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Ciência Vintage
09 setembro 2024 às 00h27
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Atlantropa, o sonho do alemão que projetou secar o Mediterrâneo

A década de 20 viu nascer um megaprojeto de engenharia a servir de base à criação de um espaço pan-europeu. Atlantropa sintetizava o sonho do arquiteto Herman Sörgel. Também elevou vozes críticas face ao expansionismo europeu e ao neocolonialismo.

Na mala seguiam livros, umas quantas mudas de roupa e os documentos necessários à viagem entre dois continentes. Em janeiro de 1935, o escritor alemão Willy Ley deixava o seu país natal rumo aos Estados Unidos. O autor, nascido em 1906, partia da Alemanha horrorizado com a ideologia e política nacional-socialista. Escritor prolífico, Ley, sob o pseudónimo de Robert Wiley, escreveria em 1940 o conto de ficção científica Fog, uma crítica ao totalitarismo. Na época, a escrita do alemão, entretanto naturalizado americano, vertia para revistas de divulgação científica. Com a sua verve, Willy popularizou a imagem de foguetões espaciais e viagens além da atmosfera terrestre. Reconciliado com o seu país de origem, fundou a Sociedade para as Viagens Espaciais. Em 1954, Ley ofereceu à sua legião de leitores o livro Engineer’s Dreams (Sonhos de Engenheiros), que nos entrega sete megaprojetos de engenharia. Entre empresas utópicas e outras concretizáveis, o autor pormenorizou o projeto de construção de um túnel submarino a ligar a Grã-Bretanha à França e também explanou outro projeto alemão da década de 20, popular na década seguinte e no final dos anos 40, início dos 50. Ao longo de 32 anos o arquiteto expressionista alemão Herman Sörgel alimentou a utopia de nome Atlantropa. Nascido em 1855, visionou um plano transcontinental, uma obra estimada para um século, com caráter geopolítico, económico, ambiental, energético, entre outros propósitos. Atlantropa teria como expoente a construção de uma barragem no estreito de Gibraltar, uma muralha de 35 km de extensão a unir as margens da Europa e de África. Olhando para a Europa devastada após a Grande Guerra de 1914/1918, anteviu-lhe um futuro expansionista. A conceção do alemão visava ocupar terras submersas sob as águas do mar Mediterrâneo. Após dois séculos a esvaziar o leito do mar a favor do Atlântico, o mare nostrum baixaria 20%, para conquistar 233.000 km2 de área antes submersa.

A megalomania de Herman Sörgel alargava-se também ao continente africano, pois Atlantropa nasceria da união da Europa com África. A partir do instituto criado para o efeito, sonhava com uma rede de barragens hidroelétricas no Mediterrâneo (no estreito de Dardanelos e entre a Sicília e a Tunísia), mas também mais a sul, no rio Congo, ali para alimentar lagos artificiais no Norte de África, fontes de água para as sedentas terras saarianas. Um esquema que, argumentava o seu autor, se baseava no pacifismo e na criação de um sentimento pan-europeu, ao unir a Europa destruída após a I Guerra Mundial. Contrapunham os críticos a Atlantropa: nesta residia uma atitude eurocêntrica em relação a África e uma aposta na geopolítica neocolonial, antevendo um mundo dividido em três grandes áreas de influência - as Américas, a Ásia e Atlantropa. Críticas que se estendiam à carência de verdadeira cooperação europeia. Os países mediterrânicos viam-se excluídos do debate, na medida em que era ignorado o impacto do recuo do mar nas comunidades costeiras.

Herman Sörgel via no seu intento um caminho contrário ao dos seus detratores e defendia-o como uma alternativa pan-europeia pacífica, oposta ao conceito de Lebesnraum, o espaço vital defendido pela Alemanha nazi, e acreditava que residia no seu megaprojeto a força competitiva face às Américas e a uma Ásia Oriental em ascensão. Defendia que a Europa deveria ter territórios em todas as regiões climáticas, no caso concreto em África, e habitados por europeus.

Atlantropa era também um megaprojeto hidroelétrico, pois Sörgel antevia na energia produzida nas barragens força para alimentar a indústria e reduzir a dependência dos combustíveis fósseis, porque nos antigos litorais mediterrânicos nasceriam terras cultiváveis. O gigantismo das obras públicas aliviaria o desemprego no Velho Continente e as migrações para os novos territórios minguariam a superpopulação na Europa, que, de acordo com o arquiteto alemão, era causa de agitação política. A utopia de Herman subia aos céus: a descida do nível do mar Mediterrâneo e um Norte de África povoado de águas trariam um clima mais ameno às regiões setentrionais. E sonhava com uma torre de 400 metros a emergir das águas no estreito de Gibraltar. Um totem à sua megalomania e a um projeto que sucumbiu à sua dimensão, aos ideais que professava e a razões tangíveis.

A emergência da energia nuclear, os custos de um tal plano para os cofres europeus e o fim do colonialismo ditaram o canto do cisne de Atlantropa. Hoje, da utopia pan-europeia de Sörgel resta uma miríade de material publicitário, entre mapas, plantas e maquetas das barragens. Herman Sörgel morreu em 1952, fiel ao projeto que lançara três décadas antes. Willy Ley faleceu a 24 de junho de 1969, pouco mais de um mês antes dos passos do astronauta norte-americano Neil Armstrong no solo lunar. Atualmente, o lado oculto da Lua alberga uma cratera com pouco mais de 70 km de diâmetro. Tem o nome de Ley.

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