Literatura
08 janeiro 2024 às 07h30
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Um prémio para a universalidade de Alice Vieira

Foi no final do verão que se soube que Alice Vieira era a primeira autora portuguesa distinguida com o Prémio Ibero-Americano SM de Literatura Infantil e Juvenil. Hoje, em Lisboa, realiza-se a cerimónia de entrega.

No princípio de outubro, quando fui à Ericeira entrevistar  Alice Vieira para o DN, a escritora ainda estava a ponderar se iria ou não ao México receber pessoalmente o prémio Ibero-Americano SM de Literatura Infantil e Juvenil. “É uma viagem um bocado longa”, dizia-me, mas, no calor do Verão que esmorecia, a hipótese ainda lhe parecia viável. Num cenário totalmente diferente, mas em ambiente igualmente festivo, Alice recebe hoje esse mesmo prémio. Acontecerá às 18.30, no salão nobre da Junta de Freguesia de Avenidas Novas, na presença do ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva e do embaixador de Portugal no México, Manuel Carvalho.

Distinguida entre 14 escritores finalistas, oriundos da Argentina, Chile, Colômbia, Espanha, México, Portugal e Uruguai, Alice tornou-se, assim, a primeira autora nacional a receber tal prémioPara esta decisão, segundo a declaração de voto do júri, contribuiu o “estilo pessoal que transcende gerações e culturas”, assim como pela “grande qualidade literária e diversidade em sua obra”,que consegue “transformar uma história local em universal”. Este júri, refira-se, foi constituído por Juana Inés Dehesa Christlieb, da Organização dos Estados Iberoamericanos (OEI), Freddy Gonçalves da Silva, do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe (CERLALC), Alicia Espinosa de los Monteros, pelo Conselho Internacional de Livros para Jovens (IBBY México), Rodrigo Morlesin, da secção mexicana da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), e por Teresa Tellechea Mora, em representação da Fundação SM. A rir, como é seu timbre na vida, a premiada, de 80 anos, grande parte deles dedicados à escrita, tanto literária como jornalística, diz-me:  "O prémio agrada-me muito por ser a primeira escritora portuguesa distinguida, mas os 30 mil euros (valor pecuniário do prémio) também são muito simpáticos.”

Mal se estreou na literatura infantil, em 1979, com Rosa, minha irmã Rosa (hoje com dezenas de edições, em Portugal e no estrangeiro) Alice tornou-se um caso sério de sucesso. A nível de prémios, está longe de ser uma estreante. Em 1984, por Este Rei que eu escolhi, recebeu o Prémio de Literatura para Crianças / Melhor Texto do Biénio (1983-1984) da Fundação Calouste Gulbenkian. Dez anos mais tarde foi candidata ao Prémio Hans Christian Andersen da IBBY (International Board on Books for Young People), tendo o seu livro Os olhos de Ana Marta sido escolhido para a lista de honra; foi de novo candidata ao mesmo prémio em 1998. Em 1996 foi-lhe atribuído, pelo conjunto da sua obra, o Grande Prémio de Literatura para Crianças da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 1992 e 1998 as traduções de Rosa, minha irmã Rosa e Os olhos de Ana Marta, respetivamente, foram nomeadas para o Deutscher Jungendliteraturpreis (Prémio Alemão de Literatura para a Juventude).

Muitos dos seus livros estão hoje traduzidos para várias línguas, como alemão, búlgaro, castelhano, galego, catalão, francês, húngaro, holandês, russo, italiano, mandarim, servo-croata, coreano, ou bengali. A sua escrita ficcional para crianças e adolescentes abrange temáticas tão diversas como episódios inspirados na História, textos sobre algumas das grandes questões da atualidade (como o consumo desenfreado ou a influência da televisão na educação infantil) e casos relacionados com sentimentos comuns a todas as gerações e geografias: a amizade, a solidão, as relações familiares, as relações entre crianças e adultos (Os olhos de Ana Marta) ou a infância em diálogo com a velhice (Às dez a porta fecha; Um fio de fumo nos confins do mar).

Mas engana-se quem pense que a sua escrita se destina apenas aos mais novos. Na sua vasta bibliografia constam títulos para adultos, nomeadamente nas áreas da crónica, do diário e da poesia. São os casos de Esta Lisboa (com fotos de António Pedro Ferreira), Bica Escaldada (crónicas); Pezinhos de Coentrada (crónicas), Dois Corpos Tombando na Água (poesia ); Tejo (com fotos de Neni Glock); O Que Dói às Aves (poesia ); O Que se Leva Desta Vida (crónicas); Os Profetas (romance ); O Mundo de Enid Blyton; O Livro da Avó AliceOs Armários da Noite (poesia, finalista do Prémio PEN Clube); Só Duas Coisas Que, Entre Tantas, Me Afligiram. Mais recentemente, em parceria com Nélson Mateus, publicou Diário de uma Avó e de um Neto Confinados em Casa (edição Casa das Letras), que chegou em tempo recorde à segunda edição. Como os dois contavam ao DN, quando da publicação do livro: "este diário a duas vozes (...) também mostra como se podem entreajudar duas pessoas muito diferentes (dizem os próprios), com vivências que também o são. 

Antiga jornalista (de vários títulos, entre os quais o DN) Alice Vieira continua a escrever com regularidade para vários jornais e revistas até porque considera que "uma vez jornalista, sempre jornalista." E se alguém duvida, é vê-la a apanhar palavras, expressões, gestos na esplanada com o gosto de quem, ali na praia, recolhe conchas.

"Os diálogos que ouço aqui são deliciosos e uma constante fonte de inspiração. Adoro conversar com os carteiros, com os taxistas, com as pessoas, de uma forma geral. Sempre fui assim, mas ainda há quem se surpreenda com isso. Esperavam talvez alguém mais inacessível, não sei." 

Quando fala de carteiros, Alice está a falar dos que à sua casa da Ericeira levam cartas e postais do mundo inteiro. Ainda. Como se o mundo não tivesse cedido há muito a vários meios bem mais instantâneos, e também mais inócuos, de comunicar. Isto porque Alice integra um grupo de post crossing, que reúne aficionados de postais ilustrados dos mais diversos países, a que há que juntar naturalmente os seus muitos leitores, também eles provenientes de muitas latitudes já que os seus livros, como vimos, estão traduzidos para muitas línguas. Por isso, passa boa parte dos seus dias a responder aos milhares de cartas e postais que recebe. E admite que guarda quase todos.