No dia 2 de fevereiro de 1974 celebrei o trigésimo aniversário como era tradição: um jantar de família em casa dos meus pais, em Paço d’Arcos. Nesse jantar, marcaram presença, naturalmente, o meu marido, com quem casara aos 21 anos e as duas filhas, de 8 e 6 - mais tarde nasceria a terceira. Vivíamos então na rua da Artilharia 1, em Lisboa, num apartamento alugado cuja grande vantagem era estar situado defronte ao Colégio das Doroteias, onde estudavam as duas meninas.
Seguindo a vocação do meu pai, tirei o curso de medicina. Em fevereiro de 1974 trabalhava no Hospital de Santa Maria. O meu marido, engenheiro e mais velho cinco anos, na Mobil, uma conhecida empresa petrolífera da época.
O meu horário estabelecia que entrasse no hospital às 8:30h da manhã e saísse às duas da tarde. Pelo contrato, estava ainda obrigada a cumprir 12 horas por semana de banco de urgência. E a uma urgência interna de serviço às enfermarias.
Contava por isso com a ajuda de uma mulher-a-dias, todas as tardes. E já então com a comodidade de um carro - um Toyota Corola - e de eletrodomésticos, nomeadamente máquinas da louça e da roupa.
Aos fins de semanas, as minhas filhas ficavam com os avós. Podíamos então ir jantar fora - recordo um snack bar junto ao Ritz e o Galeto -, seguido das sessões de cinema e teatro do Monumental e do São Jorge. Em 1974, estas saídas eram cuidadas. Ainda nos vestíamos esmeradamente para ir ao cinema ou ao teatro. De dia, usavam-se os tailleurs, de noite, os vestidos. À sexta feita, ia ao cabeleireiro. Os penteados eram elaborados, feitos com rolos. Usava-se muito a ‘banana’.
Eu pouco ligava à política. Em casa dos meus pais, apesar de um avô ter partilhado cela com Álvaro Cunhal, ou talvez por isso mesmo, não se falava de política. Mas lembro-me de ter percebido melhor o regime em que vivíamos quando soube que só podia sair de Portugal com a autorização do meu marido. Hoje, sei que em 1974 a minha vida girava à volta do meu marido e da minha condição de mulher casada.
Fiquei também a conhecer melhor o país no dia que o meu marido fez questão de me levar a visitar um bairro de lata nos arredores de Lisboa. Quis mostrar-me - a mim, filha única criado em desafogo - como se vivia em Portugal. Fiquei incrédula. Não imaginava que existisse tanta pobreza e falta de condições dignas.
O meu marido sempre se interessou por política. Fazia coisas que não eram comuns. Devo dizer que casámos apenas pelo registo civil, precisamente por ele não ser crente (e eu também não acreditava muito). Amigo de alguns opositores ao regime, era ele próprio muito crítico da guerra colonial. Perdemos um amigo em África. Um tio meu foi mobilizado.
A minha mãe quis despedir-se do irmão. Pediu-me que a acompanhasse à Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos. Eu teria 17 anos. Eram milhares de pessoas a despedirem-se. Gritos de mulheres. Desmaios. Do barco, os rapazes acenavam com lenços brancos. Uma coisa horrível.
Em fevereiro de 1974 fazia voluntariado no Movimento Nacional Feminino de Cecília Supico Pinto. A minha função era abrir os embrulhos que as famílias mandavam para os soldados e que nos chegavam de todo o país. Muitos levavam comida. As pessoas não tinham noção da distância. Lembro-me de encontrar bolos de bacalhau.
Em fevereiro de 1974, em minha casa comprava-se o Diário de Notícias todos os dias (à tarde, a Capital). Cinquenta anos depois, precisamente no dia em que faço 80 anos, o jornal traz o meu nome.”
Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles