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Estreia de cinema
26 setembro 2024 às 00h14
Leitura: 5 min

Lee Miller: quanto vale uma fotografia?

'Lee Miller - Na Linha da Frente' é um filme para resgatar do esquecimento uma notável fotógrafa dos cenários da Segunda Guerra Mundial. Interpretada por Kate Winslet, ela é alguém que conhece o valor informativo e moral de cada imagem.

O filme Lee Miller - Na Linha da Frente teve a sua primeira apresentação no Festival de Toronto em setembro de 2023. Só agora está a chegar aos grandes mercados internacionais, incluindo os EUA e o Reino Unido, e também aos de menor dimensão, como é o caso português. Tendo em conta que o seu maior trunfo é o protagonismo de Kate Winslet, uma atriz “oscarizada”, conhecida das plateias de todo o mundo, eis um adiamento que dá que pensar.

Mesmo com um nome como Winslet, os mecanismos dominantes do marketing global não sabem o que fazer com um produto que não “encaixa” nas opções correntes dos circuitos comerciais. Colocando a questão de forma cândida, tais mecanismos esbarram na pergunta mais simples: que fazer com um filme sobre Lee Miller (1907-1977), uma mulher fotógrafa?

Se outros méritos não tivesse, este é um filme capaz de resgatar do esquecimento alguém que raras vezes terá sido conhecida (e devidamente admirada) pelo génio do seu labor como repórter de guerra durante o segundo conflito mundial. Sem esquecer que tal esquecimento foi, em parte, favorecido pela própria Lee Miller, ao esconder a maior parte dos negativos das suas fotografias, desgostosa com o facto de, logo após o fim da guerra, não terem sido devidamente publicadas as suas imagens, sobretudo as que testemunham a monstruosidade dos crimes cometidos pelos nazis.

No processo de redescoberta e divulgação de tais fotografias, Antony Penrose (n. 1947), filho de Lee Miller, foi e continua a ser uma figura essencial, obviamente não por acaso com um papel determinante na teia dramática do filme, interpretado por Josh O’Connor (que vimos este ano como um dos protagonistas de Challengers, de Luca Guadagnino). Daí a estrutura tradicional do filme, propondo um ziguezague entre as memórias de uma Lee Miller envelhecida, profundamente desencantada, e os episódios emblemáticos de uma vida invulgar, enfrentando diversas formas de marginalização profissional motivadas pela “estranheza” de uma mulher querer fazer fotografias, não de moda (Lee chegou a ser modelo), mas em cenários de guerra.

Ainda assim, convém não reduzir Lee Miller a uma “heroína” solitária, quanto mais não seja porque na mesma época encontramos alguns outros notáveis exemplos de mulheres que se distinguiram na fotografia - lembremos o exemplo de Margaret Bourke-White, também americana, aliás personagem importante do filme Gandhi (1982), de Richard Attenborough, interpretada por Candice Bergen.

Em boa verdade, a dimensão mais rica do filme decorre da reflexão sobre um desafio, de uma só vez artístico e ético, que qualquer profissional da imagem é levado a enfrentar. A saber: perante os horrores de uma guerra, que imagens recolher e, sobretudo, como fazê-lo, que olhar adoptar? Ou ainda: quanto vale uma fotografia? E como partilhar o seu valor?

Imagens & fotografia

Pormenor a ter em conta: Lee Miller - Na Linha da Frente marca a estreia na realização de Ellen Kuras (americana, nascida em 1959), com uma importante carreira como diretora de fotografia - são dela as imagens de títulos como Verão Escaldante (1999), de Spike Lee, ou O Despertar da Mente (2004), de Michel Gondry (também com Kate Winslet, contracenando com Jim Carrey). Neste caso, Kuras entregou as imagens do seu filme ao polaco Pawel Edelman, prodigioso artista da luz e da cor, colaborador regular de Roman Polanski para quem fotografou, por exemplo, O Pianista (2002) e J’Accuse - O Oficial e o Espião (2019).

Apesar de alguns diálogos algo mecânicos, sobretudo na gestão da informação sobre o contexto político da Segunda Guerra Mundial, este é um filme de extrema utilidade pedagógica. Isto porque no nosso presente, infelizmente, a consciência moral que as imagens suscitam tende a ser todos os dias vulgarizada, sobretudo através do sensacionalismo de algumas linguagens de raiz televisiva.