Sustentabilidade
13 julho 2024 às 16h56
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Associação têxtil vai criar ‘sociedade ponto verde’ para recolha e reciclagem de moda  

Diretiva europeia impõe, a partir de 2025, aos Estados-membros a recolha seletiva de têxteis. Na UE são gerados 12,6M de toneladas de resíduos têxteis ano. “Hoje, cerca de 70% dos artigos em fim de vida são incinerados, vão para aterro ou acabam numa montanha de lixo em África ou na América latina”, diz o líder da ATP.

A partir de 1 de janeiro do próximo ano, todos os Estados-membros terão de assegurar a recolha seletiva de têxteis, vestuário e artigos de moda, como o calçado, chapéus e outros acessórios. Tendo em vista suportar os custos desta recolha, triagem e reciclagem, as instâncias comunitárias admitem que sejam os produtores a pagar uma taxa pelos artigos que colocam no mercado. Mário Jorge Machado, presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP) e recém-eleito líder da confederação europeia do setor, a Euratex, aplaude a iniciativa e assume que a ATP está a preparar, em conjunto com outras associações, uma candidatura para entidade gestora destes resíduos, à semelhança do que a Sociedade Ponto Verde faz em relação às embalagens e plásticos.

“Caminhamos para uma economia circular e este é um passo muito grande que está a ser dado. Hoje, cerca de 70% dos artigos que chegam ao seu final de vida são incinerados, vão para aterro ou acabam numa montanha de lixo algures em África ou na América latina”, diz Mário Jorge Machado, explicando que a ATP está em conversações com outras associações do setor e da distribuição para criar uma entidade gestora conjunta de modo a organizar este processo.

“A recolha e triagem têm de ser feitas em moldes que permitam que as matérias-primas possam vir a ser reutilizadas na fileira produtiva. Temos muita fibra na Europa que era destruída e que agora podemos vir a incorporar nos processos produtivos. É um novo modelo de negócio, quase inexistente, mas o futuro do setor e o futuro da economia dentro do setor têxtil vai passar muito pela reutilização e pela circularidade”, frisa.

O presidente da ATP e da Euratex reconhece que nem todas as soluções tecnológicas estão já inventadas, defendendo, por isso, a “importância de haver financiamento para a investigação” no setor que permita criar soluções para a reutilização do que já não se quer.

Para já, diz Mário Jorge Machado, o tema está a ser estudado, sendo que o objetivo é avançar com uma candidatura à atribuição de uma licença de gestão de resíduos após as férias de verão. Sendo certo que o processo terá de ser suportado pelos fabricantes.

Isso mesmo deliberou o Conselho Europeu, que recentemente adotou uma posição sobre a revisão da Diretiva-Quadro de Resíduos, prevendo que, no caso dos têxteis e artigos de moda, a responsabilidade alargada do produtor inclua as microempresas e também que os Estados-membros possam cobrar mais às marcas da fast fashion.

“Cada produtor, quando coloca o seu produto no mercado, vai ter de pagar um determinado valor para assegurar a sua recolha e reciclabilidade em fim de vida. É o que hoje acontece com as embalagens e a Sociedade Ponto Verde”, explica o também presidente da Euratex.

O que significa que o custo da recolha e reciclagem acabará, naturalmente, refletido no preço final de vendas dos artigos. No entanto, Mário Jorge Machado frisa que a forma como um produto foi produzido, em termos de sustentabilidade social e ambiental, tem também de ser refletida no seu custo.

Ou seja, a fast fashion tem de pagar mais. “Se não há um custo na produção, há um custo para o planeta. Não podemos permitir que alguém produza recorrendo ao carvão, o que o torna mais competitivo por isso, quando nós usamos energias renováveis e temos o nosso produto mais caro por isso e depois o consumidor prefere um artigo fabricado com energias fósseis do que com energias renováveis”, diz, sublinhando que “tem de haver aqui também uma ecomodelação dos produtos que chegam ao mercado”.

Recorde-se que, em março, o Parlamento Europeu aprovou a sua posição sobre a proposta de revisão da Diretiva-Quadro de Resíduos, que existe desde 2008, por 514 votos a favor, 20 votos contra e 91 abstenções, propondo, precisamente, que sejam alargados os regimes de responsabilidade do produtor, através dos quais os produtores que vendem têxteis na UE deveriam cobrir os custos de recolha, triagem e reciclagem separadamente.

