O que diz a lei? “O titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio não-violento nem de ameaça de violência, tentar separar da Mãe-Pátria, ou entregar a país estrangeiro, ou submeter a soberania estrangeira, o todo ou uma parte do território português, ofender ou puser em perigo a independência do País será punido com prisão de dez a quinze anos.”
O que diz a Constituição? “Por crimes praticados no exercício das suas funções, o Presidente da República responde perante o Supremo Tribunal de Justiça. A iniciativa do processo cabe à Assembleia da República, mediante proposta de um quinto e deliberação aprovada por maioria de dois terços dos Deputados em efetividade de funções. A condenação implica a destituição do cargo e a impossibilidade de reeleição. Por crimes estranhos ao exercício das suas funções o Presidente da República responde depois de findo o mandato perante os tribunais comuns.”
O que têm dito publica e repetidamente, nestes últimos dias, especialistas em direito? É um processo sem qualquer sustentação legal. A impossibilidade? Nem PS, nem PSD, por exemplo - a tal “maioria de dois terços dos deputados -, vai viabilizar a iniciativa do Chega que a pode propor ao Parlamento por ter “um quinto” dos deputados necessários. O que vai acontecer? Nada.
Com o chumbo anunciado da ação criminal contra o Presidente só resta a Ventura, neste caso, o palco político de um debate de urgência, já agendado para dia 15, sobre “a situação provocada pelas declarações do Senhor Presidente da República em relação à reparação histórica das ex-Províncias Ultramarinas”.
E o que tem dito Marcelo? “É, naturalmente, a democracia.”
Ontem, Ventura justificou a ação criminal recordando a “história traumática, de pessoas deslocadas para as antigas províncias do seu país, de corpos enterrados em África [que] são o testemunho vivo dessa traição”.
O caso das “reparações”
“Não é apenas pedir desculpa - devida, sem dúvida - por aquilo que fizemos, porque pedir desculpa é, às vezes, o que há de mais fácil: pede-se desculpa, vira-se as costas, e está cumprida a função. Não, é o assumir a responsabilidade, para o futuro, daquilo que de bom e de mau fizemos no passado.” A frase dita assim por Marcelo na sessão de boas-vindas ao Presidente brasileiro, que antecedeu a cerimónia do 49.º aniversário do 25 de Abril no Parlamento, não causou, nessa altura, nem celeuma pública, nem partidária.
Um ano depois, nas vésperas do 25 de Abril, durante um jantar com correspondentes estrangeiros em Portugal, foi mais incisivo: “Temos de pagar os custos. Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isto.”
A frase levaria o líder do Chega a insinuar a existência de problemas de saúde mental: “Penso que o Presidente estará bem a nível de faculdades, não vou pôr isso em causa, e quero acreditar que o disse com consciência e com precisão” - e a acusar Marcelo, apesar da “tontice”, de “traição à pátria”.
A “reparação”, que o Presidente haveria de abordar, um dia depois, na sessão para a qual convidou os chefes de Estado de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, foi de novo invocada, mas de forma mais branda. “Do passado colonial guardamos todos as memórias e as lições que nos hão de guiar no futuro”, insistiu Marcelo.
Logo nesse dia, a ministra da Igualdade Racial brasileira, Anielle Franco, garantiu que a sua equipa já estava “em contacto com o Governo português para dialogar sobre como pensar essas ações e, a partir daqui, quais os passos que serão tomados”.
Só não explicou, e apesar da insistência do DN, até ontem, se esses contactos eram ou não anteriores ao Governo de Montenegro. O silêncio de Anielle Franco é partilhado com o do Governo da AD, que optou, desde dia 26 de abril, por não esclarecer quem estava envolvido neste processo e quando foram estabelecidos os contactos para decidir os “passos” a tomar.
O silêncio foi alargado a outra questão colocada pelo DN a 28 de abril: “O que está a ser feito com Cabo Verde e São Tomé e Príncipe - a troca da dívida bilateral por investimentos climáticos no mesmo valor - será aplicado ou vai ser proposto noutras áreas aos outros PALOP?” Nem do Ministério dos Negócios Estrangeiros, nem do Ministério das Finanças há resposta a uma iniciativa do Estado português elogiada por FMI e ONU.
O que existe - e é depois de Marcelo ter sugerido ao Governo várias “formas de reparar” o passado - são as dúvidas colocadas, por fonte do Executivo ao DN, pelo facto de “um Presidente publicamente intervir” em matérias da “competência de um Governo” sugerindo “o perdão de dívidas” como “reparação” - que “já existe” - ao mesmo tempo que mistura nessa ideia “a concessão de linhas de crédito e de financiamento” - que também “já existem” - e “a cooperação” que tem sido “cada vez mais intensa e estreita, assente na reconciliação de povos irmãos”.
A “reparação” de que Marcelo fala, sustentam fontes do anterior Governo, já tem “anos e anos” e está refletida na promoção, financiamento, cofinanciamento e na execução de “dezenas e dezenas de programas e projetos” nos programas estratégicos de cooperação, até 2027, que somam quase 1200 milhões de euros.
E a questão os bens culturais? Segundo apurou o DN junto de anteriores e atuais governantes, nem Angola, nem Moçambique, nem Cabo Verde, nem São Tomé e Príncipe, nem Guiné-Bissau e nem sequer o Brasil fizeram qualquer pedido de “restituição” de património cultural presente em museus portugueses.