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Dinheiro
29 outubro 2024 às 00h18
Leitura: 7 min

Julgamento BES. O “erro” escrito em maiúsculas que provocou perdas de 18 mil milhões

Inês Viegas, antiga sócia da auditora KPMG, disse em tribunal que a firma não se apercebeu dos problemas no BES devido a deficiências nos órgãos de controlo interno do banco liderado por Ricardo Salgado.

O colapso do Grupo Espírito Santo (GES) não foi devidamente explicado pelos seus administradores, defendeu ontem Inês Viegas, antiga partner da KPMG, firma que era responsável pela auditoria do BES. Ouvida ontem como testemunha, no julgamento que decorre no Juízo Central de Lisboa, Inês Viegas defendeu que a KPMG não foi capaz de detetar atempadamente o que estava a acontecer no banco liderado por Ricardo Salgado, porque este tinha várias falhas a nível de controlo interno, que impossibilitaram essa deteção.

Por outro lado, a antiga auditora do BES frisou que o erro nas contas das holdings do Grupo Espírito Santo - que, segundo Salgado, explica o colapso do império familiar, que depois contagiou o banco - nunca foi devidamente explicado pelos seus responsáveis. Recorde-se que em 2013 foi revelado que as holdings do GES, sediadas na Suíça, apresentavam um gigantesco passivo de 6,3 mil milhões de euros, muito acima do que constava na contabilidade oficial. Na altura, Ricardo Salgado justificou este “buraco” nas contas com um alegado erro por parte de Francisco Machado da Cruz, o commissaire aux comptes das empresas do GES na Suíça.

Segundo a Lusa, durante o julgamento o Ministério Público questionou Inês Viegas sobre se o GES entregou à KPMG algum documento que explicasse as razões para o referido “erro”. Inês Viegas respondeu que a única resposta que recebeu de Machado da Cruz foi um papel manuscrito onde se podia ler, em letras maiúsculas, a palavra “erro”. E que erro: segundo o Ministério Público, o colapso do GES, que acabaria por arrastar o BES, provocou prejuízos superiores a 18 mil milhões de euros, incluindo as perdas de centenas de clientes que investiram em papel comercial do grupo da família Espírito Santo.

Inês Viegas adiantou que em novembro de 2013 a KPMG apercebeu-se que ocorrera um aumento muito significativo da dívida da holding Espírito Santo International (ESI). Nessa altura, contou Inês Viegas, transmitiu essa informação a Luís Costa Ferreira, o então diretor da área de supervisão do Banco de Portugal. Luís Costa Ferreira terá ficado “muito surpreendido” e adiantado que iria ordenar uma auditoria da Espírito Santo International. “A nossa preocupação era a ESI e perceber se os ativos estavam bem valorizados e se podiam fazer face aos passivos”, afirmou Inês Viegas, citada pela Lusa. Alguns meses depois, em 2014, a KPMG informou o Banco de Portugal por carta, de que seria necessário “rever a imparidade de exposição ao GES”.

“No final de 2013, o BES não tinha exposição nenhuma à ESI e tinha uma exposição muito pequena a outras entidades”, disse Inês Viegas. “Só que a 30 de junho deparámo-nos com uma alteração muito grande de circunstâncias: a primeira coisa era que tinha havido um aumento muito da grande da exposição da ESFG à ESI - no primeiro semestre de 2014 aumenta a sua exposição de 1,3 mil milhões para 2,2, 2,3 ou 2,4 mil milhões de euros”, concluiu a auditora.

Após o testemunho de Inês Viegas, que vai continuar a ser ouvida esta terça-feira, outros responsáveis - atuais e antigos - da KPMG vão ser ouvidos em tribunal. Sílvia Gomes será ouvida hoje à tarde, ao passo que Sikander Sattar, que liderava a KPMG à data dos factos, vai prestar declarações no dia 5 de novembro. Outra audição relevante que está prevista para os próximos dias é a de Pedro Passos Coelho, que era primeiro-ministro em 2014 e que será ouvido amanhã, dia 30 de outubro. Passos Coelho recusou uma intervenção estatal em auxílio do BES, dando lugar à aplicação de uma medida de resolução bancária feita de acordo com as novas regras europeias, com a separação do banco em “bom” e “mau”. Os custos da resolução foram suportados por um fundo financiado com contribuições obrigatórias dos bancos que operam em Portugal. A outra alternativa seria a liquidação, que teria custos estimados em 35 mil milhões de euros e foi, à partida, considerada inviável.

Caso BES abalou KPMG

O colapso do BES foi um verdadeiro pesadelo para a auditora. Em 2019, cinco anos após o colapso e a resolução do BES, o Banco de Portugal condenou-a a pagar uma coima de cinco milhões de euros por alegada violação de normas que deveriam ter obrigado a KPMG a emitir reservas nas contas do BES, devido à exposição ao BES Angola. Na altura, tanto Inês Viegas como Sílvia Gomes e o seu colega Fernando Antunes deixaram a KPMG e suspenderam os seus registos como auditores profissionais, junto da CMVM. Já Sikander Sattar deixou a liderança da firma em Portugal no ano de 2021.

A KPMG recorreu à Justiça, tendo a Relação anulado a sentença do supervisor. Em 2022, o Banco de Portugal ainda recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, mas este deu razão à KPMG, mais uma vez. Ainda assim, a imagem da firma foi abalada pelo caso e, durante alguns anos, perdeu terreno para as outras Big Four (Deloitte, EY e PwC) na auditoria às instituições do setor financeiro. Até que, já este ano, conseguiu conquistar o contrato para a revisão oficial de contas do Millennium bcp para 2024-2027, substituindo a Deloitte, que teve de sair devido às regras que obrigam à rotatividade periódica dos auditores. Este contrato vale cerca de cinco milhões de euros.