Por ano, a UE produz 12,6 milhões de toneladas de resíduos têxteis, dos quais o vestuário e o calçado representam 5,2 milhões de toneladas. São 12 quilos de resíduos por pessoa por ano. Estima-se que menos de 1% de todos os têxteis em todo o mundo sejam reciclados em novos produtos.

Entretanto, já em junho, foi a vez de o Conselho Europeu adotar a sua posição relativamente à revisão da diretiva. Até ao final de 2028 a Comissão Europeia considerará a definição de metas específicas para a prevenção de resíduos, a recolha, a preparação para a reutilização e a reciclagem no setor têxtil.

Mário Jorge Machado:
“Não podemos ter uma Europa limpa e um planeta sujo”

Presidente da ATP foi eleito líder da Euratex. É a primeira vez que um portuguê lidera a confederação europeia dos têxteis e vestuário. Diz que um dos objetivos do seu mandato “é nivelar o terreno de jogo”.

O presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal defende que empresas que não cumprem as mesmas regras a nível ambiental “não deviam ter acesso ao mercado europeu”. 

É a primeira vez que temos um português a presidir à confederação europeia da têxtil, é sinal de maturidade da indústria portuguesa?
Maturidade já temos há muito, temos é vindo a ganhar notoriedade. E ser o presidente de uma indústria que tem uma boa imagem em termos de sustentabilidade e de inovação ajuda a mostrar que a Europa também tem de seguir o bom exemplo de Portugal. 
Isto acontece numa altura de grandes dificuldades.

O que pode a Euratex fazer pelo setor?
Um dos grandes objetivos do meu mandato é nivelar o terreno de jogo. Continuamos a competir com situações que, do ponto de vista da sustentabilidade ambiental e social, não estão a ser repercutidas no preço dos produtos que estão a chegar à Europa. Se não cumprem as mesmas regras que nós, não deviam ter acesso ao mercado europeu. Tendo-o, porque a Organização Mundial do Comércio o impõe, então têm de pagar uma taxa à entrada, como está a ser feito com o aço.

Acredita que conseguirá convencer a Comissão Europeia?
Vai ser extremamente difícil, mas não desistimos. É de elementar justiça.

A tão propalada reindustrialização ficou na gaveta?
Nivelando o terreno de jogo, a reindustrialização tem todas as condições para acontecer.

O próprio Pacto Verde não corre o risco de ficar esquecido?
Não podemos ter uma Europa limpa e um planeta sujo. No mínimo, quem quer vender na Europa tem de produzir os seus produtos de uma forma limpa.

O que falta ao setor da moda para fazer valer os seus pontos de vista?
Se compararmos o crescimento económico das últimas duas décadas, verificamos que a Europa aumentou o gap face aos EUA em cerca de 30 pontos percentuais. É uma enormidade. Isto tem a ver com inovação, com serviços, mas tem também a ver com indústria. A Europa tem-se preocupado pouco com o crescimento das empresas, do seu tecido económico. E isso resulta em descontentamento e em votos para os extremos. Devemos perguntar-nos que leis é que os EUA têm que permitem um maior crescimento económico e permitem haver empresas de grande dimensão, quando nós na Europa não temos conseguido construí-las. A última grande que tivemos foi a Nokia, que entretanto desapareceu.

O que falta?
Leis amigas do investimento económico, da inovação. Além da sustentabilidade, claro. Esta situação da Shein está a causar um prejuízo enorme a nível global. A França já está a tomar algumas medidas, mas são precisas medidas a nível comunitário. Este é um dos papéis da Euratex, pressionar a Comissão Europeia para que atue quando há situações que estão a causar desequilíbrios importantes. Voltamos à questão da sustentabilidade. Os produtos da Shein estão a chegar, vão precisar de ser recolhidos e reciclados e não fazemos a mínima ideia se o que está a chegar traz produtos que são proibidos na UE, nocivos para o ambiente e para as pessoas. Não podemos ser ingénuos e deixar que situações que não são minimamente controladas acabem por causar gravíssimos problemas às indústrias que cumprem as regras.

Em Portugal, como estão as empresas a aguentar-se?
[Suspiro]. As exportações em abril já cresceram em relação ao ano passado. Há aqui um primeiro sinal de que as coisas podem começar a iniciar a sua recuperação. A verdade é que, no ano passado, as nossas exportações diminuíram 5%, mas as importações da UE caíram 17%, o que mostra que, ainda assim, ganhámos quota de mercado. Não estamos a perder clientes, pelo contrário, temos mais, mas estão a comprar menos. Os europeus têm menos dinheiro, estão a comprar menos quantidades.

ilidia.pinto@dinheirovivo.pt