uma equipa de instrução externa e independente” foi “concluído e o respetivo relatório entregue à direção do CES”. Mas, alerta, tendo BSS apresentado o seu pedido de desvinculação da instituição, “qualquer eventual ação subsequente é supervenientemente inútil”. Ou seja: a haver motivo para mover um processo disciplinar a BSS, este deixou de fazer sentido.
Caso o sociólogo avance com uma ação ou queixa contra o CES, será, de acordo com o conteúdo do email enviado aos membros da instituição, o terceiro processo por si desencadeado na sequência das denúncias de que foi alvo desde março de 2023 – quando a editora internacional Routledge publicou um livro sobre assédio na academia no qual um dos capítulos descreve um centro académico, sem o identificar, ao país ou às pessoas, em que ocorrem, sob os auspícios de um “professor estrela”, académico de renome internacional, vários tipos de abuso sobre alunas e investigadoras. (Confrontado pelo DN em abril de 2023 com o conteúdo do capítulo, foi o próprio BSS a admitir ser ele o professor descrito como “estrela”, refutando no entanto todas as acusações).
Tribunal recusa pedido de Boaventura para silenciar rés
Como referido, BSS já instaurou uma ação cível, de tutela do direito da personalidade, contra quatro das mulheres que fazem parte do Coletivo de Vítimas do CES, e anuncia agora outra ação, “a entrar nos próximos dias”, contra as restantes mulheres que integram o coletivo e o acusam, explicando que a primeira diz respeito às residentes em Portugal e a segunda às não residentes.
No âmbito dessa primeira ação, que decorre no Tribunal de Coimbra, BSS requereu uma medida provisória para impedir as quatro rés de falar publicamente sobre ele e o processo. Medida que esta segunda-feira, disse ao DN Lara Roque Figueiredo, advogada das quatro, foi recusada pela magistrada que está a julgar o caso, a qual considera que as rés têm direito à liberdade de expressão.
Curiosamente, BSS adianta no comunicado enviado ao CES que o motivo para colocar uma ação deste tipo se prende com a sua necessidade de ter “acesso formal” às acusações de que é alvo, já que, acusa, os inquiridores do processo de averiguações do CES não lhe deram delas conhecimento (uma acusação que a direção do CES refuta, afirmando que “no processo de inquérito os instrutores confrontam as pessoas depoentes com a integralidade dos factos reportados”).
Outra curiosidade é que, tendo a juíza decidido, com a concordância de BSS, que o julgamento da ação, cujo início já foi adiado duas vezes, deve decorrer “à porta fechada” – o que significa que a prova, dizendo respeito à existência ou não de assédio, decorrerá longe dos ouvidos e olhos do público –, o sociólogo vem agora, no comunicado ao CES, anunciar que vai disponibilizar publicamente, no citado site criado para a sua defesa, “todos os documentos que sustentam a minha versão dos factos”, “uma vez que sejam remetidos ao tribunal”.
Entretanto, como já referido, corre no MP o inquérito criminal relativo às denúncias efetuadas contra vários membros do CES (incluindo BSS, que pediu para ser constituído arguido), o qual, de acordo com o que o DN conseguiu saber, “está a começar a avançar”.