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Sociedade
06 novembro 2024 às 17h21
Leitura: 16 min

Amadora-Sintra tenta contratar médicos de família e sem especialidade para não fechar urgência de cirurgia

Direção clínica fez plano de contingência para assegurar urgência de cirurgia geral até fim do mês, mas só aceita fecho de portas se a equipa tiver um especialista e um interno. Para bastonário, “situação é gravíssima” e serviço pode perder idoneidade para formação. Para sindicatos, plano "não se adapta à urgência".

A Direção Clínica do Hospital Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra) enviou na segunda-feira aos médicos da unidade o Plano de Contingência para a Equipa de Urgência e Cirurgia Geral. O objetivo é manter a “atividade da equipa de urgência de Cirurgia Geral, em função do número e diferenciação da sua composição”, mas procurando manter “o nível assistencial de acordo com a legis artis proporcional aos recursos humanos em escala protegendo, desta forma, utentes e profissionais”, pode ler-se no documento a que o DN teve acesso.

A questão é que, segundo médicos da unidade, o que está estabelecido “já viola as normas definidas pela Ordem dos Médicos”, afirmaram ao DN. No plano de contingência a direção clínica define três níveis de funcionamento, sendo que só contempla a possibilidade de encerramento de portas do serviço no nível 3, quando existirem apenas na escala um especialista, um interno da especialidade do 4.º ao 6.º anos e outro médico que não seja da área.

Mesmo assim, e para conseguir assegurar a escala nos níveis anteriores a este, a administração do Amadora-Sintra tem de conseguir contratar mais médicos, o que, segundo soube o DN, está a tentar fazer, perguntando mesmo a médicos de família e a médicos sem especialidade, habituados a trabalhar à tarefa, se têm disponibilidade e se estão interessados a integrar estas equipas.

O bastonário dos médicos confirmou ao DN que já pediu esclarecimentos à administração do hospital porque quer saber “as funções que outros especialistas vão desempenhar num serviço de cirurgia geral”, considerando mesmo que “a situação é de enorme gravidade e que a própria administração não parece ter vontade de a resolver”.



Médicos preocupados dizem que plano de contingência “é solução de recurso”

Contactados pelo DN, dirigentes sindicais da classe médica a trabalhar nesta unidade confirmam ao que “a situação está a preocupar todo o corpo clínico, porque cirurgia geral é uma especialidade basilar de qualquer serviço de urgência e emergência médica, bem como Medicina Interna”, sublinha Francisco Madeira do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), defendendo mesmo que “a saída de vários cirurgiões era conhecida e a situação já deveria ter sido acautelada e resolvida pela administração”.

Neste momento, a equipa de cirurgia geral, que integrava 18 cirurgiões, está reduzida a menos de metade com a saída de dez elementos, mais a do  diretor de serviço que apresentou a sua demissão com data a 31 de dezembro. 

A saída destes cirurgiões foi noticiada pelo DN já em setembro e confirmada pela administração da unidade, depois de se saber que os dois colegas que, em 2022, tinham acusado o serviço de más práticas iriam regressar – recorde-se que esta denúncia levou a uma investigação de peritos nomeados pela Ordem dos Médicos que concluíram não ter havido “más práticas clínicas”, embora tenha sido identificada uma “má opção cirúrgica”.

Na altura, os dois médicos denunciantes foram suspensos por um período de três meses e depois foram cumprir uma comissão de serviço no Hospital de Vila Franca de Xira, através de um protocolo entre os dois hospitais, o que lhes permite agora regressar à unidade de origem.

Ao DN, fontes hospitalares destacam que o plano de contingência definido pela direção clínica já está a violar a norma da Ordem dos Médicos que define as equipas dos serviços de urgência.  Mas, no documento, a direção clínica diz que respeita as regras da ordm e o código deontológico dos médicos.

