Pelo menos desde 1995, quando o cinema assinalou o centenário da primeira projecção pública organizada pelos irmãos Lumière, a memória dos filmes deixou de ser encarada como uma colecção de dados mais ou menos pitorescos, para ser tratada como um capítulo fundamental - técnico, artístico e simbólico - da vida pública do cinema. Com a secção de Clássicos, o Festival de Cannes tem sido um território de eleição para a consolidação de tal dinâmica. Através de duas fundamentais linhas de força: a apresentação de cópias restauradas de filmes que, por alguma razão, são referências históricas incontornáveis, e a estreia de documentários empenhados em revalorizar o valor das memórias cinéfilas.
Este ano, alguns desses documentários enraizavam-se num pressuposto de trabalho que, não sendo inédito, adquiriu, subitamente, um peso muito especial. A saber: a evocação de algumas personalidades emblemáticas fez-se, não através de um discurso “sobre”, mas a partir daquilo que os próprios retratados disseram, avaliando a sua vida e a sua obra. Assim aconteceu com três nomes fulcrais da produção francesa enraizada nos tempos heróicos da Nova Vaga: dois realizadores, François Truffaut (1932-1984) e Jacques Demy (1931-1990), e um compositor, Michel Legrand (1932-2019). E também com uma actriz lendária de Hollywood: Elizabeth Taylor (1932-2011).
O documentário sobre Elizabeth Taylor, realizado por Nanette Burstein, tem por base um documento precioso, inédito, em que ela recorda filmes e momentos decisivos da sua carreira. Chama-se, por isso, Elizabeth Taylor: The Lost Tapes, já que se trata de escutar as conversas gravadas com o jornalista Richard Meryman (para um projecto de livro que não se concretizou). Através da combinação de imagens de arquivo, incluindo extractos dos filmes citados, descobrimos uma Elizabeth Taylor de espantosa frieza analítica, resistindo a todos os clichés da fama e, metodicamente, dando conta de situações reveladoras de contextos muito precisos. Por exemplo, é verdade que Bruscamente no Verão Passado (1959), de Joseph L. Mankiewicz, ficou como um dos títulos mais admiráveis da sua filmografia, mas não é menos verdade que “toda a gente em Hollywood” a aconselhou a não aceitar o projecto. Porquê? Por causa da homossexualidade da personagem que espoleta o drama escrito por Tennessee Williams…
Quanto a Jacques Demy, le Rose et le Noir, de Florence Platarets, e Il Était une Fois Michel Legrand, de David Hertzog Dessites, eis dois filmes que, por assim dizer, dialogam entre si, já que Legrand compôs as músicas de alguns dos mais lendários trabalhos de Demy, incluindo Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, também exibido numa cópia restaurada (assinalando os 60 anos da sua Palma de Ouro). Entretanto, Le Scénario de Ma Vie, sobre François Truffaut, de David Teboul, expõe com impecável didactismo a dimensão autobiográfica do autor de Os 400 Golpes (1959).