Denúncias de assédio no CES da Universidade de Coimbra
13 março 2024 às 15h52
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Direção pede “desculpas públicas” a vítimas e anuncia que vai agir sobre quem abusou

Houve “padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia”, conclui direção do Centro de Estudos Sociais, anunciando que vai agir sobre indivíduos denunciados - cuja lista lhe foi entregue. "Voltamos ao início", diz uma das acusadas, Maria Paula Meneses.

“Estamos decididos a tomar todas as iniciativas para que haja consequências destas denúncias e para que as más práticas que foram identificadas não se voltem a repetir no CES. (…) Se é certo que as situações reportadas resultaram de ações individuais, sobre as quais iremos agir, não deixam, também, de resultar de falhas institucionais que, na ausência de mecanismos adequados para a prevenção do assédio, permitiram condições para formas de abuso de poder.”

Esta é uma das promessas contidas na carta aberta que a direção do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra publicou pouco depois do início da apresentação, esta quarta-feira, à "comunidade CES" (e portanto à porta fechada) do relatório da Comissão Independente de Esclarecimento de Situações de Assédio no Centro de Estudos Sociais, e na qual “declara o seu repúdio e indignação pelas práticas de assédio e abuso moral e sexual e de abuso de poder cometidas por investigadores/as do CES, conforme denunciado perante a Comissão Independente”.

A carta, assinada também pela presidência do Conselho Científico da instituição, permite concluir que, apesar de o relatório não identificar os denunciados em causa nas situações de assédio, abuso sexual e assédio moral, a direção tem conhecimento de quem são. Isso mesmo foi esclarecido durante a apresentação do relatório à “comunidade CES”: a direção recebeu a lista dos denunciados.

Uma das denunciantes, a política brasileira e deputada estadual do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) Isabella Gonçalves, que foi estudante de doutoramento na instituição coimbrã e logo em abril de 2023, após estalar o escândalo (na sequência da publicação, pela prestigiada editora académica Routledge, de um livro, Sexual Misconduct in Academia - Informing an Ethics of Care in the University/ Má conduta sexual na Academia - Para uma Ética de Cuidado na Universidade, contendo um capítulo no qual se descrevia, sem a nomear, uma instituição que corresponde ao CES, e um padrão de assédio moral e sexual no seio da mesma), congratula-se com a posição da direção do CES:  “A carta reconhece que há congruência nos relatos apresentados e coincidência entre eles, o que indica más práticas na instituição, motivo pelo qual pedem desculpas. E fala sobre a mudança institucional, acho que é um bom caminho.”

No relatório, ao qual o DN teve acesso, a comissão conclui que, apesar de “as versões apresentadas por várias pessoas denunciantes e por várias pessoas denunciadas” terem sido “em muitas situações incompatíveis entre si, tornando-se, nessas situações, impraticável aferir evidências das mesmas”, e que “a documentação apresentada e as audições realizadas, tanto de pessoas denunciantes como de pessoas denunciadas, não permitiram esclarecer indubitavelmente a existência ou não da ocorrência de todas as situações comunicadas à CI”, “a análise de toda a informação reunida, bem como das versões entre as pessoas denunciantes e pessoas denunciadas que foram compatíveis entre si, indiciam padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES.”

Relatório e carta da direção contradizem Boaventura

Recorde-se que entre os denunciados publicamente por assédio e abuso sexual estão o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, que foi diretor do CES até 2018, e o antropólogo Bruno Sena Martins. As denúncias foram, como já referido, conhecidas publicamente em abril de 2023, na sequência da publicação do livro Sexual Misconduct in Academia - Informing an Ethics of Care in the University/Má conduta sexual na Academia - Para uma Ética de Cuidado na Universidade (entretanto, como o DN noticiou, retirado pela editora)  , no qual se incluía um capítulo que descreve acontecimentos ocorridos numa instituição que, não sendo nomeada, é facilmente identificada, até por ser a única em comum no percurso das três autoras, como sendo o CES. Nesse capítulo, são referidos dois homens - "The Star Professor" (o professor estrela) e "The Apprentice" (o aprendiz) - que correspondem, como os próprios admitiram logo ao DN, a Boaventura Sousa Santos e Bruno Sena Martins.

Tanto Boaventura como Sena Martins negaram todas as acusações, reputando-as de "caluniosas" e anunciando tencionar proceder judicialmente contra as autoras do capítulo, a belga Lieselotte Viaene, a portuguesa Catarina Laranjeiro e a norte-americana Miye Nadya Tom.

Ao DN, Boaventura Sousa Santos descreveu o capítulo em causa como "uma distorção e uma falsificação da realidade a meu respeito e a respeito do CES, de tal ordem que nem sequer ouso comentar. (...) O ambiente académico de proximidade e de crescimento coletivo que criámos ao longo de décadas é arrasado de uma maneira vil e inqualificável. (...) O artigo é um típico produto de um ataque ad hominem em que o mundo académico começa a ser fértil. O objetivo é lançar lama sobre quem se distingue e luta por um mundo melhor. O neoliberalismo está a roubar a alma da solidariedade e da coesão social e criar subjectividades que canalizam os seus ressentimentos para acusações de que sabem não poder haver contraditório eficaz. Chama-se a isso cancelamento." E lamentou: "Aos 82 anos de idade julgava ter direito a um pouco de paz, mas infelizmente o mundo em que vivemos não permite que isso suceda."

Tanto o relatório da CI como a carta da direção parecem, ao reconhecer a existência de "más práticas", "falhas institucionais" e "abuso de poder", contradizer estas asserções do sociólogo, que até ao rebentar do escândalo era diretor emérito do CES.

"Houve quem tentasse desacreditar o relatório"

O DN contactou Boaventura Sousa Santos (que, após um longo silêncio nos media nacionais, assina esta quarta-feira um artigo de opinião, analisando o resultado das legislativas, no Público) e Bruno Sena Martins, que estão suspensos de funções no CES, para averiguar das respetivas reações, mas nem um nem outro responderam.  Já a pessoa designada no capítulo do livro como "The Watchwoman/A Sentinela", a investigadora coordenadora Maria Paula Meneses, respondeu ao jornal com apenas uma frase: "Voltamos ao início..." Questionada sobre o que tal significa, remeteu-se ao silêncio.

Nem Paula Meneses nem Boaventura Sousa Santos e Bruno Sena Martins estiveram presentes na apresentação, numa sessão que, asseverou ao DN um dos presentes, "foi muito tensa, com um debate muito duro", no qual houve "tentativas de desacreditar a comissão": "Algumas pessoas, sobretudo entre as mais próximas dos denunciados, contestaram a metodologia e puseram em causa os resultados". Também houve, prossegue este membro da "comunidade CES", que refere não querer ser identificado, "quem defendesse o trabalho da comissão". E quem "perguntasse sobre a existência de reparações, o que não compete à CI, e quem exigisse um veredito, como se se tratasse de um julgamento."

Da CI fazem parte Catarina Reis Neves, especialista em Psicologia Clínica e directora técnica da Casa de Abrigo para homens vítimas de violência doméstica, Jorge Ribeiro Pereira, mestre em Medicina e membro da direcção da European Network of Ombuds in Higher Education, Cristina Ayoub Riche, presidente do Instituto Latinoamericano del Ombudsman – Defensorias del Pueblo, Eduarda Proença de Carvalho, advogada especializada em contencioso penal, direito de família e sucessõese e Michaela Antonín Malaníková, provedora do estudante da Universidade Palacky, na República Checa.