Segundo se pode ler no texto, a direção clínica justifica este plano de contingência com o facto de "a cirurgia geral ser uma especialidade fundamental na abordagem do doente urgente e emergente” de este “serviço ser fundamental e essencial numa urgência médico-cirúrgica”, argumentando que a composição das equipas que definiu para manter a urgência aberta está de “acordo com as recomendações do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral”. Ou seja, “o nível mínimo da equipa cirúrgica depende das circunstâncias envolventes do caso, sendo que em condições de emergência, pode o médico atuar abaixo do nível mínimo necessário para situações programadas, de acordo com o artigo 7º do Código Deontológico”.

No entender da direção clínica, a “equipa mínima poderá ser constituída por cirurgião autonomamente competente na execução técnica e por, pelo menos, médico, com a diferenciação suficiente para, no caso de surgirem circunstâncias imponderáveis e não previsíveis, poder suprir a indisponibilidade do cirurgião responsável. É ainda referido que a função do 1º ajudante poderá ser preenchida por internos das especialidades em causa, de acordo com as necessidades”.

O documento destaca ainda que o Regulamento da Ordem dos Médicos, publicado em Diário da República a 22 de outubro de 2022, no qual “é considerado que a equipa de urgência de Cirurgia Geral mínima, independentemente da dimensão hospitalar e da área de influência deverá ser constituída por 3 especialistas, podendo 1 ser substituído por médico IFE do 4º ao 6º ano. Face à abrangência alargada da atividade da especialidade, é de superior importância a existência de mecanismos de contenção de risco, com planos de contingência integrados e em estreita articulação com os outros serviços e Direção Clínica que permitam a adaptação da atividade em urgência a fim de assegurar cuidados imprescindíveis e inadiáveis que possam estar na dependência exclusiva da Cirurgia Geral”.

Para sindicatos, equipa reduzida de cirurgiões já está afetar cuidados na enfermaria

Francisco Madeira do SIM destaca ao DN que ele próprio teve reuniões com a administração e com a direção do serviço de cirurgia geral para tentar perceber o que se estava a passar e como poderia ser encontrada uma solução, mas considera que “este plano de contingência é uma solução de recurso que não se adapta às necessidades de um serviço médico de emergência. E, portanto, coloca em risco não só os meus colegas médicos que fazem serviço urgência como pode colocar em risco o cuidado que é fornecido à população”.

O dirigente critica também o facto de a direção clínica fazer um plano de contingência que prevê o recrutamento de outras especialidades e até de colegas sem especialidade para um serviço como o de cirurgia geral que “tem características muito específicas”. Só isto, defende, “não está de acordo com as regras da Ordem dos Médicos”. E, reforça, “se a administração não está a ser capaz de resolver a situação, então deveria ser a própria tutela de forma direta a resolvê-la, porque “a situação pode, de facto, colocar em risco a qualidade do atendimento cirúrgico do nosso hospital na área da emergência”.

Mas não só. Francisco Madeira alerta para o facto de “o acompanhamento na enfermaria e a atividade programada estarem a ser afetadas pela situação. Há menos médicos ora as cirurgias programadas também são afetadas, pois haverá grande dificuldade em conseguir cumprir as listas cirúrgicas já definidas”.

A dirigente da Federação nacional dos Médicos (FNAM), Tânia Russo, também confirma que a crise no serviço de cirurgia geral “é uma preocupação para os médicos”. Até porque, o facto de a equipa de cirurgiões ter ficado reduzida a metade coloca em causa não só os cuidados nas urgências como nas próprias enfermarias. “A equipa está reduzida para todo a atividade, afetando até os colegas e os doentes da área da Medicina Interna que têm necessidade de apoio cirúrgico”, explica. A médica assume ao DN que voltou a receber de alguns colegas minutas de recusa de responsabilidade e que tem sido abordada por outros colegas que “manifestam intenção de entregar também”.

