Óbito
01 maio 2024 às 18h56
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Paul Auster. Ascensão e morte da última “estrela” da Literatura americana

Senhor de uma escrita singular, marcada pelo amor a Nova Iorque, Paul Auster morreu na noite de 3.ª feira, aos 77 anos. Deixa dezenas de obras, entre ficção, ensaio e argumentos de cinema, arte a que também se dedicou.

Pertence, por direito próprio, a uma longa linhagem de grandes escritores norte-americanos que inclui, entre outros, William Faulkner, Philip Roth, Norman Mailer ou Toni Morrison. Mas quando falava das suas maiores referências, Paul Auster recuava mais no tempo e falava de Shakespeare, Cervantes, Dickens, Kafka, Scott Fitzgerald, Beckett, Emily Brontë e até de Jane Austen, cuja proximidade nas estantes de livrarias e bibliotecas, ditada pela ordem alfabética, lhe agradava muito.
Auster morreu na noite desta terça-feira, 30 de abril, aos 77 anos, vítima de cancro de pulmão, na sua casa de Brooklyn, Nova Iorque, a cidade que foi, em simultâneo, um dos grandes amores da sua vida e uma das protagonistas da sua obra literária.

Nascido no vizinho estado de Nova Jérsia a 3 de fevereiro de 1947, é autor de uma vasta bibliografia, traduzida em mais de quarenta línguas. Com 27 livros publicados em Portugal, a última incursão do escritor na ficção aconteceu em 2023, quando publicou o romance Baumgartner, considerado por alguns o seu testamento literário. Obra fulgurante sobre a beleza e a tragédia da vida quotidiana, conta a história de um professor de Filosofia, viúvo, a lutar para sobreviver à perda e à ausência da sua mulher.

Estudante na Universidade de Columbia, Auster viveu quatro anos em Paris, que muito o marcaram, nomeadamente pela aproximação que fez a nomes clássicos da poesia francesa como André Breton ou Paul Éluard, que traduziu para inglês. A sua carreira literária “arrancaria” em 1982, com a publicação do livro A Invenção da Solidão, inquietante reflexão sobre a conflituosa relação que tinha com o seu próprio pai.

A primeira novela, Cidade de Vidro, foi rejeitada por 17 editoras antes de ser publicada por uma pequena chancela da Califórnia, em 1985. Mais tarde, este título tornar-se-ia parte da sua obra mais celebre, Trilogia de Nova Iorque. Seguir-se-iam muitos outros como O Palácio da Lua; A Música do Acaso; Leviathan; Mr Vertigo; As loucuras de Brooklyn, mas também várias obras de não ficção, coordenações editoriais (das obras completas de Samuel Beckett, por exemplo) e argumentos para cinema.

O escritor norte-ameriano Paul Auster num encontro com o publico para leitura de excertos de um dos seus livrosno Estoril Film Festival, em 2008.
Tiago Lourenco/Global Imagens


O gosto pela 7.ª arte levá-lo-ia, aliás, a produzir filmes (Fumo e Fumo Azul, com Wayne Wang) e a realizar A Vida Interior de Martin Frost, o que o trouxe a Portugal, já que a película teve produção de Paulo Branco. Na nota de intenções que então escreveu (e que a Medeia Filmes recorda agora nas suas redes sociais), Auster declara: “A vida é simultaneamente trágica e divertida, ao mesmo tempo absurda e profundamente significante. Mais ou menos inconscientemente, tentei abarcar este duplo aspeto da experiência nas histórias que escrevi - quer nos romances quer nos argumentos cinematográficos. Sinto que é o modo mais honesto e verdadeiro de olhar para o mundo e quando penso em alguns dos escritores de que mais gosto - Shakespeare, Cervantes, Dickens, Kafka, Beckett - todos eles foram mestres em combinar a luz e a escuridão, a estranheza e a familiaridade.”

Voltou a Portugal várias vezes, a última das quais em 2017, quando não escondeu aos jornalistas o seu desagrado e inquietação com o estado do seu país. “Espero que a América sobreviva a Trump”, declarou ao jornalista João Céu e Silva (DN, 12 de setembro de 2017). Na mesma conversa, o escritor resumia desta forma a sua rotina de trabalho: “Levanto-me cedo, vou para o escritório e trabalho 3 a 4 horas. Em seguida, almoço e dou um passeio. Enquanto caminho, encontro as soluções para os problemas que se apresentavam no livro na parte da manhã.” E acrescentava: “Os meus livros vêm do inconsciente.”

A preferência por Emily Brontë

Casado, pela segunda vez, com a escritora e ensaista Siri Hustvedt (a primeira mulher foi a também escritora Lydia Davis), dizia muitas vezes que preferia a escritora oitocentista Emily Brontë aos seus contemporâneos, não morria de amores pelos computadores e gostava de escrever com caneta em pequenos cadernos. Tinha uma relação tão íntima com a sua velha máquina de escrever Olympia que lhe dedicou um livro. O título? História da Minha Máquina de Escrever.
Atingido pela doença e pelas mortes do filho Daniel e de uma das suas netas, de 10 meses, Auster foi espaçando, nos últimos anos, as intervenções públicas. Uma das exceções mais significativas aconteceu para prestar apoio ao seu amigo, e também escritor, Salman Rushdie, alvo de um atentado em agosto de 2022. 

Em nota de pesar pela morte do escritor, Carmen Serrano, sua editora em Portugal declarou: “(…) Livros como A Trilogia de Nova Iorque, 4321 ou o final Baumgartner, entre tantos outros, desafiaram milhões de leitores e derrubaram barreiras linguísticas e culturais em todo o mundo. A voz de Paul Auster é única, a sua obra perdurará. Fomos igualmente privilegiados por conhecer o homem. Culto, sempre interessado e aberto ao mundo, muito amigo da sua mulher Siri Hustvedt, Paul Auster era um homem gentil. A sua relação com Portugal foi forte e constante, acarinhou-nos e foi acarinhado de volta, são muitas as boas recordações que nos deixa.”

Ao longo da carreira, Auster recebeu vários prémios e distinções importantes como o Príncipe das Astúrias, a comenda da Ordem das Artes e Letras de França ou o Prémio Médicis de melhor romance por Leviathan, mas é possível que nada lhe tenha sido tão agradável como o facto de todos os anos, a 27 de fevereiro, Brooklyn celebrar o Dia de Paul Auster. 


dnot@dn.pt