Bastonário critica administração e hospital pode perder internos

Em outubro, os dirigentes nacionais do SIM e da FNAM também já tinham manifestado a sua preocupação com a situação vivida neste serviço, referindo que o diretor do serviço, agora demissionário, tinha conseguido capacitar o serviço e pô-lo a funcionar. O próprio bastonário visitou o serviço e reuniu com a administração do Amadora-Sintra juntamente com o presidente da Secção Regional do Sul e assim que soube que a unidade estava a tentar contratar outras especialidades para os erviço de cirurgia geral “pedimos um esclarecimento ao hospital para percebermos exatamente quais as funções que esses médicos vão desempenhar. Se for para desempenharem as funções de médicos especialistas de cirurgia geral, a Ordem irá opor-se e denunciar a situação ao Ministério da Saúde, porque é completamente inconcebível”.

Carlos Cortes admitiu ao DN que a situação vivida neste serviço “é de enorme gravidade, pois podemos estar perante uma situação em que um dos maiores concelhos do país, deixe de ter capacidade cirúrgica, nomeadamente no atendimento à urgência. E não é contratando médicos de outras especialidades que se resolve o problema”. O bastonário tece mesmo críticas à administração da unidade dizendo: “Em vez do hospital estar concentrado na resolução do problema básico, que é a saída de vários médicos, dez mais o diretor de serviço, está a causar outro problema, parecendo não ter noção da dimensão deste problema e não estar interessado na sua resolução”.

Ordem pede a ministério para retirar as duas vagas atribuídas ao serviço no mapa do internato

O representante da classe médica, que reuniu também com os médicos do serviço de cirurgia geral, diz que além dos que já se demitiram há outros que manifestam interesse em sair também. “Na reunião que tive com os médicos, outros colegas disseram que se o diretor de serviço se demitisse também se iriam embora”. A redução desta equipa já fez a Ordem dos Médicos pedir ao Ministério da Saúde que altere o mapa de vagas para o internato da especialidade em 2024-2025, porque tinham sido atribuídas duas vagas a este serviço, mas “perante esta situação é impossível alguém iniciar uma formação adequada”.

O DN sabe que neste momento há 13 internos dos vários anos em formação na cirurgia geral do Amadora-Sintra, mas o bastonário diz que se a situação se mantiver que “o serviço corre o risco sério de perder idoneidade como unidade formativa”. Carlos Cortes defende que a administração do hospital já deveria ter “encontrado soluções e começar a implementá-las para que estes médicos saíssem. Os Conselhos de Administração têm esta incumbência de saber resolver e ultrapassar estes problemas”.

A ministra da Saúde, Ana Paula Martins, disse no início de outubro que acreditava que a administração da unidade iria encontrar uma solução para resolver a questão. Mas até agora, dizem médicos ao DN, nada se viu.

Durante a tarde desta terça-feira, a administração tinha uma reunião marcada com o serviço de Medicina Interna, onde a questão da cirurgia deveria ser abordada, até porque este serviço receia que os seus doentes com necessidades cirurgicas possam ser afetados pela falta de cirurgiões, mas a resposta que obtiveram da administração foi a de que "o plano de contingência é para cumprir", soube o DN.

Hospital diz que médicos não especialistas vão fazer "atendimento ao balcão e estar na pequena cirurgia"

O DN confrontou o hospital Amadora-Sintra sobre a necessidade de um plano de contingência e sobre a situação da contratação de médicos de família e sem especialidade para a urgência de cirurgia geral e a resposta chegou ao final da tarde, onde explicava que "o plano de contingência foi publicado em julho de 2023 e foi clarificado. Não decorre da saída dos 10 cirurgiões". No entanto, o documento a que o corpo clínico teve acesso esta semana e o DN também a data inscrita é a de 6 de novembro de 2024.

Por outro lado, esclarece que "a escala de Urgência de Cirurgia Geral é constituída por especialistas em Cirurgia Geral e não especialistas", sendo que estes "asseguram atendimento em balcão de urgência e pequena cirurgia. Toda a atividade cirúrgica realizada no Bloco Operatório é efetuada por especialistas e internos da especialidade, quando aplicável, e decidido pelas respetivas Chefias de Equipa Cirúrgica".

O hospital considera ainda, e ao contrário do relato de médicos da unidade, que "a área da Medicina Interna" não está a ser afetada pela situação. E que "a Direção Executiva e a tutela têm conhecimento e estão a acompanhar a situação".